Compreendida a questão central da economia política brasileira, apresentada na parte 1, a partir daqui, importa destacar o que se quer com um novo projeto nacional de desenvolvimento antirracista e democrático (novo PND). O que o diferencia de outros projetos já testados ou em curso no Brasil? Como negros(as) e indígenas são vistos nesse projeto? Meros produtores e consumidores de bens e serviços ou agentes essenciais das forças produtivas da sociedade? E como mobilizá-los para construção do referido projeto?

               Em primeiro lugar, é preciso romper com a teoria furtadiana, que identifica nos negros o “problema” da mão de obra para o desenvolvimento econômico nacional pós-abolição e, ao mesmo tempo, responsabilizou os próprios escravizados e seus descendentes pela exclusão e marginalização a que foram submetidos no novo modo de produção pós-escravista. A interpretação de Celso Furtado, considerado o patrono dos economistas brasileiros, continua sendo a base das formulações de políticas de desenvolvimento e muitos intelectuais influentes dos partidos de esquerdas também sustentam os pressupostos definidos por Furtado, em seu celebre livro “Formação Econômica do Brasil”, e mesmo em “História Econômica do Brasil”, de autoria de Caio Prado Júnior. São erros de leitura da realidade brasileira que, ao não considerar o racismo que estrutura as relações socioeconômicas, precarizam ou destroem vidas de milhões de pessoas, de inúmeras gerações, no pós-abolição.

              Em segundo lugar, negros(as) e indígenas são partes fundamentais das forças produtivas. Numa sociedade capitalista, sob a égide da democracia burguesa, o papel do Estado para mediar as relações de produção é crucial. Vale destacar que o discurso hegemônico atual propugna que “a força do empreendedorismo e da inovação da iniciativa privada[**]” é a libertação e o único caminho possível para o desenvolvimento. Trata-se de mais um estratagema para mascarar a crescente precarização das relações trabalhistas, manter privilégios e impedir qualquer alteração na base da pirâmide, desenhada pela exploração de classe.  

                Em toda história do mundo capitalista, o setor público é o principal agente indutor do desenvolvimento econômico do Estado-Nação. Pode-se afirmar, sem embargo, que ele escolhe os vencedores e perdedores. Até o momento, negros e indígenas têm sido os perdedores e é hora de mudar o jogo. Por isso, um novo PND precisa apontar decididamente a necessidade de investimentos para o empoderamento econômico da população negra e indígena, compreendendo o cumprimento de metas objetivas em relação ao acesso à terra, educação de qualidade, que estimule o pensamento crítico e que seja transformadora; tem que gerar emprego e garantir financiamento de negócios dos segmentos mais impactados pela falta de oportunidade, a exemplo de mulheres e homens negros.

             Mesmo nos marcos do capitalismo altamente dependente, a África do Sul, com o fim do apartheid, desenvolveu as chamadas ações afirmativas, no sentido de incorporar a grande massa de negros e negras, despossuídos, numa agenda de oportunidades, ainda que não alcance a todos e todas. Tal iniciativa é parte do longo e difícil caminho de reconstruir o país, desmontando o edifício de uma sociedade que foi brutalmente racializada. Lá, os negros, que são a maioria populacional, assumiram protagonismo político, ao contrário do Brasil, que empurrou a população negra e indígena para a marginalização socioeconômica e política, após o regime escravista.  

               Com efeito, a escravidão e a imigração resultaram do interesse econômico de maximização de lucros de fazendeiros, donos de fazendas de café e demais proprietários de mão de obra escravizada. Nessa linha, compreende-se que a classe dos líderes brasileiros, destacadamente paulistas, utilizando-se do Estado, tomou uma decisão monopsônica, exerceu uma posição de domínio de mercado com fito de manter seus retornos econômicos e estabeleceu uma desigualdade imensa, já que a imigração foi “bondosamente” subsidiada pelo Estado. Portanto, a abolição não foi neutra. Ela significou a manutenção dos mecanismos de concentração das riquezas existentes dentro da coletividade nacional, cujo legado se manifesta nos abjetos indicadores de violência e miséria que há 135 anos perduram contra “os condenados da terra”.

           Em terceiro lugar, o racismo impregnado nas instituições e nos aparelhos estatais se constitui como o problema fundamental a ser reconhecido e decisivamente enfrentado em todas as suas formas de manifestação e operacionalidade, especialmente nas esferas econômica e política.

            A população negra e indígena é diversa e sofre forte influência ideológica da classe dominante, via mídia hegemônica, empresariado e organizações religiosas comprometidas com os interesses de mercados. A elite racista dominante tem o interesse de mantê-la inerte, alienada e incapaz de conduzir o próprio destino. A esquerda tem o dever de conhecer essa parcela do povo brasileiro profundamente, compreender suas necessidades, influenciar e ser influenciada por ela, a fim de mobilizá-la para empreender um novo PND que seja emancipador. É uma tarefa possível e urgente. O partido Comunista do Brasil precisa se lançar a essa tarefa pra ser, de fato, uma organização capaz de materializar seu objetivo de construção do Socialismo, compreendendo a classe trabalhadora do nosso país por inteiro.  E nós, negros(as) e indígenas, não temos nada a perder, a não ser os grilhões que o racismo  insiste em nos impor, ainda que pareçam invisíveis para alguns.

Sem dúvida a economia política é o ambiente especial em que preconceitos e discriminações raciais, interseccionados com as questões de classe e gênero, são fortemente turbinados para manter as relações de domínio próprias do racismo, mesmo com democracia, livre mercado, liberdades individuais e funcionamento das instituições. Com esta compreensão, é válido asseverar que o novo PND é o caminho e o rumo para acelerar o processo de sua eliminação, tendo como prioridade o protagonismo da população negra e indígena.  O PCdoB tem a oportunidade de se renovar, crescer e recuperar um espaço especial no sentimento da maioria da população. A hora é agora!

                    Nessa tarefa, é imperioso ouvir Vladímir Ilitch Lénine: o marxismo não é um dogma morto, mas um guia para a ação. É preciso mudar atitudes, tomar providências para que o partido viva a realidade do povo, esteja com a classe trabalhadora e com ela realize as transformações que o país precisa.  Não basta ocupar cargo nos governos e nos parlamentos. É preciso ter consciência de que o papel histórico do PCdoB é transformar a sociedade.  


*Alexandro Reis é secretário Estadual do PCdoB/BA de Combate ao Racismo

[**] Mazzucato, Mariana. O Estado Empreendedor. Desmascarando o mito do setor público vc setor privado.