Socialismo no Século XXI: resistência, recomposição e novos horizontes

Quase 34 anos após o colapso da União Soviética, em dezembro de 1991, os partidos comunistas ao redor do mundo continuam a se orientar pelo marxismo-leninismo como bússola teórica. O Projeto de Resolução Política (PRP) do PCdoB, documento central do 16º Congresso do partido, programado para 16 a 19 de outubro em Brasília, oferece uma leitura estratégica do momento atual. “As forças comunistas e revolucionárias ainda enfrentam um período de defensiva estratégica, todavia em um estágio positivamente distinto daquele de três décadas atrás”, afirma o PRP, elaborado em meio a intensas plenárias e debates internos. Este diagnóstico aponta para um cenário de transição: o neoliberalismo, corroído por recessões prolongadas e desigualdades crescentes, abre brechas para experiências socialistas, como a da China, e para uma ordem mundial multipolar, onde potências emergentes crescem diante da perda do dinamismo econômico e da hegemonia dos Estados Unidos e da Europa.
Um período histórico de acumulação de forças
O conceito de “defensiva estratégica”, adotado pelo PCdoB, descreve uma fase de reorganização metódica em condições adversas, longe de significar paralisia. Ana Prestes, secretária de Relações Internacionais do PCdoB, esclarece que “a ‘defensiva estratégica’ caracteriza-se por essa fase prolongada de resistência imposta às forças progressistas e revolucionárias desde o final da Guerra Fria e da queda do Leste Europeu. Nesse contexto, a correlação de forças é desfavorável a rupturas bruscas ou riscos não controlados – qualquer ação precipitadamente ofensiva poderia resultar em derrotas ainda mais profundas e agravar a fragilidade das organizações.” Para Prestes, a prioridade recai sobre a organização dos movimentos sociais, mobilização popular, a formação militante, o aprimoramento teórico e a clareza ideológica, com vistas a acumular forças para uma futura retomada da iniciativa, construindo bases sólidas para um projeto socialista sustentável.
Sinais da Quadra Histórica
O cenário global reflete os desafios dessa fase. Ana Prestes aponta “ataques a instituições democráticas, apologia a regimes ditatoriais, promoção de russofobia, sinofobia e sanções econômicas que visam manter as periferias do sistema mundial sob pressão” como sinais de uma correlação de forças desfavorável. Contudo há indicadores que essa conjuntura pode se alterar. Raul Carrion, historiador, membro do Comitê Central do PCdoB e da Fundação Maurício Grabois no Rio Grande do Sul, identifica três fatores que impulsionam a reorganização do movimento comunista: “A crise do neoliberalismo, que agrava a precarização do trabalho e o desmonte de proteções sociais; os progressos do ‘socialismo renovado’ em países como China, Vietnã, Laos, Cuba e Coreia do Norte; e o declínio da hegemonia unipolar dos Estados Unidos, que favorece a multipolaridade e amplia a autonomia de nações periféricas.”
Vitórias Táticas em Meio à Resistência
Apesar das dificuldades, conquistas táticas marcam o caminho. “Essa defensiva nunca significou a impossibilidade de vitórias táticas em diferentes países, entre as quais podemos citar o processo bolivariano na Venezuela e a vitória de Lula e das forças populares e de esquerda no Brasil, mas sob um cerco implacável da contrarrevolução”, destaca Carrion. Na Europa, o Partido Comunista Português (PCP) anunciou, em junho de 2025, a candidatura de António Filipe à Presidência da República em 2026, buscando unir a esquerda contra uma “direita que controla todos os órgãos de soberania”, segundo o secretário-geral do Partido, Paulo Raimundo. Na Grécia, o Partido Comunista da Grécia (KKE) liderou uma greve geral em 28 de fevereiro de 2025, paralisando transportes e serviços públicos no segundo aniversário do desastre ferroviário de Tempi, após uma campanha com centenas de reuniões para “intensificar a luta operária”.
O Panorama do Movimento Comunista Global
Os números desafiam as narrativas de declínio ideológico. O Partido Comunista Chinês (PCCh) alcançou 100,3 milhões de membros ao final de 2024, com crescimento de 1,1 milhão em relação ao ano anterior, liderando avanços tecnológicos e parcerias comerciais com mais de 120 países sob princípios de “ganha-ganha”. No Vietnã, o Partido Comunista do Vietnã (PCV) conta com cerca de 5 milhões de integrantes em uma população de 100 milhões. Em Cuba, o Partido Comunista de Cuba (PCC) reúne aproximadamente 1,3 milhão de militantes, incluindo 600 mil na União da Juventude Comunista (UJC), em um país de 11 milhões. Somando Laos (400 mil membros em 8 milhões) e Coreia do Norte (estimados 4 milhões em 26 milhões), o movimento comunista global ultrapassa 113 milhões de militantes. “Partidos que não arriaram a bandeira do socialismo e da revolução, mas souberam tirar lições da história e renovar as suas concepções, começam a colher os frutos de sua luta”, afirma Carrion.
O neofacismo surge como contraponto
Os avanços em alguns países convivem com retrocessos ferozes. Os comunistas constroem frentes amplas contra o neofascismo, que Ricardo Alemão Abreu, economista mestre em Integração da América Latina pela USP, compara ao fascismo dos anos 1920: “O neofascismo surge como necessidade do capital financeiro internacional, sobretudo o estadunidense, e como contraponto ao socialismo renovado, a exemplo do genocídio em Gaza e dos governos de Javier Milei na Argentina e Nayib Bukele em El Salvador, que aplicam políticas autoritárias misturando demagocia e repressão,” afirma.
Enquanto Javier Milei na Argentina e Nayib Bukele em El Salvador aplicam políticas autoritárias que misturam populismo e repressão, no Chile, o Partido Comunista do Chile (PCCh) ganha terreno: Jeannette Jara, ex-ministra do Trabalho, venceu as primárias de esquerda em junho de 2025 com 60% dos votos, tornando-se candidata única para as eleições presidenciais de novembro. No Uruguai, o Partido Comunista do Uruguai (PCU) apoia a Frente Ampla, que elegeu Yamandú Orsi presidente em novembro de 2024 com 70% no segundo turno. Contudo, na Bolívia, divisões à esquerda levaram a um segundo turno inédito em 19 de outubro de 2025 entre Rodrigo Paz (32,08%) e Jorge “Tuto” Quiroga (26,94%), encerrando duas décadas de hegemonia progressista.
O Brasil no Contexto Atual
No Brasil, a vitória de um governo de frente ampla com liderança de esquerda não elimina os desafios. “Apesar da vitória de um terceiro governo de Lula, torna-se evidente que temos um movimento social ainda fragmentado e um Parlamento resistente às reformas sociais. É nesse impasse que prospera uma extrema direita resiliente, que capitaliza com crises econômicas”, explica Prestes. A obstrução sistemática a pautas sociais no Congresso, somada a narrativas de medo e descrédito nas redes digitais, agrava o quadro. De modo que a saída estratégica apontada pelos PCdoB visa assegurar uma vitória eleitoral em 2026 para neutralizar a extrema-direita; intensificar a mobilização social por meio de movimentos populares e da formação política; e construir uma frente político-social ampla em apoio ao governo Lula, visando reconquistar vagas no Congresso. Juntas, essas iniciativas visam não apenas sustentar a resistência, mas acumular forças “ para desencadear uma ofensiva capaz de avançar na luta por um projeto socialista efetivo”, conclui Prestes.
A Juventude como Força Transformadora
A juventude emerge como pilar central nesse cenário. “Derrotar o neofascismo é tarefa histórica da juventude; sem a juventude revolucionária, não há socialismo”, afirma Abreu. Carrion complementa: o socialismo se reposiciona como alternativa viável frente a um capitalismo que perpetua desemprego, miséria e conflitos. Para Prestes, “acumular forças é construir hegemonia comunista no bloco popular”, o que exige uma conscientização ideológica robusta, sustentada por formação política e debates que engajem as novas gerações.
Horizontes para o Socialismo no Século XXI
Em um mundo em transição, o socialismo não é apenas uma herança histórica, mas um instrumento de análise e ação para os desafios contemporâneos. “São novos tempos, que indicam uma virada histórica, que ainda se encontra nos seus albores!”, resume Carrion. Partidos que preservaram sua identidade ideológica, adaptando-se às lições do passado, apontam para um futuro de recomposição e resistência. Nas condições do mundo atual, o socialismo se reafirma como um horizonte possível, construído a partir da luta coletiva e da clareza estratégica.