O ponto cego do antirracismo
Os comunistas vivem no mundo capitalista. Está é a situação dada e sobre a qual paira o âmbito deste escrito.
Spartphones, rede social, futebol e música são alguns produtos do desenvolvimento adquiridos no mercado por pessoas de todo o espectro de pensamento político para a realização do labor ou do prazer. Isso é inevitável. Mas imerso nestas relações impostas pelo capital, é possível e necessário fazer algumas escolhas que se convertem em luta antirracista.
O ponto cego do antirracismo é uma zona das relações sociais onde as escolhas, pela aparência de irrelevantes para a luta contra o racismo, não são pensadas como estratégicas. No ponto cego, um conjunto de ações ou inações se realizam e contradizem a luta do agente.
Fora dessa zona, por exemplo, é possível observar a denúncia militante contra um vereador de Caxias do Sul que atacou trabalhadores baianos escravizados nas vinícolas do sul, mas no ponto cego não atenta se o vinho que consome tem origem nas vinícolas escravistas. Comemoramos o TAC – Termo de Ajustamento de Conduta de R$7 milhões assinado pelas 3 vinícolas, de onde R$ 2 milhões seriam destinados aos trabalhadores escravizados, mas no ponto cedo não observamos que o valor do acordo não cumpria um dos seus objetivos: o pedagógico. Somente uma das vinícolas, a Aurora, teve uma sobra de faturamento (como as cooperativas chamam o lucro) em 2022 de R$ 136 milhões (18% do faturamento de R$ 756 milhões). Ainda que fosse somente a vinícola Aurora a escravizar 207 trabalhadores, pagar R$ 7 milhões (5% do lucro) para escravizar pessoas parece um negócio bastante vantajoso. Os termos deste acordo, portanto, não contribuíram na luta antirracista, mas ao contrário enfraqueceram por ser um ponto não visto. Cego.
O que não dizer da música? Existem 2 conglomerados que dominam o mercado musical no Brasil: A Universal Music e a Sony Music. Por meio de seus poderios econômicos, transformaram a rica musica brasileira em outra riqueza, mas para isso era necessário expurgar dela elementos que inviabilizariam sua expansão nos mercados internacionais. Nessa acepção, a musica baiana, embebida de elementos da ancestralidade africana, desde o islamismo egípcio até a gastronomia nigeriana, perde seu caráter de resistência e história e é transformada em Axé Music. Noutra banda, o forró, música sazonal, é apropriado pela indústria e transformado numa versão instagramável onde não cabe a zabumba nem o pé de chinelo, para ser vendido o ano inteiro sob a alcunha de Sertanejo. O estilo musical “Arrocha” de Candeias vira “Sofrência” nacional, uma subdivisão do Sertanejo.
Mas este modelo mercadológico internacional da música precisa de veículos. O primeiro deles é a mídia onde o jabá opera com tanta força que é possível ouvir “Zona de Perigo” de Leo Santana ecoando do fundo de sua mente. O outro veículo é o próprio Leo Santana, no exemplo dado, o artista que veicula e reverbera o produto “música”. Não é mera coincidência que os artistas da Universal Music tenham ganhado com a melhor música cinco, dos sete últimos carnavais de Salvador. Leo Santana e a música Zona de Perigo foram os vencedores do carnaval de Salvador 2023. Tanto o cantor como a música são de propriedade da Universal Music do Brasil.
Dançamos, no carnaval de 2023, uma música de propriedade, assim como o cantor, de um grupo empresarial multinacional que trabalhou em cada ponta para que a música baiana perdesse seus principais elementos negros: a resistência e a historicidade. Não vimos.
Reproduzimos nas redes sociais um artista que condicionava alimentar os necessitados, pretos dito de outra forma, com cestas básicas à visibilidade de sua live no Instagram.
Anos antes, em 2019, enquanto os antirracistas dançaram a coreografia de “Teleguiado”, música gravada por Ivete Sangalo vencedora do carnaval de Salvador daquele ano, Paulo Lima, seu chefe e presidente da Universal Music Brasil, mantinha sua mulher Helena Tavares de Souza Lima em cárcere privado, simplesmente por não aceitar o fim do relacionamento. Se nem Ivete repudiou o fato, porque os antirracistas haveriam de saber? “Vai passar, tá passando, já passou” era o que dizia a música campeã cantada por Ivete, cantora também de propriedade da Universal Music.
Essa mesma Universal Music e essa mesma cantora Ivete que proibiram Elza Soares de gravar “Sá Marina”, música de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar e sucesso do repertório de Wilson Simonal, devido à exclusividade. A cantora já tinha prensado 5.000 cópias do seu disco com a música quando resolveram embargar. Em entrevista sobre o assunto Elza, disse: “Tivemos que parar com tudo. Foi uma porrada na boca do estômago”.
Após prensar mais 2.000 cópias do disco, agora sem a música, a Universal Music resolve “abrir mão da exclusividade”, mas não da música. E no ano de 1999 Elza soares lança o disco “Elza ao Vivo – Carioca da Gema” sem a música e Ivete Sangalo lança seu primeiro disco “Ivete Sangalo”. Ao lado da música “Sá Marina”, o disco apresenta uma outra chamada “Canibal / Citação Musical: Brincar de Índio” de autoria da própria Ivete, cujo clipe gira em torno da romantização do estupro.
O estrupo romantizado no clipe de Ivete Sangalo em 1999, atingiu a marca histórica de 74.930 em 2022, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. Por dia, foram estuprados em 2022, 116 corpos negros.
Sem esgotar o tema, o ponto cego do antirracismo opera sorrateiramente, aproveitando o desconhecimento e o gozo geral.
*Petroleiro, Diretor do SINDIPETRO Bahia e da CTB-BA.