Walter Sorrentino: Democracia e Reforma Política
O vice-presidente do PCdoB, Walter Sorrentino participou de um importante colóquio, nos dias 7 e 8 de agosto, em Porto Alegre. O evento reuniu trinta personalidades políticas, sociais, acadêmicas e intelectuais a convite do ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro.
Estavam presentes, além do coordenador, Aldo Fornazieri, Gleisi Hoffmann, Manoel Dias, Fernando Haddad, Nádia Campeão, Guilherme Boulos, Gilberto Carvalho, José Genoíno, Vicente Treva, José Machado, Silvio Caccia Brava, entre outros tantos, além de ex-ministra da Justiça da República Federal da Alemanha, Herta Däubler-Gmelin, convidada daquela Fundação.
Foram debatidos importantes temas: como os partidos de esquerda avaliam a situação da democracia? Como fortalecer os partidos políticos na conjuntura nacional? Em uma reforma política, como reduzir a fragmentação partidária e, ao mesmo tempo, assegurar a representatividade dos pequenos partidos ideológicos?
Leia abaixo a opinião do vice-presidente do PCdoB sobre o tema, democracia e reforma política:
“Parto da premissa de que a democracia no país é restrita e instável. Nos 87 anos desde que se instituiu o ciclo modernizador do Brasil, em 1930, tivemos diversas constituições, cinco presidentes e oito golpes de Estado contra a democracia.
Se falarmos ainda de bases econômicas e sociais para a inclusão social cidadania de todos os brasileiros, constata-se que só uma única vez convergiram desenvolvimento econômico com democracia e distribuição de renda no Brasil, de 2003 a meados de 2016.
O golpe parlamentar do impeachment, coonestado pelo Judiciário e apoiado por consórcio político, empresarial e midiático, agravou a crise política e institucional e o presente impasse brasileiro: temos um país conflagrado. A Lava Jato tem protagonismo político indevido, ele próprio partidarizado, e se volta contra o sistema político. Julgam-se redentores, uma espécie de tenentismo de toga (para lembrar os anos 1920), justiceiros. Seus agentes pretendem pescar em águas turvas no pântano.
Há como falar em solidez das instituições? Em verdade, hoje, sob a casca da Constituição de 1988, se está promovendo a implantação célere de uma nova ordem política, econômica e social, de índole ultraliberal, autoritária e neocolonial. Face a isso, qualquer saída e perspectiva passa por refundar o Estado democrático de direito, revogar medidas e reconstitucionalizar o país, a saber, disputar relação de forças mais favorável para uma nova Constituinte, enquanto a Constituição de 1988 se mantém ainda como pilar de resistência.
O essencial para as saídas e perspectivas é formular uma agenda de Estado face ao caráter conservador do Estado brasileiro – reformas estruturais democráticas do Estado nos sistemas político, jurídico, financeiro e tributário, além das reformas sociais e a democratização dos meios de comunicação, como medidas decisivas para isso. Não disputar essa agenda foi um erro básico da experiência de governo e custou caro.
Quando se discute o sistema político, eleitoral e partidário, é preciso partir das singularidades brasileiras. Temos um projeto inconcluso de nação, uma democracia jovem, num país com grande extensão e diversidade, vantagens estratégicas significativas, mas profundas desigualdades regionais e sociais, forte exclusão de grandes parcelas da cidadania.
Não há modelo único de democracia representativa, nem se pode impô-lo de cima para baixo sem amplo debate da sociedade. No debate atual no país, há uma inversão: o sistema político e eleitoral não produz um projeto de nação, qual um demiurgo do que deva ser o Brasil. A primeira questão a debater sobre sistema político e eleitoral é: o que queremos ser como nação? A história tem muito a nos ensinar.
A modernização conservadora 1930 criou seus pólos programáticos – PTB, UDN, PSD e PCB. Perdemos o eixo durante a Nova República, quando se entronizou uma encruzilhada histórica: ou aprofundar a dependência às cadeias da globalização neoliberal, ou afirmar a autodeterminação e a soberania nacional. Uma precisa de democracia e inclusão, outra não.
Na luta contra a ditadura se deu com viés anti-estatal, em nome da democracia e dos direitos da sociedade civil. A própria derrocada do ciclo progressista em 2016 demonstrou que o alvo da luta da esquerda progressista não era o Estado, mas o seu caráter de classe e conservador, sem cuja transformação por reformas estruturais democráticas inviabiliza um projeto de afirmação da nação e seu desenvolvimento soberano, com o fortalecimento do Estado nacional sob soberania democrática e popular.
Um exemplo candente da encruzilhada é que a Constituição foi aprovada em 1988 mas desde o início da década de 90 se debate a reforma política! Por que? Foram 14 modificações relevantes desde 1993 e está em curso a atual, no Congresso Nacional. Como falar de instituições estáveis?
Então, proponho ao debate: o que devemos disputar na sociedade para a reforma política? Além de uma atitude de resistência, será preciso considerar entre outros pontos:
Manter-se sob o presidencialismo. Eleições presidenciais são o momento de máxima expressão dos interesses nacionais e populares, indispensável face a um sistema político e partidário que não consegue expressar todas as contradições da sociedade brasileira, ou seja, uma democracia representativa ainda restritiva, expressa sobretudo no número de representantes trabalhadores e mulheres.
Dois plebiscitos confirmaram o presidencialismo. Para o parlamentarismo, se tenta um atalho sem debate com a sociedade e sem que se possa propor cinicamente um novo plebiscito. É a bandeira do PSDB, acompanhada da proposição de voto em modalidade distrital.
Tal sistema atingiu entropia máxima, mas não são os pequenos partidos que estropiam a democracia e a representação. Eles foram funcionais ao sistema, próprios de uma elite dirigente que não tem projeto claro e coeso para o país, aceita um papel subordinado do país, e também de uma representação que só vive e sobrevive à base de nacos do poder de Estado.
Não podemos desligar essa realidade do âmbito de uma crise mundial da democracia representativa, esvaziada em função dos poderes reais que a sequestram e sequestram o Estado, fenômeno claro e marcante no Brasil: a esfera financeira rentista nacional e internacional, as corporações privadas e estatais, a mídia monopolizada. Quer dizer, há um claro ciclo hegemônico das ideias conservadoras na poderosa luta política e ideológica no mundo e no Brasil, inclinado em direção à negação da nação, do Estado, dos direitos sociais e da própria democracia representativa.
Nessas condições, como formar maiorias num presidencialismo de coalizão? Antes de tudo, politizando o debate na sociedade brasileira sobre os destinos da nação. A esquerda e as forças afins precisam disputar na sociedade as bandeiras de um projeto de nação e torná-las fortes para refletir no debate político-institucional (e para isso não basta o debate eleitoral).
Nesse sentido, deve-se pensar na desconexão entre eleição presidencial e legislativa – esta deve seguir-se a essa, para tentar produzir maioria mais estável. Também é o caso de instituir o fim da reeleição de cargos majoritários, talvez com mandato maior, e o referendo revogatório de mandatos majoritários.
Será preciso refundar o sistema político e não fazer remendos mais antidemocráticos ainda.
O sistema distrital em qualquer modalidade elitiza ainda mais o sistema partidário. Quer dizer, busca formar maiorias políticas pela exclusão de representações. O Brasil precisa de mais democracia e não menos! Pense-se: em favor de quem e em detrimento de quem atuaria o sistema distrital? Além disso, é mais cara a eleição majoritária, precisamente por ser majoritária – mesmo no sistema misto, onde metade das vagas são preenchidas por eleição majoritária.
Um governo em função do parlamento (ou semiparlamentarista) sempre foi saída da elite dominante para as crises criadas por ela, como atalhos para o poder de Estado: foi o caso com Jango, Sarney de um certo modo e, agora, com Temer. Não se sustentou quando consultado o povo. Diferentemente do parlamentarismo, no presidencialismo o chefe de governo e do Estado tem a legitimidade oriunda do voto popular, e não do voto congressual, o que é um importante contrapeso no sistema político em favor popular.
É forte argumento contra esse rumo, também, o fato de que a representação política não pode refletir interesses localistas de um país como o Brasil, que exige um visão de todo um projeto. Pense:se nas desigualdades regionais e numa região como a da Amazônia, por exemplo, cuja representação nacional transcende a questão populacional e a representação local de distritos.
Não há dúvida razoável quanto a que a esquerda europeia (e chilena, no caso com o voto binominal) foi dizimada com o sistema distrital, em lugar do pluralismo por meio do voto proporcional; aliás, serviu a isso mesmo, retirar expressão das minorias políticas e sociais.
Hoje cresce a proposição de um tal Distritão, sistema onde a circunscrição eleitoral corresponde ao Estado da Federação. Elegem-se os mais votados para as vagas existentes. Isso seria o ápice da entropia do sistema, que acabaria de “fritar” o sistema partidário.
Então: pluralismo e pluripartidarismo com sistema proporcional de votação é o sistema mais consagrado no Brasil. Deve ser aprimorado com o voto em lista partidária (permitindo o voto do eleitor em nomes e no partido): na asuência disso, o melhor sistema comprovado é o voto em lista aberta, que aumenta as opções de escolha do eleitor. Impõe-se também o financiamento público exclusivo de campanhas.
As cláusulas de barreira ou desempenho já existem em várias instâncias, pelo quociente eleitoral e pelas condições materiais de campanha, entre outros. Quanto mais alto o sarrafo menor expressão plural se obterá no parlamento. Uma barreira baixa já elimina da representação mais de uma dezena de partidos.
As coligações são opções política livres dos partidos. Federações mais permanentes numa legislatura, em lugar das coligações, no mínimo devem ser flexibilizadas segundo a diversidade regional do país.
É certo, também, que se deve exigir dos partidos mais rigor. A cantilena conservadora atinge sob diversos modos a liberdade de organização partidária, sob o protagonismo do TSE. Hoje ela é posta em risco sob o argumento de serem entes paraestatais, sujeitos à norma da administração pública – que não integram – uma grave distorção antidemocrática.
Aliás, estranho argumento em discursos conservadores, esse do rigor. Isso porque a esquerda política é, de longe, quem mais tem bases programáticas e organizativas no país: PT, PDT e PCdoB (mais recentemente o PSOL). O PSB está em disputa, mas só tem razão de existir no campo progressista de centro-esquerda. O sistema político conservador não logrou formar partidos sólidos além de PSDB e DEM, entre os maiores; o PMDB foi transformista nesta última fase. A reforma política, desse ponto de vista, é mais um arranjo para forçar a situação.
Quanto à esquerda, não pode enfrentar o problema com cálculos de poder desta ou daquela legenda. Voto distrital de qualquer modalidade, cláusulas de barreira e falta de liberdade em estabelecer alianças eleitorais na complexidade do país, são condições anaeróbicas para que se constitua um arco de unidade de esquerda como núcleo de uma ampla frente de forças democráticas, patrióticas e populares. É sempre melhor pensar na democracia ampliada que enseje um novo projeto de desenvolvimento nacional.”