Uso do Auxílio Brasil para obter empréstimo consignado pode compromete
As medidas adotadas pelo governo Bolsonaro para tentar recuperar a economia no ano eleitoral deixarão sequelas para o futuro. A opinião é do professor do Instituto de Economia da Unicamp, Marco Antonio Rocha, segundo o qual a decisão de permitir que os beneficiários do Auxílio Brasil obtenham empréstimo consignado é, especialmente, preocupante.
O economista alerta que, como esta parcela da população hoje já possui uma demanda represada por gêneros básicos, como gás de cozinha e alimentos, ela terá de utilizar o crédito rapidamente com o consumo imediato e o pagamento de dívidas. Contudo, frisa Rocha, haveria saídas melhores, como algum tipo de auxílio complementar ou incremento ao próprio Auxílio Brasil e que não significariam aumentar o endividamento das famílias.
“Mas politicamente essas outras medidas têm um caminho muito mais difícil e o que está norteando isso é o fato da aproximação das eleições. Essa medida vem a calhar para o governo justamente pelo seu impacto pelo curto prazo e por ter uma via política muito mais simples. Mas ela é bem preocupante em relação aos efeitos de médio prazo que causa no comprometimento da renda dessas famílias”, lamenta.
Em entrevista, Rocha, que é pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (NEIT) do Instituto de Economia da Unicamp, prevê que o atual patamar da capacidade de consumo das famílias manterá o mercado doméstico ainda desaquecido em 2022 tornando difícil a recuperação, particularmente, do setor industrial.
“O rendimento do trabalho continua caindo, a inflação continua com as projeções elevadas, por conta dos combustíveis e dos impactos do conflito da Ucrânia. Então, em termos da capacidade de compra das famílias, capacidade de consumo das famílias, o mercado doméstico ainda deve permanecer bem desaquecido no ano de 2022 e isso acaba afetando a produção industrial e a capacidade da indústria gerar emprego, o que acaba reforçando esse mesmo cenário: menos empregos sendo gerados, menor capacidade de aumentar o rendimento do trabalho, a inflação comendo parte da renda, uma menor capacidade das famílias consumirem e por isso menor demanda sobre bens industriais, o que acaba fechando um certo ciclo nesse sentido”, analisa.
Rocha ressalta que o cenário para a indústria se torna ainda mais difícil diante da trajetória de alta dos juros: “Já em um cenário tão dramático, vamos dizer assim, com uma série de pressões relativas a custo, a incerteza, o aumento da taxa de juros vem em uma péssima hora. Primeiro porque vai afetar muito pouco a taxa de inflação, como no cenário que a gente está vivendo, e para além disso ela afeta a capacidade de consumo, o custo do crédito para as famílias e, portanto, a capacidade de as famílias consumirem, o que em um cenário como o que nós estamos vendo, de queda no rendimento do trabalho, torna mais difícil uma recuperação da capacidade da indústria”.
Leia a íntegra da entrevista.
As medidas adotadas pelo governo terão efeito sobre a economia? Elas são eficientes?
Se forem concretizadas, têm um impacto significativo, sim, porque você está falando de mais ou menos 1% do PIB para ser injetado ainda esse ano na economia. Pode ter um efeito de curto prazo, sim. Mas, em relação à eficiência dessas medidas, em relação à economia como um todo ou impactos de mais longo prazo, aí há uma série de questões que são mais problemáticas.
Há algum risco em relação aos efeitos dessas medidas no longo prazo?
A medida de contratação de crédito consignado para o Auxílio Brasil desperta certas preocupações em relação não ao risco de inadimplência, porque esses contratos são descontados diretamente. A questão principal é que compromete renda futura de uma parcela da população que já está em uma faixa de renda muito baixa. Como existe uma demanda represada por gêneros básicos, como gás de cozinha e alimentos, por essa parcela da população, bem provavelmente a liberação desse crédito vai ser utilizada rapidamente e vai ser revertida no consumo imediato e no pagamento de dívidas. Então, provavelmente, vai ter algum impacto no curto prazo, em relação, principalmente, ao impacto no consumo das famílias. Mas você cria um problema mais adiante que é o comprometimento das rendas dessas famílias com o serviço, o pagamento dessa dívida.
Então tudo isso é bem preocupante porque o comprometimento de renda de uma parcela da população que já tem um rendimento tão baixo acaba distorcendo o próprio programa do Auxílio Brasil. Por isso, essa medida ela é um tanto preocupante. Haveria saídas melhores, algum tipo de auxílio complementar ou algum incremento ao próprio Auxílio Brasil.
Mas, politicamente, essas outras medidas têm um caminho muito mais difícil e o que está norteando isso é o fato da aproximação das eleições, essa medida vem a calhar para o governo justamente pelo seu impacto pelo curto prazo e por ter uma via política muito mais simples. Mas, novamente, ela é bem preocupante em relação aos efeitos de médio prazo que causa no comprometimento da renda dessas famílias.
E o que o cenário atual pode sinalizar para a indústria em 2022? De acordo com o IBGE, a produção industrial recuou em janeiro em 10 dos 15 locais pesquisados. Esse resultado era esperado?
Ele dá prosseguimento a uma tendência que nós já vínhamos observando em 2021, em que na maior parte dos meses o resultado da produção industrial também foi negativo e foi marcado por um ano em que pequenos momentos de retomada da produção industrial foram seguidos de recuo, o que já dava indícios de que 2022 seria um ano em que a indústria brasileira, provavelmente, ia continuar andando de lado.
Por uma série de motivos: pelas questões envolvendo as incertezas no cenário internacional, mesmo antes do período da guerra nós já tínhamos problemas da oferta de certos insumos, pressões relativas aos custos de certos insumos, que já tornavam pressões a custos industriais e já jogavam uma certa incerteza em relação à produção industrial.
Um segundo fator importante é a ausência de capacidade de recuperação do consumo das famílias. Então, um mercado doméstico ainda muito desaquecido e com isso também dava pouco alento a uma esperança da recuperação industrial. Então 2022 já era esperado que seria um ano em que a indústria brasileira ia caminhar de lado, só que agora você tem novas incertezas jogadas em relação a isso.
Em relação ao recuo em 10 dos quinze locais pesquisados, chama a atenção justamente de locais em que a produção industrial é importante, como São Paulo, Minas, Paraná, Amazônia, tiveram recuos importantes, recuos significativos na produção, o que mostra que a indústria como um todo está passando por um momento bem difícil. Isso está relacionado a uma série de coisas, como eu disse.
Pelo dado dessazonalizado do indicador de emprego da CNI, o emprego na indústria ficou praticamente estável, com variação de apenas 0,1% em janeiro. A indústria brasileira conseguirá gerar novos empregos esse ano?
Em termos do emprego industrial, também provavelmente ele não vai ter uma grande alteração, já que a produção não está tendo e tendo um horizonte de muitos poucos fatores que podem mudar esse cenário. O rendimento do trabalho continua caindo, a inflação continua com as projeções elevadas, por conta dos combustíveis e dos impactos do conflito da Ucrânia. Então, em termos da capacidade de compra das famílias, capacidade de consumo das famílias, o mercado doméstico ainda deve permanecer bem desaquecido no ano de 2022 e isso acaba afetando a produção industrial e a capacidade da indústria gerar emprego, o que acaba reforçando esse mesmo cenário: menos empregos sendo gerados, menor capacidade de aumentar o rendimento do trabalho, a inflação comendo parte da renda, uma menor capacidade das famílias consumirem e por isso menor demanda sobre bens industriais, o que acaba fechando um certo ciclo nesse sentido.
O conflito na Ucrânia pode afetar a indústria brasileira?
O conflito na Ucrânia já vem afetando, mas é mais um fator desses que torna a conjuntura da indústria brasileira um tanto crítica para 2022. O primeiro impacto é no custo dos combustíveis e isso afeta a indústria de várias formas. O combustível é um insumo industrial para alguns setores, afeta também no frete, por exemplo, no custo dos insumos e isso acaba de certa forma no mercado não aquecido, no mercado enfraquecido como está o brasileiro, pressionando a lucratividade da atividade industrial. Para além disso, a gente também deve ter pressões de algumas commodities agrícolas como é o caso do trigo, o que também afeta alguns setores específicos, principalmente, como eu disse, em um cenário onde a capacidade da indústria de repassar esses aumentos de custo também é mais difícil por conta do desaquecimento do mercado doméstico. E, para além disso, a Rússia também é uma produtora mineral muito importante, o que deve encarecer algumas commodities minerais, para além do carvão, petróleo, que são por exemplo níquel commodities minerais importantes para certos setores que também deve sofrer uma pressão de custos. Então tudo isso torna-se mais um elemento já na frágil conjuntura que a indústria brasileira passa.
A alta nos juros pelo Copom pode prejudicar a recuperação da indústria brasileira?
O aumento da taxa de juros acaba encarecendo os investimentos, acaba encarecendo o crédito e reduzindo a atividade econômica, principalmente, a atividade industrial, que é um tanto sensível a isso. Então já em um cenário tão dramático, vamos dizer assim, com uma série de pressões relativas a custo, à incerteza, o aumento da taxa de juros vem em uma péssima hora. Primeiro porque vai afetar muito pouco a taxa de inflação, como no cenário que estamos vivendo. E para além disso ela afeta a capacidade de consumo, o custo do crédito para as famílias e, portanto, a capacidade de as famílias consumirem, o que em um cenário como o que nós estamos vendo, de queda no rendimento do trabalho, torna mais difícil uma recuperação da capacidade da indústria repassar também esse aumento de custos, que afeta a lucratividade da indústria e a intenção de promover novos investimentos, aumento da produção, todas essas questões que ficam prejudicadas em uma nova queda da atividade econômica. Nesse cenário, em que a indústria já se encontra bem fragilizada, o aumento da taxa de juros vai ter um efeito bem negativo sobre a indústria.