“Pressão territorial” é maior desafio para proteger yanomamis
A situação dramática dos yanomamis observada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva, em Roraima, não é algo novo. Segundo o indigenista na Fundação Nacional do Índio, Gustavo Guerreiro, ela remonta ao processo de expansão agrícola e extrativista na Amazônia, especialmente a mineração ilegal do ouro, muito estimuladas no período da ditadura militar (1964-1985). Ele considera que esta “pressão territorial” da agricultura e da mineração, provocada por entes de governo, empresariais e, inclusive, organizações criminosas, seja o maior desafio a ser enfrentado pelo Governo Lula.
O pesquisador do Observatório das Nacionalidades e doutor em Políticas Públicas na UECE (Universidade Estadual do Ceará) falou a reportagem, para explicar a complexidade do que ocorre naquela região entre Roraima e Amazonas, e também avaliar o que é possível fazer pela transversalidade ministerial proposta por Lula, envolvendo Ministério da Saúde, da Justiça, do Desenvolvimento Social e dos Povos Originários, entre outros.
Para ele, a ida do presidente Lula a Roraima é importante para mobilizar o governo e a sociedade. “A fome não espera”, diz ele, enfatizando a importância da chegada de alimentos com urgência aos territórios. Por outro lado, ele conhece e considera o secretário de Saúde Indígena, Weibe Tapeba “muito dedicado e sensível ao que está acontecendo”. Por isso, a Força Tarefa instaurada pela emergência sanitária será fundamental, neste primeiro momento.
Um terceiro momento é fazer a fiscalização ambiental e territorial, de acordo com o indigenista. Para ele, não adianta fornecer a alimentação aos indígenas, sem resolver o problema na raiz, que é a ocupação irregular do território. Para ele, é preciso que a Funai e o Ibama ajam, com apoio da Força Nacional e das Forças Armadas.
“A Funai precisa avançar com políticas de etnodesenvolvimento, para que os indígenas não precisem ficar na dependência de programas sociais, mas tenham condições de retomar o modo de produção próprio e ter autonomia, ainda que sob a tutela de algum agente do estado, num primeiro momento”, afirmou.
Reconstrução da Funai
Guerreiro também atravessou o período difícil na Funai, quando foi divulgado um dossiê da parceria entre a Indigenistas Associados (INA), Associação de Servidores da Funai, e o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), sobre o desmonte da capacidade da instituição de exercer sua função. Militares foram colocados nos cargos de comando para impedir a atuação de indigenistas e da fiscalização, assim como praticar o assédio institucional, perseguir e exonerar os servidores mais experientes e atuantes.
Segundo ele, ainda não foi possível exonerar estes militares, mas eles já foram afastados e não despacham mais. “Ainda é cedo, porque ainda não fizemos nosso planejamento anual de atividades, mas o clima na entidade é completamente diferente daquele em que nos sentíamos sob vigilância e perseguição”, afirmou.
O pesquisador ainda não sabe como a mudança da Funai do Ministério da Justiça para o Ministério dos Povo Indígenas vai se refletir na atuação da entidade, em termos de autonomia e respaldo institucional. “É uma coisa nova, mas estamos bem curiosos e otimistas para o que vai acontecer”.
Drama histórico
“Sempre teve fome, morte de crianças, aquilo que se viu, mas a situação se agravou muito nos últimos anos, devido ao incentivo, ainda que velado, do governo anterior à ocupação irregular de mineradores. Isso tensiona muito os territórios indígenas”, explicou.
A contaminação por mercúrio atinge a saúde dos próprios indígenas, mas também inviabiliza a pesca. Por outro lado, ele diz que a ocupação desordenada e ilegal do território também inviabiliza a caça por proteína e a agricultura dos yanomamis. “A situação é complexa e a raiz dos problemas está na pressão territorial, ainda que tenham a maior área demarcada das terras indígenas”, resume.
Essa pressão acaba levando a conflitos interétnicos, segundo Guerreiro. Ele relata o caso de uma aldeia que incendiou outra, forçando o deslocamento das pessoas para as favelas de Boa Vista, onde vivem em condições precárias sem condição de emprego, vivendo de aposentadoria dos idosos ou bolsa família.
As aldeias mais próximas de pelotões especiais de fronteira acabaram recebendo indiscriminadamente doações de mantimentos do Exército, o que desorganizou o ciclo produtivo das aldeias. “A interferência indevida do Exército em determinadas áreas causou uma desorganização na produção, conforme os indígenas se tornaram pedintes e pararam de esperar o ciclo de cultivo de alimentos, tornando-se desnutridos, também”, relata.
Estes fatores se somam a postura do governo de Roraima, que ele considera “um estado abertamente anti-indígena”. O governador Antonio Denarium (PP) chegou ao governo do estado em 2018 pelo PSL, então partido de Bolsonaro, e se reelegeu ano passado para mais quatro anos de mandato, a partir de legislações que favorecem os garimpeiros e invasores de terras indígenas, após desmontar a estrutura de saúde indígena em plena pandemia.
“Tudo isso alinhado com as políticas bolsonaristas de desmonte da proteção territorial e ambiental da Funai, junto com a política de demarcação, mais o Ibama enfraquecido, levou ao desastre que foi multiplicado enormemente. Nao se pode nem falar em descaso, mas de um projeto de eliminação e genocídio, mesmo”, enfatizou.
Desta forma, o desafio de garantir que não haja mineração ilegal nos territórios Yanomami, é enorme. Para o servidor da Funai, é preciso haver uma “articulação interministerial e interfederativa permanente” para que isso seja eficaz num território tão abrangente.
“Não adianta só o Governo Federal com uma Força Tarefa, mas é preciso um pacto interfederativo envolvendo União, Estados e Municípios. É preciso envolver secretarias estaduais de Meio Ambiente e de Assistência Social, o Ministério Público e os órgãos municipais”, completou.
(por Cezar Xavier)