Walter Sorrentino: Segurança pública e pacto democrático
Uma mexida e tanto no tabuleiro político-eleitoral. Os riscos democráticos da medida da intervenção federal no Rio precisam ser considerados como parâmetros importantes. Bloco governista ocupa espaço das candidaturas antissistema, põe Temer na disputa presidencial e desafia a oposição a reagir.
Por Walter Sorrentino*
Face a isso, Temer decretou a intervenção do Exército brasileiro na segurança pública do Rio, após 12 outras operações promovidas na cidade com os militares. Só que agora sob a figura de uma “intervenção federal”, a primeira desde a Constituição de 1988.
Claro que a medida vai ao encontro dos anseios dos cariocas, inclusive da parte mais carente da população. Mas o oportunismo político do governo foi unanimemente reconhecido. Torcendo pelo apaziguamento parcial e temporário da situação, certamente a favela vai agir com sabedoria: tentar aproveitar os benefícios, sem se iludir com tal oportunismo. Tuiuti 2018 que o diga.
São grandes os riscos da medida, tomada de improviso. Não foi consultado o Conselho da República nem o Conselho de Defesa, o que é previsto para tais casos. Dará, se aprovada pelo Congresso, ampla margem ao arbítrio. O propósito constitucional de agravos à ordem pública permitirá outras intervenções federais sobre legítimos governos estaduais em que condições? Quem arbitrará quanto a serem ou não legítimas? Pode-se revogar por esse meio, normas das constituições estaduais? Pode-se nomear um interventor com a condição de exercer cargo militar? Pessoa física, sim, pode até ser militar e ser nomeado interventor; mas um cargo militar no comando? Assombroso. Ainda mais: o crime organizado no Rio submergirá temporariamente e se deslocará para os Estados circunvizinhos; será decretada também intervenção federal neles? Até agora não se falou de investimentos emergenciais robustos para enfrentar a situação.
É evidente e indispensável, pois, a preocupação democrática com o pacto federativo e a Constituição. O que deveria ser um pacto democrático e pela paz na segurança pública, produzido pelo debate na sociedade e no Congresso movido por um governo legítimo e capaz, se transforma numa medida perigosa que se soma à enorme barafunda institucional do país.
O governo está brincando com fogo. A insegurança pública, o crime organizado, a infiltração das instituições por esses interesses, é a ponta visível do iceberg que é o caldeirão social em ebulição. Um desgoverno assim, não só agravou a situação do país, como não é capaz de resolvê-la.
A medida piora a barafunda institucional, política, social e econômica a que chegou o país, como resultado do rompimento do pacto democrático pelo impeachment e da cegueira das classes dominantes com uma nação. Isso foi coisa de bucaneiros, que aprofundou a barbárie social, atingiu interesses soberanos do país e avançou a pobreza.
Hoje, no mundo, manchetes estampam o descalabro, denegrindo a imagem do país. Intervenções na condição de polícia arrastam as Forças Armadas a uma situação indesejável e as dividem, não obstante o profissionalismo com que acatam ordens constitucionais o que é a base para o capital de confiança que ainda detêm na sociedade. O Exército (Comando Militar Leste), posto na condição de interventor federal, ameaça corroer aquela confiança e pode se aproximar de um ponto sem retorno muito perigoso para a nação, o de tornar rotineira ou permanente a intervenção militar com poder de polícia, tendo o povo como alvo da ação e não o combate precípuo na esfera da defesa nacional.
No STF, também se manifestam divisões, dado o açodamento e improviso do decreto. Aqui sim já se atingiu o ponto sem retorno, que é a intervenção aberta do Judiciário como protagonista político indevido. Segundo o ministro Barroso, o Judiciário será o poder moderador do século 21, após termos nesse papel o Imperador no século 19 e o Congresso no século 20. Barroso falou em “legitimidade” para isso, usurpando a soberania do voto popular representativo que, como se sabe, passa longe do Judiciário.
A Constituição brasileira hoje pode ser considerada prêt-a-porter. Ela vai sendo interpretada cotidianamente ao sabor dos acontecimentos e da luta política facciosa. São até invocadas à apreciação do STF, pelos próprios Ministros, normas constitucionais para decidir se de fato são constitucionais! Nesse clima, é só mais um espanto a declaração de Temer de que possa ser suspendido o decreto provisoriamente para votar a reforma da Previdência.
Muita coisa de fato está errada na segurança pública do Rio após 12 outras intervenções convocando o Exército sem lograr sucesso com permanência. Aos quase 30 anos da promulgação da Constituição, a área foi uma das áreas mais afetadas quanto ao vácuo constitucional que reza ser a segurança pública dever dos governadores mas ser exercido pelas Polícias Federal, Rodoviária Federal, civis, militares e Corpos de Bombeiros militares.
Integrar e articular essas diversas forças é um dos principais desafios brasileiros na área. A palavra-chave é uma Política Nacional de Segurança Pública integrada, um Fundo Nacional para investimento obrigatório em segurança pública, piso salarial nacional para os policiais, reformas estruturais no sistema prisional e jurídico envolvendo a Justiça, o Ministério Público e a Polícia.
Nunca é tarde para medidas sistêmicas e coordenadas. Hoje, ao contrário, se está no improviso com grande possibilidade de descontinuidade das medidas, ou tornando-as meramente paliativas, ainda mais com investimentos que rareiam na presente crise fiscal aprofundada pelo governo Temer.
A medida, apresentada como ofensiva, é demonstração dos impasses do bloco governista. Não pode ser subestimada, nem vale a pena combatê-la com fogos de artifício que relevem as dificuldades que tem a esquerda com o tema da segurança pública. Impõe-se um posicionamento sobre o decreto da intervenção federal que seja solidamente balizado pelas preocupações democráticas contra os riscos inerentes à intervenção do modo como foi feita e, ao mesmo tempo, ir ao encontro dos justos anseios da população carioca com propostas que apontem para soluções mais participativas e sistêmicas, compreendendo medidas emergenciais como a intervenção de uma Força Nacional efetivamente preparada para essas situações.
Só a oposição pode pautar tal debate na sociedade e é sua obrigação fazê-lo. Mas ela precisa repensar os termos de suas premissas e propostas sobre o tema da violência e do crime organizado.
Mas o fato foi político e almeja dividendos eleitorais. Há que considerar, então, o impacto da medida no cenário da disputa presidencial. O bloco político dominante sente o “bafo quente da arapiraca no cangote” quanto à reforma da previdência e Temer foi oportunista ao decidir esconjurar a possível derrota tentando formular nova pauta central no debate político, a questão da segurança pública.
As forças do bloco vivem o dilema básico de se travestir para as eleições com pretensa bandeira de reformismo liberal, dita de “centro”, depois de ter patrocinado medidas terroristas no mundo do trabalho, da aposentadoria e no teto de gastos públicos. Pior, numa economia que não acelera nem cria empregos suficientes, sem resultados, portanto, na vida do povo – o que aprofunda a crise fiscal com o congelamento da economia e da arrecadação – além de alienar patrimônio nacional que seriam indispensáveis à reindustrialização do país.
Não surpreende, pois, ter se transformado no centro das lutas de classe por seus interesses impedir Lula de concorrer à presidência em outubro. Esse bloco, sem Lula nas urnas, pode se dar ao luxo de alguma divisão no 1º turno e confluir no 2º, buscando ultrapassar as forças antissistema que se apresentam às eleições. Mas, tirando Lula, o PMDB e PSDB, em especial, também estão na mira da Lava Jato. O mais grave de tudo é que, com determinada evolução dos fatos, as eleições podem nem ser livres, nem legitimarem saídas para a crise.
Daí as disputas, divisões e impasses no bloco – quando um se mexe todos os demais se incomodam,a té os mais amigos. Na onda antissistema, Huck “desistiu da candidatura”. Ou foi “desistido” pelo xeque dado pela Globo, que se veria arrastada ao turbilhão. Pesou também o bolso familiar e a inexperiência política, como já ocorrera com as pretensas candidaturas de Silvio Santos, Datena e Ratinho. Mas… desistiu mesmo? Em situações excepcionais como as vividas muitas falsas soluções serão excepcionais e o timing justo é quase a metade da questão.
Marina, isolada, não se sabe por que ela acha que lucra jogando parada. Só demonstra fragilidade.
Bolsonaro e quejandos à direita sobrevivem e tentam pescar nas águas turvas. A intervenção no Rio atravessa a mensagem central do candidato e pode esvaziá-lo, porque “se der certo” os méritos seriam de Temer, ou radicalizá-lo na mensagem militarista que também o enfraqueceria eleitoralmente.
Alckmin é o caminho clássico da política – força de partidos, tempo de TV, deputados e senadores, governadores e prefeitos. Nesse rumo, ele já enfileirou Serra e Aécio, depois Dória, Huck e toureou FHC. Não pontua bem, mas tem cacife sim. No plano estadual manobra com Márcio França sem deixar de dialogar com Skaf do MDB e Kassab do PSD. Se for abalroado não será pela política, mas pela antipolítica da Lava Jato, o que pode muito bem ocorrer para fazer mais terra arrasada do sistema político e “justificar” a prisão de Lula.
É nesse ambiente que Temer parece imaginar uma aposta fatal: o decreto como espécie de Plano Real ou Cruzado para seu governo desqualificado pela absoluta maioria da sociedade, suplantando a pauta da reforma da previdência ao menos por ora.
Por que ele deixaria de ser um ator de primeira ordem, inclusive candidato a presidente? A aposta é alta, mas ele tem pouco a perder. O sábio Sarney aposta que só a máquina federal agrega 15-20% dos votos o que coloca Temer no páreo eleitoral. Pode arrastar Maia e o centrão, defender seu legado e, no limite, ter seu lugar de grande eleitor e impor condições aos tucanos para alianças. Tem máquina federal e talento político entre seus pares para fazer esse serviço.
Nesse cenário falta o terceiro campo, o das forças da esquerda política e social com as bandeiras progressistas e democráticas que o tempo exige. São forças de vulto e já o demonstraram, inclusive nas pesquisas eleitorais com o nome de Lula. No entanto, elas estão poderosamente desafiada face a esses desenvolvimentos, combinados com os efeitos da odiosa perseguição a Lula e sua condenação em 2ª instância.
Nessa rota, eleições livres e direito de Lula concorrer às eleições seguem imperativos políticos. Mas não há como desconsiderar cenários, ao contrário, cumpre preparar-se com antecedência pois são imperativas alternativas para facultar a essas forças comparecerem ao 2º turno eleitoral.
Não bastarão, na jornada até outubro, apenas agitação política e demarcação de campos. É preciso olhar a realidade de frente, como na prioridade à segurança pública, e considerar o estado de ânimo real das massas do povo e sua disposição ao protagonismo político com sua mobilização. Não encarar a realidade como ela é, sem idealização, ajuda o adversário e ilude as forças de apoio.
É preciso formular uma mensagem cristalina de retomada do crescimento econômico e dos empregos, sob um pacto democrático, em defesa do interesse nacional, da reindustrialização, de valorização do trabalho e em benefício das camadas populares e seus direitos.
Já há um programa comum para essa disputa, unindo PT, PCdoB, PDT, PSB e Psol, com as respectivas candidaturas presidenciais. É preciso, ainda, atentar mais para o fato de que só unidas programaticamente e agregando mais forças, concertando estratégias políticas em comum para garantir sua presença no 2º turno eleitoral, o bloco oposicionista nacional, democrático e popular será mais competitivo para vencer as eleições.
* É médico, vice-presidente nacional do PCdoB. Da coordenação nacional da Frente Brasil Popular. Diretor da União Brasileira de Escritores e preside o Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois.