O objetivo deste texto, a partir do exame do documento base da I Conferência Nacional de Combate ao Racismo do PCdoB, é contribuir para a ação teórica e prática do partido no enfrentamento do problema central das desigualdades no Brasil. Esta contribuição é dividida em duas partes. A primeira trata da compreensão conceitual e política do fenômeno sob a ótica marxista, e a segunda apresenta uma análise crítica sobre o projeto nacional de desenvolvimento antirracista e democrático.  

Neste giro, o ponto de partida expõe que o atributo essencial do racismo é estabelecer, manter e reproduzir permanentemente a hierarquização e o domínio de um grupo social sobre um outro. O fenômeno, compreendido desta forma, origina-se e desenvolve-se no marco histórico da modernidade, especialmente no novo modo de produção que supera o sistema feudal. Seu funcionamento, eficiência, eficácia e efetividade dependem da formulação, disseminação e fixação de um conjunto de ideias justificadoras de ações e atitudes sutis ou explicitamente nefastas, seja dentro de regimes escravocratas, seja no âmbito de estruturas sociais democráticas, liberais e de economias de mercado.

A legitimidade e longevidade da ideologia racista são garantidas pelos centros de produção científica e seus canais de difusão, incluindo mídia, empresas, igrejas etc., cuja matriz é eurocêntrica e carrega o viés de manutenção das vantagens dos dominantes sob os dominados. A operacionalidade perfeita do racismo é realizada com o suporte estatal, tendo em vista a alocação de recursos e a confecção do ordenamento jurídico a ser seguido pelos membros da sociedade, de modo que o Estado exerce o papel singular de protetor do atributo essencial mencionado.

Portanto, o exame crítico do pensamento econômico e a elaboração de políticas de desenvolvimento, no Brasil em particular, que deixa escapar esta linha fundamental de interpretação resulta em formulações teóricas e metodológicas equivocadas em favor da própria reprodução perversa do racismo.

Nesta linha, é oportuno destacar que o racismo é parte integrante e indissociável do colonialismo e do imperialismo capitalista. Nos termos de Olivier C. Cox **:

O antagonismo racial é parte e parcela da luta de classes, porque é desenvolvido dentro do sistema capitalista como um dos seus traços fundamentais. Pode ser demostrado que o antagonismo racial, como o conhecemos hoje, nunca existiu no mundo antes de 1492; além do mais, a percepção racial se desenvolveu concomitantemente com o desenvolvimento do sistema social moderno (Cox, 1959).

A realização da Conferência de Berlim (1884-85), que dividiu o continente africano, conforme os interesses políticos e econômicos das potências europeias, como marco histórico orientador de decisões sustentadas por formulações pseudocientíficas em desfavor dos povos colonizados e explorados na África e na diáspora, é prova cabal da afirmação de Cox.

Coincidentemente, entre 1880 e 1920, a ideologia do branqueamento grassa fortemente no Brasil, nos termos de Thomas E. Skidmore, citado por Clóvis Moura:

Desde que a miscigenação funcionasse no sentido de promover o objetivo almejado, o gene branco “devia ser” mais forte. Ademais, durante o período alto do pensamento racial – 1880 a 1920 – a ideologia do branqueamento ganhou foros de legitimidade científica, de vez que as teorias racistas passaram a ser interpretadas pelos brasileiros como confirmação das suas idéias de que a raça superior – a branca –, acabaria por prevalecer no processo de amalgamação.

A ideologia do branqueamento é o suporte indispensável à manutenção da estrutura de poder e privilégios escravagistas sem a existência institucional da escravidão. Evidente que a sociedade brasileira pós-escravagista é um solo fértil para reprodução e disseminação de premissas e construções teóricas e práticas desprovidas de quaisquer fundamentos verdadeiramente científicos. Por essa ótica moderna/colonial, os oprimidos são meros objetos da análise a partir de um suposto distanciamento do observador-pesquisador. Nessa esteira, opta-se por explicar e afirmar os preconceitos e discriminação contra a população negra e indígena, ao passo em que se estabelecem discursos acadêmicos e mecanismos políticos, jurídicos e econômicos a fim de impedir que negros, negras e indígenas sejam protagonistas, sujeitos históricos, produtores de conhecimento, de riquezas e elementos ativos na sociedade.

O racismo está na divisão internacional do trabalho e em todas as relações de domínio desenvolvidas na modernidade. Por aqui, ele está profundamente arreigado no pensamento social, e alimentou o projeto eugenista que visava, inicialmente, substituir e depois eliminar o elemento negro e indígena da nova sociedade, agora republicana, sem o instituto da escravidão e sob a égide do trabalho livre e assalariado. Doravante, queria-se um país parecido com a Europa, sem os negros(as) e indígenas, inclusive suas culturas, conhecimentos e religiões. (Continuação na parte 2)

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BARBOSA, Muryatan S. A razão africana: breve história do pensamento africano contemporâneo. São Paulo/SP: Todavia, 1ª edição, 2020.

FANON, Frantz … (et. al.). Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista. Org.: Jones Manoel e Gabriel Landi Fazzio. São Paulo/SP: Autonomia Literária, 2ª edição/1ª impressão, 2019.ed

MAZZUCATO, Mariana. O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. Tradução Elvira Serapicos – 1ª ed. – São Paulo: Portifólio-Penguin, 2014.

MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo/SP: Editora Ática, 1988.

PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. Documento base da 1ª Conferência Nacional de Combate ao Racismo: por um novo projeto nacional de desenvolvimento, antirracista e democrático! Disponível em: https://pcdob.org.br/conferencia-de-combate-ao-racismo-2023/ Visto em: 16/07/2023.

SAMPAIO, Elias de Oliveira. Dialogando com Celso Furtado: ensaios sobre as questões da mão de obra, o subdesenvolvimento, e as desigualdades raciais na formação econômica do Brasil. São Paulo, SP: Hucitec Editora, 2019.


*Alexandro Reis é secretário Estadual do PCdoB/BA de Combate ao Racismo.

**Foi um sociólogo trinitário conhecido por seu ponto de vista marxista sobre o fascismo. Ele foi o fundador da perspectiva da teoria do sistema-mundo, um importante estudioso do racismo e seu relacionamento com o desenvolvimento do capitalismo global, e um membro da Escola de Chicago de Sociologia.