Conta a história que Maria Clara Machado, diretora do Teatro Tablado, pediu a João Cabral de Melo Neto “alguma coisa sobre retirantes” como Auto de Natal. O poeta então escreveu um longo poema entre 1954-55. Mas o resultado da encomenda foi tão denso que o Tablado não o encenou. O texto Morte e Vida Severina somente foi encenado em 1966, pelo Teatro da PUC-SP, com música de Chico Buarque. Sucesso absoluto no Brasil e na Europa.

Nos dicionários há o registro de que Auto é um gênero dramático de cunho moral, místico ou satírico, com um só ato, originário da Idade Média. Ou, de modo atual, é uma representação dramática do ciclo natalino. Mas no belo imortal poema de João Cabral de Melo Neto, Cristo e Jesus não aparecem uma só vez. A criança é anunciada por uma mulher sem nome:

UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ

– Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dento da vida
ao dar seu primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabeis que ele é nascido.

Reis Magos, ah, eles são pessoas do povo que trazem presentes para o bebê no mocambo que é uma palafita. Como este presente;

– Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues;
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.

E o Auto de Natal com a originalidade imortal explode neste canto:

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA

– Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

Então Jesus na Vida Severina nasceu para o mundo.

Edição: André Cintra