A partir da esquerda, possível coalizão com Scholz (SPD), Annalena Baebock (Verdes) e Lindner (FDP)

Embora pelas próximas semanas Angela Merkel continue como primeira-ministra em exercício, até que seja acordado e votado um novo governo para a Alemanha, já começou a era pós-Merkel, com o candidato indicado pelo partido mais votado, Olaf Scholz, anunciando esperar estar com uma coalizão de governo formada “até o natal”, data em que tradicionalmente o chefe de governo se dirige ao país.

Indagado na televisão se espera fazer o discurso natalino deste ano no lugar de Merkel, o candidato social-democrata respondeu: “faremos tudo para que isso ocorra”.

Nada está definido. Apesar de ter ficado atrás, o candidato da federação partidária CDU/CSU, mais conhecida como União Democrática Cristã/Social Cristã, Armin Laschet, também se disse pronto a tentar formar a coalizão de governo, o que é possível sob a lei eleitoral alemã.

Para formar governo, é preciso de uma maioria de mais de 50% no parlamento (Bundestag) – 368 deputados, na nova casa -, o que permite, ao menos em tese, três tipos de coalizão, conforme as bancadas obtidas.

A primeira, encabeçada pelo SPD, chamada de ‘semáforo’ por causa das cores dos partidos constituintes, reuniria social-democratas (vermelho), liberal-democratas (amarelo) e os verdes. A outra, liderada pela CDU/CSU, dita ‘Jamaica’ por causa das cores da bandeira da ilha das Antilhas, juntaria a Democracia cristã (preto), liberal-democratas (amarelo) e os verdes.

Em última instância, embora tida agora como improvável, poderia ser reeditada a chamada grande coalizão (Groko) CDU-SPD – que foi o que aconteceu na eleição anterior.

O novo Bundestag, com 735 deputados, está dividido entre SPD (206), CDU/CSU (196), Verdes (118), FDP (92), AfD (83), Esquerda (39) e SSW (1).

CDU

Uma estreita margem (1,6 ponto percentual) separou o Partido da Social-Democracia (SPD) da União Democrática Cristã (CDU/CSU), o que expressa dois resultados bem distintos.

A CDU/CSU obteve o pior resultado da história, despencando de 32,9% obtidos na eleição anterior (2017) para 24,1% – uma perda de oito pontos percentuais. Isso, apesar da popularidade de Merkel estar beirando os 80%.

Enquanto o SPD – chamado por muitos observadores de ‘moribundo’ – fazia o trajeto contrário, do pior resultado da história, 20,5%, para o primeiro lugar, com 25,7%. O que é ainda mais impressionante já que o partido de Scholz no primeiro semestre aparecia com 15% das intenções de voto.

É a primeira vez que nenhum partido alcança 30% dos votos e também é inédito que um primeiro-ministro não dispute a reeleição por decisão própria.

Os verdes tiveram o melhor desempenho da história, chegando a quase 15% (de 8,9% há quatro anos), o que não deu para comemorar tanto porque sua candidata, Annalena Baerbock, chegou a estar na frente nas pesquisas mas não aguentou o tiroteio dos adversários.

Os liberal-democratas (FDP), que haviam chegado ao fundo do poço em 2013, quando ficaram abaixo da cláusula de barreira de 5%, voltaram a superar por pouco o resultado de 2017 (10,7%), alcançando 11,5%.

A Esquerda, partido formado pelos social-democratas de esquerda (que romperam com o partido quando da imposição das leis de arrocho Hartz) e por comunistas da Alemanha oriental, não repetiu os 9,2% de 2017, sob o impacto da pesada campanha de “medo” contra a chamada coalizão vermelho-vermelho-verde, que poderia juntar social-democratas, esquerdistas e verdes, usada pelos conservadores para tentarem balizar o avanço da candidatura Scholz.

Ficou nos 4,9%, mas, porque conseguiu três mandatos diretos, pôde, pela norma eleitoral alemã, manter uma bancada.

Já a Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão), notória por seu extremismo, xenofobia e negacionismo, perdeu mais de dois por cento dos votos em relação à eleição anterior, caindo para 10,3% e, de terceiro maior partido, para o quinto lugar.

Todas as forças políticas alemãs, dos conservadores até A Esquerda, rechaçam qualquer possibilidade de coalizão com a AfD, por seu caráter antidemocrático e vínculos com grupos neonazis.

Em março deste ano, a AfD chegou a ser colocada sob vigilância pelo Departamento de Proteção à Constituição da Alemanha (BfV), medida posteriormente derrubada pela Justiça. Mas uma ala extremista do partido, “Der Flügel”, que anunciou sua ‘dissolução’ oficialmente, continua sob vigilância.

Pesquisa favorece Scholz

Segundo pesquisa de opinião realizada pelo Instituto Civey para a revista Der Spiegel, 63% dos alemães preferem Scholz como o próximo primeiro-ministro e vêem a CDU na oposição. A pesquisa ouviu 5.000 pessoas.

Apenas 24% preferiram Laschet. 13 % não sabem ou não querem tomar uma decisão.

Não seria inédito que um candidato conquiste o cargo de primeiro-ministro (‘chanceler’, na terminologia alemã) sem que seu partido haja terminado em primeiro lugar nas eleições, graças à costura de alianças, o que já aconteceu nos pleitos de 1969, 1976 e 1980.

Essa é a esperança de Laschet. “Faremos de tudo para formar um governo conservador porque a Alemanha precisa de uma coalizão voltada para o futuro que modernize nosso país”, insistiu.

Já Scholz afirmou que o SPD é um partido que luta “pelo progresso da sociedade, pelo respeito e pela modernização do país. Os verdes também têm uma visão de progresso, que neste caso trata da questão das mudanças climáticas. O FDP também aborda essas questões”.

O SPD, os Verdes e o FDP ganharam votos no domingo, acrescentou Scholz, “e é por isso que temos que aceitar o mandato de formar um governo. Isso também é possível se você olhar para os programas dos partidos.”

O dirigente dos verdes, Michael Kellner, confirmou a preferência por uma aliança com o SPD. “Estamos mais perto do SPD do que da União (CDU)”, disse ele antes de uma reunião do comitê executivo do partido em Berlim. “Os eleitores queriam Olaf Scholz, Armin Laschet tem valores fracos.” Mas acrescentou que “estamos dispostos a falar com todos os partidos democráticos”.

O presidente dos liberal-democratas, Christian Lindner, disse à televisão ZDF que via uma chance maior de acordo, em termos de conteúdo, na chamada coalizão da Jamaica (CDU, FDP e Verdes). Mas não descartou negociações com o SPD. Ele asseverou que o FDP e os Verdes iriam “falar um com o outro primeiro” sobre essas possibilidades.

De ‘Scholzmat’ a ‘novo Merkel’

Talvez o principal mérito da social-democracia tenha sido apreender, em profundidade, a ansiedade que a saída da ‘mutti’ (mãe) Merkel – em meio à epidemia, crise econômica e deriva nas relações internacionais pós Trump – está acarretando aos alemães.

Como assinalou análise da Deustche Welle, há a “contribuição decisiva” do próprio Scholz para sua vitória: “ele soube encarnar a continuidade da era Merkel”.

Também o fato do SPD ter se unido com bastante antecedência, ao contrário do que aconteceu com democratas cristãos e verdes, melhor posicionados nas pesquisas mas divididos, e que só definiram seus candidatos em abril.

A social-democracia não vencia uma eleição desde que o então governo Schroeder na década de 2000, enfiou goela abaixo dos alemães as chamadas reformas Hartz, que precarizaram o trabalho, a aposentadoria e a rede de proteção social, aumentando a desigualdade.

Processo no qual, inclusive, Scholz teve tamanha participação que recebeu do jornal Die Zeit o apelido de ‘Scholzmat’ – uma mistura do nome dele com o termo Automat (máquina automática), pela defesa que fazia dessa legislação. Por ‘parecer uma máquina’, repetindo implacavelmente a apologia do arrocho.

Possivelmente sua recuperação teve a ver com o papel que jogou, durante a pandemia, como ministro das Finanças, o responsável pelos bilhões em ajuda de emergência à economia, e por se colocar explicitamente como garantia de estabilidade na era pós-Merkel.

“Ninguém precisa ter medo, já fizemos isso uma vez, depois da última crise de 2008/2009 e conseguiremos de novo, em menos de dez anos”, ele se posicionou na campanha, sobre a dívida contraída para fazer frente à crise da pandemia.

Um contraste enorme com os dois principais candidatos adversários. Laschet, o candidato democrata cristão e também governador do Estado mais populoso, conseguiu se tornar o símbolo da falta de empatia com o sofrimento alheio, ao ser flagrado às gargalhadas, em meio ao luto e às perdas causadas pelas piores enchentes em décadas em seu estado, enquanto o presidente alemão discursava à sofrida população.

O flagrante viralizou nas redes sociais e a campanha foi a pique. Antes, quem adernara havia sido a candidatura verde, Baerbock, sob acusações de plágio em livro e de enfeitar o currículo acadêmico: em suma, de tentar parecer quem não era.

O slogan para a campanha social-democrata foi um achado: “Scholz vai cuidar disso”.

Que passava a ideia de que ele, como Merkel, caso houvesse uma crise, ia achar um jeito de dar uma solução. A campanha também o apontava como “pragmático, porém voltado para o futuro”. “Trabalha e é competente”, sublinhava a mensagem do SPD. Nos debates pela televisão, ele também se saiu muito bem.

Para reforçar essa imagem, Scholz até posou para a capa da revista SZ Magazine imitando o gesto-símbolo da primeira-ministra, o losango com as mãos. Funcionou tanto, que a própria Merkel se viu obrigada a dizer que o candidato dela era Laschet.

Europa “forte e soberana”

Em termos de política externa, Scholz se comprometeu a trabalhar por uma “Europa forte e soberana” que fale “com uma só voz, porque de outra forma deixaremos de ter relevância”.

O líder social-democrata advertiu que, com quase 10 bilhões de habitantes no planeta, haverá “muitas potências no futuro, não apenas a China, os Estados Unidos e a Rússia”, mas também diversos países asiáticos.

Naturalmente, Scholz fez juras aos laços com a Otan – aquela aliança que, segundo os britânicos, tem por objetivo manter os americanos dentro, os russos, de fora, e os alemães, por baixo -, ao mesmo tempo em que não se esperam alterações de fundo em questões como o fornecimento de gás pelo gasoduto russo-alemão Nord Stream 2. Ainda mais em um momento em que os preços do gás no mercado livre estão nas alturas, enquanto o inverno se aproxima.

A continuidade da política externa de Merkel deve significar que o empenho dela com os laços com a China não seja revertido. Merkel jogou um papel decisivo para que fosse completado o acordo de investimento da União Europeia com a China, antes da posse de Joe Biden.

Ao comentar sobre a eleição na Alemanha, a porta-voz da diplomacia chinesa, Hua Chunying, manifestou a expectativa de Pequim de que o novo governo continue uma política “pragmática e equilibrada” Alemanha-China.

Hua também expressou “grande apreço” por Merkel, que visitou a China 12 vezes enquanto estava no cargo, por sua contribuição para impulsionar os laços entre a China e a Alemanha.