O trabalho é fundamental para a formação do ser social. Embora as mulheres sempre tenham trabalhado, esse trabalho não é necessariamente visível e reconhecido. O assalariamento tornou a atividade laboral das mulheres visível e quantificável. Cabe destacar que o trabalho feminino é um fio condutor para ler o lugar das mulheres na sociedade. Assim, o ingresso da mulher no mercado formal de trabalho significou um avanço.

Mas os dados permitem entender que essa inserção é marcada pela desigualdade, pela sobrecarga doméstica e dos cuidados com as pessoas. O fato é que as desigualdades persistem quanto ao tempo de trabalho, quanto aos salários, ao acesso aos empregos qualificados, à estagnação do preenchimento misto de profissões, às desigualdades nas aposentadorias ou ainda quanto à divisão das tarefas domésticas, todas com maior impacto para as mulheres negras.

Essas desigualdades persistem, apesar de conquistas sociais, de políticas públicas e de textos legislativos (SILVERA, 2014). No Brasil, grande são os impactos  da crise econômica mundial, agravada pela política conservadora do governo eleito em 2018, que atentou contra o Estado de direito e impôs uma reforma trabalhista e previdenciária com graves consequências para os trabalhadores, em especial  para as mulheres.

Os estudos de gênero sobre o mundo do trabalho evoluíram, passando por ideias e visões como a de que a classe operária tem dois sexos (SOUZA-LOBO, 1991), o destaque para a divisão sexual do trabalho, o reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho – mesmo quando não remunerado –, até a visão interseccional, que inclui a raça como elemento estrutural, junto a classe e gênero.

No Brasil, essa abordagem ganhou força a partir  dos anos 2000, chamando atenção para as desigualdades entre as mulheres, e não apenas entre os sexos. Para Suely Carneiro (2003 apud SORJ, 2019, p. 105), com o crescimento da participação das mulheres negras na academia e a mobilização política do Movimento Negro, em especial das feministas negras, as críticas ao tratamento universalizante da categoria mulher se expandiram. Passou-se a usar o termo “mulheres” para demarcar esse novo campo de estudos. As perspectivas interseccionais problematizaram a categoria de gênero diante da diversidade de experiencia das mulheres. Não só as diferenças entre as mulheres  foram ressaltadas, mas também as desigualdades entre elas passaram a ser problematizadas (SORJ, 2019). A visão interseccional  vem procurando mostrar como as múltiplas desigualdades de gênero, classe e raça estruturam uma série de posições que se expressam nos indicadores do mercado de trabalho.

A mulher negra ocupa a base de remuneração e ocupa as piores posições, indicando a convergência da tríplice opressão de gênero, raça e classe. Em 2014, 14% das brasileiras ocupadas eram empregadas domésticas. Para as mulheres negras, essa ocupação é ainda mais relevante: 17,7% eram trabalhadoras domésticas, contra 10% das brancas (PINHEIRO et al., 2016, apud SORJ, 2019).

A publicação dos livros de Angela Davis no Brasil, dentre outros sobre as mulheres negras, ressaltou ainda mais o imbricamento de gênero, classe e raça. No prólogo do livro Trabalho, logo existo, Angela Davis (2019) chama atenção para o fato de que o trabalho doméstico encarna a relegação histórica e ideológica do trabalho das mulheres à esfera doméstica, à esfera privada, porque as economias capitalistas não reconhecem o trabalho reprodutivo que permite o trabalho produtivo. Esse trabalho foi desvalorizado em sua versão tanto não remunerada  quanto remunerada. “O trabalho doméstico é marcado pela dupla herança da escravidão e do colonialismo e pelas hierarquias raciais que nos lembram que a escravidão e o colonialismo ainda não foram inteiramente relegados ao passado” (DAVIS, 2019, p. 26).

Essa consideração vale para o Brasil, cuja formação foi marcada  pelo escravismo colonial. Nos mais de 300 anos de escravidão, o predomínio de uma elite agrária produziu profundas violências para as mulheres, especialmente para as negras. As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que trabalhou durante séculos como escravas, na casa grande, nas lavouras ou nas ruas como quituteiras, e hoje enfrentam maiores discriminações em todas as esferas da sociedade brasileira.

Ou, como compuseram Caco Velho e Piratini, “Enquanto a chibata batia no seu amor, mãe preta embalava o filho branco do senhor”. A questão do racismo era uma constante nas letras Caco Velho, pseudônimo de Mateus Nunes, cantor, instrumentista e compositor brasileiro que pode ser considerado um dos primeiros sambistas do país, em parceria com Piratini.

Concluímos com as palavras de Angela Davis (2019), de que “um dos grandes desafios do século 21 consiste em reconhecer a que ponto o racismo oriundo do colonialismo e da escravidão continua a influenciar as evoluções socioeconômicas contemporâneas, sobretudo no tocante às mulheres, e, portanto, paralelamente inventar estratégias que enfim nos permitam esboçar o processo muito tempo retardado, visando purgar nossas sociedades dos vestígios ainda atuantes do colonialismo e da escravidão” (DAVIS, 2019, p. 27).

*Integrante do Comitê Central do PCdoB e da Coordenação Nacional do Fórum do PCdoB sobre a Emancipação das Mulheres.