Caixões com vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996. Foto: Arquivo e Memória do MST

A violência no campo e a impunidade a ela relacionada são algumas das principais cicatrizes deixadas pelas relações arcaicas, autoritárias e patrimonialistas que ditam as regras numa estrutura fundiária altamente concentrada que sempre marcou a história brasileira. Reflexo dessa situação, cerca de 60% dos suspeitos em casos de massacre nessas áreas, ocorridos entre 1985 e 2019, chegaram ao Tribunal do Júri, que julga crimes dolosos contra a vida. E dentro desse universo, apenas 11% foram condenados.  

É o que revela o relatório “Massacre no Campo”, realizado pelo Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e lançado nesta quinta-feira (22). 

“O sistema ainda se mostra comprometido com o latifúndio e com aqueles que buscam expulsar posseiros, trabalhadores rurais e camponeses de suas terras e meios de subsistência”, explica a Halyme Antunes, uma das pesquisadoras que participaram do estudo.

O levantamento se deteve sobre o período pós-ditadura e sobre 50 casos contabilizados pela CPT entre 1985 e 2019 — que, conforme aponta o documento, são apenas a “ponta do iceberg” dos massacres no campo ocorridos na Nova República. Mas, aprofundou a análise sobre os processos de seis casos emblemáticos: Eldorado dos Carajás (PA, 1996); Chacina de Ubá (PA, 1985); Massacre de Pau D’Arco (PA, 2017); “Guerrilha do Guamá” ou Massacre De Viseu-Ourém (PA, 1985); Corumbiara (RO, 1995) e Felisburgo (MG, 2004). 

Tramitação viciada

Conforme apurado, o conjunto de crimes seguiu uma mesma lógica desde o processo de investigação até o julgamento final, submetido a um tipo de “decantação” que vai reduzindo o universo dos possíveis envolvidos até o ponto final do ciclo, que em sua maioria termina sem condenação, numa espécie de tramitação viciada.

Nesses 50 casos, de 386 suspeitos, 356 foram indiciados, 346 foram denunciados pelo MP (Ministério Público) e 345 tiveram a denúncia aceita pelo Poder Judiciário. Porém, foram 263 os que tiveram o pedido de pronúncia formulado pelo MP, dos quais 238 foram efetivamente pronunciados para julgamento pelo Tribunal do Júri, que condenou 43 réus, absolveu 188 e deixou de julgar outros sete. 

De acordo com o relatório, em cada uma dessas fases, “foi possível perceber que, sobretudo, os mandantes (fazendeiros e/ou políticos) tiveram a sua responsabilização criminal vetada por autoridades públicas do sistema de justiça criminal — delegados(as), promotores(as) e magistrados(as)”. 

Além disso, destaca que esse processo de “filtragem” ou “decantação” se torna mais efetivo durante a fase judicial, que se arrasta por anos. O tempo médio para a instrução do processo judicial até a prolação da sentença — ato pelo qual se profere ou se enuncia o que é feito — de pronúncia ou impronúncia — ato pelo qual o magistrado analisa a materialidade do fato e os indícios de autoria nos crimes — é de 1.478 a 1.581 dias (o que corresponde a mais de quatro anos). 

Mais adiante, da pronúncia até a prolação da sentença condenatória ou absolutória do Tribunal do Júri, a média é de 1.903 a 2.829 dias (de cinco a sete anos). 

Segundo os pesquisadores, “as razões para esse alongado período de tramitação não se devem apenas a atitudes procrastinatórias produzidas pelas defesas técnicas dos réus, mas também (e quiçá sobretudo) pela indiferença dos atores do sistema de justiça à tramitação destes processos, a julgar, dentre outros, pelo tempo dos recursos de apelação e dos protestos por novo júri (2.457 dias, ou 6 anos e 267 dias)”. 

Analisando esse cenário, os autores identificam ao menos sete características da atuação do sistema de justiça criminal brasileiro nos casos estudados: parcialidade, seletividade, corporativismo, morosidade, precariedade, desconsideração às vítimas e ritualismo — que consiste nas ações ou omissões que se valem de disposições legais para “não promover ações vistas como mais efetivas para apurar as responsabilidades de mandantes e executores”. 

Outro dado trazido pelo estudo aponta que a maioria dos massacres teve como executores pistoleiros (66%) ou outro tipo de empregado ou contratado do latifúndio (4%) e que 18% deles tiveram a participação de policiais militares e/ou civis. “Os demais casos tiveram a execução direta por parte dos mandantes (10%) ou foram promovidas por sujeitos que não integram o latifúndio, dado que os massacres ocorreram num contexto de disputa de terras entre posseiros, assentados, indígenas etc. (10% dos casos)”, explica. 

Territorialidade dos massacres

Além disso, fica constatado que, de fato a região da Amazônia Legal é o principal foco desse tipo de crime, mais especificamente no território conhecido como Arco do Desmatamento, a ponto de, salienta o relatório, “se poder chamar a área de Arco dos Massacres”: do total de casos ocorridos nesses 34 anos estudados, 41 (82%) ocorreram nessa área. Cabe destacar ainda que 29 ocorreram no estado do Pará — um dos mais emblemáticos é o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996. 

“As principais razões que explicam essa territorialidade específica dos massacres, de acordo com a literatura, estão ligadas às políticas de colonização da Amazônia levadas a cabo pela ditadura empresarial-militar brasileira, cujos legados foram o caos fundiário e a intensificação da violência e da grilagem de terras como modos de aquisição da posse e da propriedade nesta região”.  

Ademais, continua o documento, “por se tratar de uma região de fronteira, a lógica da guerra e da violência prevalece sobre as relações sociais típicas de sociedades reguladas pelo Estado de Direito, de modo que a ‘fronteira agrícola’ é também uma fronteira da reprodução ampliada do capital”. 

Contexto pós-golpe de 2016

Em sua apresentação, o relatório explica que a proposta da pesquisa que embasou o material “surgiu em um contexto de acirramento das violências cometidas contra trabalhadoras e trabalhadores em luta pela terra, indígenas e comunidades tradicionais, verificado, principalmente, após o Golpe/Impeachmentde Dilma Rousseff, ocorrido em 2016. Desde esse ano, a CPT passou a registrar em seu relatório Conflitos no Campo – Brasil sempre mais de 1.500 ocorrências de conflitos no campo anualmente, sendo estas caracterizadas pelo acirramento dos mais diversos tipos de violências cometidos contra famílias e pessoas”. 

No ano de 2017, a CPT registrou cinco casos de massacres, número superado apenas nos anos de 1985, quando houve 11, e 1987, com seis. Dos 50 identificados entre 1985 e 2019, 46% ocorreram entre o primeiro ano do período e o ano de promulgação da Constituição de 1988. 

Além disso, o relatório aponta que houve um “aumento abrupto no último período considerado, que compreende os governos Temer e Bolsonaro”. 

Sobre isso, destaca que aquele momento foi marcado pela  “implementação de políticas ultraneoliberais e de uma ofensiva de latifundiários, grileiros e outros integrantes da burguesia e da lumpenburguesia brasileira contra as trabalhadoras e os trabalhadores do campo”. 

Assim, esse período de apenas quatro anos representa 12% do total de massacres no campo catalogados pela CPT entre 1985 e 2019, sendo que entre eles encontram-se casos paradigmáticos: os massacres de Colniza — no Mato Grosso, que deixou nove vítimas — e o de Pau D’Arco — no Pará, com dez vítimas — , ambos ocorridos em 2017. 

Ao tratar do massacre de Pau D’Arco, o relatório argumenta que conflitos agrários, embora tenham raízes históricas e estruturais, “passaram a apresentar novos contornos no período neoliberal, especialmente, no caso brasileiro, após o golpe de 2016 e a ascensão do neofascismo, que teve no mandato de Jair Bolsonaro seu maior impulsionamento”. 

O estudo explica que “em realidades de capitalismo dependente, uma das expressões do processo de precarização das vidas das maiorias sociais se faz pelo processo de militarização social. Precisamos perceber a passagem, por parte dos fazendeiros, da terceirização dos conflitos diretos com posseiros ou ocupantes de terra, que não mais se dá, centralmente, pela contratação mais pessoal de pistoleiros/jagunços da região, mas sim de modo mais profissional via contratação de empresas de segurança privada que, conforme uma de nossas fontes sigilosas relata, significam verdadeira ‘agromilícia rural, muito semelhante à milícia urbana’”. 

Recomendações

O relatório é encerrado com 14 recomendações, cujo objetivo é enfrentar o problema dos conflitos e massacres no campo e, em especial, a impunidade relacionada a esses casos. Dentre elas estão:

– Ampliação de instrumentos legais a partir dos quais se prioriza a mediação dos conflitos e a garantia de direitos humanos das populações vulneráveis;

– Determinar atuação da Polícia Federal para realizar investigação em casos emblemáticos relacionados à violência no campo e graves violações de direitos humanos;

– Criar mecanismos de monitoramento do cumprimento de mandados de prisão relacionados a crimes;

– Garantir a ampla participação da sociedade civil no processo de construção e implementação de tais medidas;

– Reunião entre o CNJ, o Ministério da Justiça e demais órgãos competentes para atuar na construção do protocolo unificado e integral de investigação, dirigido especificamente aos crimes cometidos por ocasião de massacres no campo; 

– Alterações legislativas para que imóveis em que tenha ocorrido massacre de trabalhadores e trabalhadoras rurais a mando dos proprietários de terra seja expropriado sem direito à indenização. 

Para ler a íntegra do relatório, clique aqui