Funeral do jornalista Samer Abudaqa, da Al Jazeera. Ele foi ferido e sangrou até morrer porque as tropas impediram seu resgate | Foto: X

Jornalistas estão sendo mortos durante o atual ataque de Israel a Gaza em um ritmo nunca visto na história moderna – com mais mortos apenas nas últimas 10 semanas do que em qualquer país em qualquer ano inteiro desde o início dos registros, denunciou o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), que tem sede em Nova Iorque.

“A concentração de jornalistas mortos na guerra Israel-Gaza é sem paralelo na história do CPJ e ressalta o quão grave é a situação para a imprensa no terreno”, disse a presidente do CPJ, Jodie Ginsberg, na quinta-feira (23).

O CPJ disse que pelo menos 68 profissionais da mídia – 61 palestinos, quatro israelenses e três libaneses – foram mortos desde os ataques de 7 de outubro do Hamas contra Israel e a retaliação do exército israelense à Faixa de Gaza.

O CPJ também pediu às autoridades internacionais que “conduzam uma investigação independente sobre os ataques para responsabilizar os perpetradores”.

Particularmente preocupante para o CPJ é o “aparente padrão de Israel de atacar jornalistas e suas famílias”. Israel também nega permissão para jornalistas estrangeiros reportarem desde Gaza.

Pelos números das autoridades palestinas, segundo a agência de notícias turca Anadolu, o total de jornalistas mortos é ainda maior, 101. O total inclui o recém morto Ahmed Jamal Al-Madhoun, vice-diretor da Agência Al-Rai palestina e diretor do Departamento de Mídia Visual.

Como comparação, de acordo com a ONG Repórteres sem Fronteira, 63 jornalistas morreram durante os 20 anos de duração da guerra do Vietnã.

CRIMES DE GUERRA

Segundo o CPJ, foram mortos jornalistas que usavam claramente insígnias de imprensa. “Em pelo menos dois casos, jornalistas relataram ter recebido ameaças de autoridades israelenses e oficiais das FDI antes que seus familiares fossem mortos.”

Em outubro, o repórter da Al Jazeera e chefe do escritório de Gaza, Wael Al Dahdouh, descobriu durante uma transmissão ao vivo que sua esposa, filho, filha e neto haviam sido mortos em um ataque aéreo israelense.

Além disso, o CPJ disse que 15 jornalistas ficaram feridos – alguns com gravidade, como a fotojornalista da agência France-Presse Christina Assi, cujas pernas foram arrancadas enquanto ela e um grupo de jornalistas cobriam confrontos transfronteiriços entre Israel e o grupo de resistência libanês Hezbollah.

Pelo menos 20 profissionais da imprensa também foram presos e outros relataram ter sofrido abusos das tropas israelenses – incluindo um fotojornalista da CNN Turca que foi derrubado e agredido a chutes durante uma transmissão ao vivo. Outros três jornalistas estão desaparecidos.

O coordenador do Programa do CPJ para o Oriente Médio e Norte da África, Sherif Mansour, afirmou que “a cada jornalista morto, a guerra se torna mais difícil de documentar e entender”.

Dois jornalistas da emissora libanesa Al Mayadeen foram mortos num ataque em 21 de novembro enquanto filmavam perto da fronteira com Israel. Para o ministro da Informação do Líbano, Ziad Makary, “faz parte da estratégia militar de Israel matar jornalistas para matar a verdade”.

ASSASSINATO DELIBERADO

Depois que as forças israelenses mataram o fotojornalista libanês da Reuters Issam Abdallah em um ataque que a Human Rights Watch e a Anistia Internacional chamaram de “aparentemente deliberado”, Ziad Makary, ministro da Informação do Líbano, afirmou que “está na estratégia militar de Israel matar jornalistas para que matem a verdade”.

Investigações anteriores – como a investigação sobre o assassinato em 2022 das tropas israelenses da renomada repórter palestina americana da Al Jazeera Shireen Abu Akleh – confirmaram que Israel atacou deliberadamente jornalistas e outros civis no passado.

Em maio, o CPJ publicou Deadly Pattern [Padrão Mortal], um relatório que descobriu que as tropas israelenses mataram pelo menos 20 jornalistas nos últimos 22 anos com total impunidade. Embora alguns dos jornalistas mortos tenham sido estrangeiros – incluindo a repórter italiana da Associated Press Simone Camilli e o cinegrafista e cineasta britânico James Miller -, a grande maioria das vítimas foi palestina.

As forças israelenses também atacaram redações em todos os grandes ataques a Gaza, incluindo em maio de 2021, quando a Torre al-Jalaa, de 11 andares, que abrigava escritórios da Al Jazeera, da Associated Press e de outros meios de comunicação, foi completamente destruída em um ataque aéreo.

O novo relatório do CPJ chega no momento em que o número de mortos na guerra de 77 dias de Israel em Gaza ultrapassou 20 mil, com mais de 50 mil outros palestinos mutilados ou desaparecidos. Mais de 1,9 milhão dos 2,3 milhões de habitantes do enclave sitiado também foram deslocados à força, com a maioria de suas casas danificadas ou destruídas pelos bombardeios israelenses. Os habitantes de Gaza também enfrentam um risco iminente de fome e doenças contagiosas.

AL JAZZERA PEDE INVESTIGAÇÃO

Rede de TV árabe Al Jazeera decidiu encaminhar ao Tribunal Penal Internacional (TPI) o assassinato de seu cinegrafista Samer Abudaqa, que foi atacado por um drone israelense quando cobria um ataque a uma escola em Khan Yunis em 16 de dezembro e sangrou até morrer, porque as tropas israelenses impediram que o socorro chegasse até ele.

No ataque, o chefe do escritório da Al Jazeera em Gaza, Wael Dahdouh, fora atingido por estilhaços no braço, mas conseguiu chegar ao Hospital Nasser.

“A Al Jazeera Media Network reitera sua denúncia e condenação do crime de assassinato de seu colega, Samer Abudaqa, que dedicou 19 anos com a Rede para cobrir o conflito em curso nos territórios palestinos ocupados”, disse o comunicado da rede.

“Além do assassinato de Abudaqa pelas forças de ocupação israelenses na Faixa de Gaza, o arquivo legal também abrangerá ataques recorrentes às tripulações da Rede que trabalham e operam nos territórios palestinos ocupados e casos de incitação contra eles.” Atacar jornalistas é um crime de guerra nos termos do artigo 8.º do Estatuto de Roma.

“Estamos carregando essa mensagem humana, estamos carregando essa mensagem nobre”, disse Dahdouh em seu elogio fúnebre no funeral de Abudaqa, enquanto os enlutados ao seu redor choravam. “Continuaremos a cumprir o nosso dever com profissionalismo e transparência.”

Anteriormente, a Al Jazeera já havia apresentado um pedido formal ao TPI para investigar e processar os responsáveis por matar a tiros a veterana repórter de televisão Shireen Abu Akleh em maio de 2022 enquanto cobria um ataque militar israelense ao campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia ocupada.

REUTERS PROVA CRIME DE GUERRA

No início de dezembro, a Reuters publicou o resultado de sua investigação sobre a morte no Líbano, na fronteira, de seu cinegrafista Issam Abdallah, e o ferimento em outros seis repórteres em 13 de outubro, que revelou que uma tripulação tanque israelense disparou em rápida sucessão dois projéteis contra os jornalistas que transmitiam ao vivo.

“As evidências que temos agora, e que publicamos hoje, mostram que uma tripulação de um tanque israelense matou nosso colega Issam Abdallah”, disse a editora-chefe da Reuters, Alessandra Galloni.

O grupo de jornalistas de várias emissoras e agências estava claramente identificado, usava coletes e capacetes azuis, a maioria com “PRESS” [imprensa] escrito em letras brancas. O assassinato ocorreu a pouco mais de um quilômetro da fronteira israelense, perto da aldeia libanesa de Alma al-Chaab.

“Não estávamos nos escondendo debaixo das árvores nem nada. Éramos claramente sete jornalistas bem marcados, com coletes de imprensa, capacetes e um carro com ‘TV’ ligado, parados numa área aberta em frente a uma instalação militar israelense, talvez a dois quilômetros. Eles sabiam que estávamos lá há mais de uma hora”, disse o jornalista sobrevivente, Collins, da AFP.

A Reuters conversou com mais de 30 autoridades governamentais e de segurança, especialistas militares, investigadores forenses, advogados, médicos e testemunhas para reunir um relato detalhado do incidente. A agência de notícias analisou horas de vídeos de oito meios de comunicação da região na época e centenas de fotos de antes e depois do ataque, incluindo imagens de satélite de alta resolução.

Também reuniu e obteve evidências do local, incluindo estilhaços no chão e encrustados em um veículo da Reuters, três coletes à prova de balas, uma câmera, um tripé e um grande pedaço de metal.

UMA LONGA LISTA DE REPÓRTERES MORTOS

Já no primeiro dia, 7 de outubro, nas primeiras horas desta guerra, enquanto cobriam a resposta de Israel ao ataque do Hamas, os fotojornalistas Ibrahim Lafi, Mohammed al-Salihi e Mohammad Jarghoun foram todos mortos em Gaza. Três dias depois, em 10 de outubro, o editor-chefe da mídia local Al Khamissa, Saīd al-Tawil, seu correspondente Hisham al-Nawajha e o fotojornalista da Agência de Notícias Palestina Khabar Mohammed Soboh foram mortos por um bombardeio enquanto cobriam o conflito. Na mesma noite, quatro outros jornalistas foram mortos em suas casas, juntamente com vários membros das suas famílias, por bombardeios.

Nos dias que se seguiram e até hoje, o número de jornalistas mortos continua a aumentar, quase um por dia, em média. No dia 30 de outubro, três correspondentes da Palestine TV, o canal público oficial da Autoridade Palestina na Cisjordânia, foram mortos em bombardeios às suas casas.

Dos 9 jornalistas mortos em 7 dias desde o início de novembro, 3 morreram no dia 2 de novembro, dia da luta internacional contra a impunidade dos crimes cometidos contra jornalistas.

O fotojornalista da Reuters, Issam Abdallah, foi morto no sul do Líbano em 13 de outubro, durante bombardeios que feriram seis dos seus colegas que trabalhavam para a AFP, Reuters e o canal do Catar Al Jazeera.

Em 7 de outubro, quatro jornalistas israelenses foram mortos durante o ataque do Hamas aos kibutzim nas imediações da Faixa de Gaza, incluindo o correspondente da mídia YNet, Roee Idan, morto com sua família. Falta saber se morreram sob o ataque do Hamas, ou quando da operação de retomada pelas tropas israelenses, com uso de tanques e helicópteros de guerra.

Fonte: Papiro