Uma das características essências das lutas dos (as) comunistas, em quaisquer frentes nas quais atuamos é compreender o entrelaçamento profundo entre infraestrutura e superestrutura, um dos conceitos mais importantes da teoria marxista-leninista.  É a partir desse elemento teórico essencial que compreendemos que a produção material da vida, ou seja, as formas pelas quais a humanidade  se organiza para garantir a sua sobrevivência econômica, estabelece os pilares fundamentais para a produção das nossas formas de ser e pensar, de estabelecer as relações sociais estruturas  sob as quais vivemos. Ainda que essas relações sociais sejam dinâmicas e sujeitas a mudanças conforme avançamos nas nossas lutas por direitos e para alterar formas de ser e pensar equivocadas, mudanças efetivamente transformadoras  sempre se dão à medida em que as relações sociais de produção também são alteradas. Quando as relações de produção, a infraestrutura predominante – aqui no caso, o capitalismo – não são alteradas na sua essência  as  conquistas jurídicas e mesmo avanços na forma de encarar o mundo são limitadas e sujeitas a retrocessos.

Nosso país tem uma trajetória histórica de “transições sem rupturas” ou de “modernizações conservadoras”.  As mudanças econômicas – e políticas, jurídicas, culturais – que redefiniram a trajetória do país ao longo do que chamamos de “ciclos civilizacionais”, ocorreram invariavelmente sob comando de frações das classes dominantes em cada período histórico. Não há espaço aqui para um detalhamento mais profundo sobre esses  momentos chave de mudanças no país, contudo, é importante registrar que as transformações decorrentes foram ao mesmo tempo importantes mas limitadas, e, de modo muito objetivo, não trouxeram alterações na estrutura essencial de distribuição das riquezas socialmente produzidas. Mesmo com mudanças nas frações de classe ocupando o centro do poder político na relação muito intensa com as alterações na economia nacional, a grande maioria do povo brasileiro seguiu numa condição de subalternidade profunda. Não é à toa que o Brasil, sendo hoje uma das maiores economias do mundo continua sendo um dos países mais desiguais.  E muito menos é à toa que o racismo persista no Brasil, como um elemento de perversidade cultural-ideológica, mas, acima de tudo, como um instrumento de ampliação da acumulação de capital pela classe dominante.

O racismo  está diretamente ligado ao processo histórico de construção de uma economia espoliadora das riquezas naturais comandada pelos portugueses em consórcio com outras nações europeias,  imposta aos povos originários e africanos escravizados durante o período colonial, prolongando-se até o fim oficial da escravidão em 1888. Mesmo o fim da escravidão vivenciou também um longo processo de transição sem ruptura, sob o comando de frações da classe dominante da época.  Evidente que as lutas contra a escravidão foram intensas, radicalizadas, ao longo de todo o período histórico da sua vigência, marcando de forma muito profunda a própria formação do povo brasileiro. Mas é preciso ainda levar em conta que a transição entre a escravidão e o trabalho chamado “livre”, foi também decorrência de um conjunto amplo de fatores vinculados aos interesses do capitalismo capitaneado à época pelo imperialismo britânico e o desenvolvimento no Brasil de uma nova fração da classe dominante ligada àquela lógica.

Vivenciou-se no país, entre 1850 (fim do tráfico externo de escravizados) e 1888, mais um desses exemplos de transição sem ruptura, ao lado da intensificação das lutas contra a escravidão no âmbito do “movimento abolicionista”, especialmente a partir de 1870. Aquela transição foi uma espécie de paradigma sobre como a classe dominante brasileira é extremamente hábil para se adaptar aos novos tempos abrindo mão de alguns anéis para preservar as mãos. Lei do Ventre Livre (1871) e Lei dos Sexagenários (1885) foram contorcionismos protelatórios. E a própria “Lei Áurea” (1888), que decretou o fim jurídico da escravidão sem absolutamente nenhuma medida de integração econômica, política e social dos quase um milhão de escravizados (as) que ainda existiam no Brasil, foi um exemplo desse controle sobre o aparato estatal, a economia e a produção ideológica, de frações da classe dominante. Aliás, muito ao contrário: os anos imediatamente posteriores, já no período republicano, configuraram uma política de Estado de “apagamento”, exclusão deliberada, marginalização forçada, uma espécie de genocídio prolongado sem a matança imediata, em massa, pela força de armamentos.

O capitalismo tardio do Brasil, especialmente a partir do “nacional desenvolvimentismo”  dos anos 30 em diante, que reconfigurou nossa economia de modo intenso a partir da expansão industrial, tornando nosso país a nação capitalista que mais se desenvolveu no século XX, é mais um exemplo dessa permanente “modernização conservadora” e  a população negra em especial, colheu poucos benefícios desse enorme crescimento econômico. O povo brasileiro como um todo, composto essencialmente pelo proletariado, passados quase cem anos desse avanço econômico que posicionou o Brasil entre as 10 maiores economias do mundo, continua majoritariamente pobre, com uma renda média oriunda do trabalho extremamente baixa, na casa dos R$ 1.600,00 ao mês, conforme dados do IBGE de 2022. E a população negra e parda tem renda média mensal 40% menor do que trabalhadores (as) não negros, sempre conforme o IBGE.

É evidente que o combate ao racismo precisa ser feito de modo cotidiano em todas as frentes, no âmbito da “superestrutura”,  do ordenamento político, jurídico, cultural-ideológico, etc. Mas após 330 anos de escravidão e de mais de 130 anos após a sua extinção jurídica, é preciso considerar que os avanços foram muito limitados,  insuficientes.  A efetiva emancipação do povo brasileiro e da população negra em especial, não se dará nos marcos do capitalismo. Nele, somos mão-de-obra barata. Sob o capitalismo somos uma maioria proletarizada – para quem consegue ter emprego, formal ou informal – consorciada com outra massa impressionante de excluídos, um verdadeiro exército de força de trabalho excedente a pressionar para baixo a valorização da renda obtida com o labor. Lutar contra o racismo é lutar pelo socialismo, por um novo projeto nacional de desenvolvimento, pelo poder popular de fato. É tarefa de cada comunista ser antirracista e conjugar essa luta com aquela de caráter estratégico, a de tornar o Brasil uma nação socialista.

*Membro do Comitê Central, diretor da Escola Nacional João Amazonas, secretário de Organização do PCdoB da cidade de São Paulo.