Os compositores da nossa MPB (Música Popular Brasileira) foram generosos com o futebol – e o foram ainda mais com o Flamengo. O caso mais emblemático é o de Wilson Batista (1913-1968), sambista tão genial quanto subestimado, antagonista de Noel Rosa (1910-1937) na mais luminosa polêmica do samba.

Wilson era flamenguista roxo. Nenhum compositor escreveu mais músicas sobre o rubro-negro do que ele. Foram cinco no total (algumas em coautoria): Coisas do Destino (1942), E o Juiz Apitou (1942), Memórias de um Torcedor (1946), Samba Rubro-Negro (1954) e Flamengo Tri-Campeão (1956). 

Outro gigante da MPB que cultuava o Fla era Ary Barroso (1903-1964), o autor de Aquarela do Brasil. Como Wilson Batista, Ary também escreveu canções sobre o time carioca. Mas, passados 61 anos de sua morte, ele ainda é reconhecido como o mais flamenguista dos locutores esportivos.

Ao narrar partidas pelas rádios Cruzeiro do Sul e Tupi, Ary não escondia a preferência. Se qualquer equipe fizesse gol, ele assoprava sua estridente gaita. Mas, se o gol fosse do Fla, o som agudo da gaita se estendia por mais tempo, interminável. Pior mesmo era quando um time se lançava em um ataque perigoso contra o Flamengo. Angustiado, o locutor-torcedor disparava seu bordão: “Eu não quero nem olhar!”.

Em 2019, quando Flamengo e River Plate chegaram à final da Copa Libertadores da América, muitos lembraram que Chico Buarque já havia previsto o jogo na música Biscate (1993). A letra mostra os conflitos entre um casal de namorados. A mulher, insubmissa, quer se casar. Mas o homem, dado à vida vadia e mulherenga, tenta enrolar a companheira.

Diferentemente de Batista e Ary, Chico não torce pelo Flamengo, mas, sim, pelo arquirrival Fluminense. Isso não o impediu de caracterizar o malandro de Biscate como um flamenguista fanático, desses que acompanham as partidas do clube no rádio: “Vives na gandaia e esperas que eu te respeite / Quem que te mandou tomar conhaque / Com o tíquete que te dei pro leite? / Quieta que eu quero ouvir Flamengo e River Plate.”

As maiores torcidas

Com exceção do Corinthians, nenhum clube disputa com o Flamengo essa condição de time efetivamente “nacional”, com torcidas significativas em todas as regiões do Brasil. Mas, até hoje, ninguém conseguiu desvendar exatamente como – nem quando – esses clubes se firmaram como os mais populares. Há, sim, teorias conspiratórias, que beiram o negacionismo – e das quais falaremos a seguir. Mas nada de convincente.

De concreto, a crer em três pesquisas recentes, feitas entre 2024 e 2025, há o fato de que mais de 70 milhões de pessoas se dividem entre Corinthians e Flamengo. O País tem quase 800 clubes profissionais reconhecidos pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol), mas apenas dois deles cativam um terço da população.

Em agosto passado, conforme levantamento AtlasIntel/Estadão, 20,1% se declaravam flamenguistas, enquanto 14,5% se diziam corinthianos. Três meses depois, em novembro, o Datafolha mostrou números similares: 19% são torcedores do Fla, e 14%, do Timão. Já na pesquisa Real Time Big Data/TV Record divulgada no domingo (19), o rubro-negro carioca e o alvinegro paulista aparecem como times do coração de, respectivamente, 21% e 15% dos brasileiros.

Três sondagens, com metodologias diferentes, apontaram para o mesmo resultado. A que podemos atribuir tamanha hegemonia?

Uma hipótese mais recente – e ingênua – associa a preferência nacional à quantidade de títulos. Além de serem os maiores campeões de seus respectivos estados, Flamengo e Corinthians venceram, juntos, 14 Campeonatos Brasileiros e oito Copas do Brasil, além de quatro Libertadores da América e três Mundiais. O problema dessa tese é que o Flamengo só venceu seu primeiro título nacional em 1980, e o Corinthians, em 1990. Suas torcidas, porém, já eram majoritárias no Brasil décadas antes.

Ademais, se a relação título-torcida é tão absoluta, por que o Santos, durante a “era Pelé”, não passou a ter uma das maiorias torcidas do Brasil? Com o “Rei” em campo, de 1956 a 1974, o Peixe venceu 11 Campeonatos Paulistas, quatro torneios Rio-São Paulo, seis Brasileiros, duas Libertadores da América e dois Mundiais. Mas uma pesquisa Gallup/Placar feita em dezembro de 1971 indicou que, mesmo na capital paulista, o Santos respondia por apenas 9% dos torcedores – bem abaixo de Corinthians (29%), Palmeiras (17%) e São Paulo (15%).

“Fator Globo”?

Outra especulação – tão recorrente quanto conspiratória – joga o destino dos torcedores nas costas da TV Globo. Se Flamengo e Corinthians alcançaram tamanha projeção, é porque a emissora da família Marinho teria priorizado os dois clubes – sobretudo o carioca – em transmissões de jogos, locais ou interestaduais. Por essa lógica, as duas maiores torcidas brasileiras seriam não mais que o resultado de uma aposta midiática bem-sucedida.

Esse argumento peca em dois pontos. Primeiro, o “fator Globo” só faria sentido se Flamengo e Corinthians tivessem, proporcionalmente, mais torcedores hoje do que há quatro, cinco décadas – o que, aparentemente, não ocorre. Segundo ponto: quando a Globo, em 1969, se tornou a primeira emissora do País a transmitir sua programação em rede nacional, os dois clubes já eram os mais populares do Brasil. Nada mais natural que um canal recém-fundado (a Globo é de 1965) os privilegiasse para alavancar a audiência.

A pesquisa Gallup/Placar, mesmo sem caráter nacional, dá pistas da inclinação dos brasileiros. No Rio de Janeiro, o Flamengo já tinha 35% dos torcedores, ante 18% do Vasco da Gama, 16% do Fluminense e 14% do Botafogo. Em São Paulo, o preferido em 1971, como já dissemos, o Corinthians. Às voltas desde 1954 com um jejum de títulos, o Timão não perdia força. Ao contrário: entre os paulistanos de 10 a 17 anos – que, à época, nunca haviam visto o alvinegro de Parque São Jorge vencer um campeonato –, 38% se declaravam corinthianos.

Mas as produções da MPB por aqueles anos comprovam que a torcida do Flamengo se destacava mais do que qualquer outra. Em 1969, ao partir para o exílio, o baiano Gilberto Gil – que, como Chico, é torcedor do Fluminense – reverenciou o adversário: “Alô, alô, Realengo, aquele abraço / Alô, torcida do Flamengo, aquele abraço!”.

Também composta em 1969, País Tropical, de Jorge Bem, canta as belezas do Brasil e agrega duas razões para a felicidade: “Sou Flamengo e tenho uma nega chamada Tereza”. Poucos anos depois, Benito di Paula, metade Fla, metade Bangu, reverenciou os torcedores rubro-negros na música Charlie Brown: “Se você quiser / Vou lhe mostrar / Torcida do Flamengo / Coisa igual não tem”.

São músicas que, entre imagens e símbolos nacionais, incorporam o Flamengo – muito antes da era Zico e ao mesmo tempo em que a Globo se expandia Brasil afora. A TV Globo surfou nessa popularidade do Flamengo, não o inverso. E tais exemplos extraídos da MPB deixam claro que, embora meu Corinthians não faça feio – longe disso! –, a torcida flamenguista sempre foi a maior.