Biógrafa destaca a força da trajetória musical e política de Leci Brandão
Fernanda Souza pesquisou e biografou a vida da sambista Leci Brandão
Na entrevista exibida nesta segunda-feira (30) no programa Entrelinhas Vermelhas, Fernanda Kalianny Martins Souza, diretora de pesquisa e desenvolvimento do Internet Lab e autora da biografia autorizada A Filha da Dona Leci (2022), compartilhou suas reflexões sobre a vida e trajetória de Leci Brandão. Antropóloga e doutora em ciências sociais pela Unicamp, Fernanda discutiu o impacto de Leci como protagonista na luta antirracista e feminista no Brasil, ressaltando suas influências pessoais e culturais. O programa trouxe um retrato íntimo e detalhado de uma mulher que transcendeu barreiras e se consolidou como ícone de resistência e luta por justiça social.
Ao responder à pergunta sobre quem é Leci Brandão, Fernanda destacou a sambista e deputada estadual como uma “grande inspiração”, não apenas para mulheres negras, mas para toda uma geração que busca abrir caminhos em uma sociedade marcada por desigualdades estruturais. “A Leci vai se desenhando para mim como uma espécie de espelho”, comentou, mencionando o papel que a artista desempenha ao abrir portas e elevar a autoestima da população negra por meio da arte e da política.
Fernanda ressaltou a importância da família na formação de Leci, especialmente sua mãe, que viveu até 2019, e que exerceu um papel central na educação e no desenvolvimento cultural da filha. A mãe de Leci trabalhava como servente em escolas públicas do Rio de Janeiro, onde a família vivia e onde a jovem Leci cresceu em contato com o ambiente escolar. Esse contexto familiar e educacional foi essencial para sua formação artística e intelectual, além da convivência com outras mulheres, seja nas rodas de samba, nas escolas de samba ou nos terreiros de Umbanda e Candomblé.
A questão racial foi outro ponto central da conversa. Fernanda relatou os episódios de racismo enfrentados por Leci desde a infância, que marcaram profundamente sua vida e sua produção artística. Mesmo em situações de injustiça e discriminação, como quando foi preterida em um concurso de redação por ser filha de uma servente negra, Leci transformou essas experiências em força para lutar contra o racismo e se tornar uma referência para a juventude negra no Brasil.
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A espiritualidade como força criativa
Um dos pontos centrais discutidos foi o papel da espiritualidade na vida de Leci. De acordo com Fernanda, a artista tem uma forte conexão com as religiões de matriz africana, o que sempre influenciou sua arte e sua maneira de compor. “Leci é uma pessoa que tem esse lado da espiritualidade muito presente em tudo que ela faz”, afirmou a biógrafa. Nos anos 1980, Leci rompeu com a gravadora Polygram devido à censura política imposta a suas músicas, retornando à carreira musical em 1985 com composições que dialogavam profundamente com as entidades da Umbanda e do Candomblé, como Iansã e Xangô. Esse vínculo espiritual marcou sua trajetória e se tornou um elemento constante em seus álbuns.
Fernanda também revelou que Leci não toca instrumentos de corda, optando sempre pela percussão. “A composição para ela é uma espécie de transe”, disse. Leci relatava que as músicas surgiam de forma completa, com letra e melodia, muitas vezes enquanto realizava atividades cotidianas. Para a artista, o processo criativo era uma manifestação de sua conexão com as entidades espirituais.
São Paulo, política e resistência
Outro aspecto destacado na entrevista foi a mudança de Leci do Rio de Janeiro para São Paulo, onde sua carreira política floresceu. Fernanda ressaltou que São Paulo parecia mais receptiva ao seu perfil político do que sua terra natal. Mesmo assim, Leci manteve uma ligação forte com o Rio, escolhendo morar perto do aeroporto de Congonhas para estar sempre próxima de sua mãe.
Na política, Leci segue uma linha de continuidade com suas canções e suas causas. Ao longo de quatro mandatos na Assembleia Legislativa de São Paulo, a sambista fez da política uma extensão de sua luta cultural e social. “Eu gosto de pensar numa espécie de continuidade”, comentou Fernanda, observando que o compromisso da artista com temas como o racismo, os direitos LGBTQIA+ e a luta trabalhista ecoava em suas composições.
Leci também se destacou ao nomear seu gabinete na Alesp como “Quilombo da Diversidade”, enfatizando a importância da inclusão e da representatividade. Ao longo de sua trajetória política, ela tem se dedicado a abrir caminho para que outras mulheres negras ingressem na política institucional, dando continuidade ao legado de pioneiras como Theodosina Ribeiro, primeira deputada negra de São Paulo.
O legado de uma pioneira
Leci Brandão se consolidou como uma das maiores representantes da cultura negra e da música de resistência no Brasil. Ela foi a primeira mulher negra a entrar na ala de compositores da Mangueira e a segunda deputada negra a ser eleita em São Paulo. Sua contribuição, tanto na música quanto na política, transcende sua própria figura, tornando-se uma inspiração para novas gerações de artistas e ativistas.
Como explicou Fernanda Kalianny Martins, o processo de escrita da biografia de Leci também se tornou uma reflexão pessoal: “Quando eu falo dessa continuidade da Leci, me via muito olhando para a Leci e pensando em que tipo de mulher negra eu também queria vir a ser”. O livro, que foi fruto de uma pesquisa de mestrado e entrevistas com a própria Leci, se tornou um marco para a autora, especialmente por seu esforço em criar uma obra acessível a todas as pessoas, inclusive fora da academia.
A obra de Leci como inspiração para futuras gerações
Ao longo da entrevista, ficou claro que a vida e a carreira de Leci Brandão são fundamentais para entender a resistência cultural, política e religiosa no Brasil. Seu legado continua a inspirar homenagens, desde prêmios até peças de teatro e exposições. Segundo Fernanda, “Leci precisa e deve ser homenageada”, e sua biografia é apenas uma “pontinha” do reconhecimento que ainda está por vir.
O livro de Fernanda Kalianny Martins pode ser adquirido no site da Editora Gota, sob o selo Maré, que destaca obras de mulheres pesquisadoras, e, como disse a autora, é uma obra que vai além da música: é uma celebração de uma trajetória que continua a impactar o presente e o futuro da sociedade brasileira.
(por Cezar Xavier)