Um milhão de pessoas repudiam em Santiago o modelo do arrocho
“Chile desperta. Não estamos em guerra”. Essa é a frase desenhada sobre uma enorme bandeira que se destaca em meio à manifestação que levou mais de um milhão de chilenos à a Praça Itália em Santiago.
A manifestação convocada como #AmarchaMaisGrande pela Unidade Social —que representa mais de 70 organizações sociais e sindicais— é realizada no oitavo dia de protestos contra o presidente Sebastián Piñera e o modelo econômico chileno em todo o país, em desafio à ameaça do toque de recolher.
Convocada para as 17 horas, a manifestação começou a encher a praça central de Santiago do Chile antes da hora assinalada e mensagens começavam a se espalhar pelas redes sociais chilenas exigindo “Renuncia Piñera”, “Não estamos em guerra”, “Chile acordou”, “Saúde digna”, “Assembleia constituinte”, “Não + AFP (Não mais Administradoras de Fundos de Pensão)”.
Antes de “A Marcha Mais Grande”, o governo renovou o toque de recolher —entre as 23 e 4 da manhã— na Região Metropolitana, em Antofagasta, Copiapó, Valparaíso, Rancagua, Concepción, Puerto Montt e Osorno. Mas não adiantou nada a tentativa de abafar a revolta do povo, centenas as multidões voltam a sair às ruas. “O Chile precisa mudanças profundas para alcançar paz com justiça social, por isso nos mobilizamos contra as políticas neoliberais que tem nos afundado na pobreza durante 30 anos”, destacou o dirigente da Central Unificada de Trabalhadores e Trabalhadoras (CUT), Eric Campos.
Durante a manifestação, militares enviados para impor o toque de recolher erguem, no alto do caminhão em que se encontravam, a bandeira do Chile indicando sua simpatia pelos atos populares. A seguir eles são cercados por manifestantes, também portando bandeiras e saudando o seu gesto. O vídeo que publicamos ao final da matéria mostra o momento de confraternização.
A concentração partiu ao meio-dia e teve uma emotiva homenagem às vítimas da repressão na Biblioteca Nacional, a doze quadras da Praça Itália, onde foram entoadas canções de Víctor Jara, músico desaparecido pela ditadura de Augusto Pinochet.
No dia anterior, centenas de milhares de cidadãos, trabalhadores, estudantes, mulheres, moradores, profissionais, artistas, esportistas, ativistas dos direitos humanos, também ocuparam as ruas novamente na quinta-feira, 24, em doze regiões do Chile.
Estão programadas mais ações de protestos nos próximos dias em todo o país.
As cidades onde já houve centenas de manifestações pacíficas, ocupação de espaços públicos, panelaços, marchas e atividades culturais foram, entre outras, Arica, Iquique, Antofagasta, Santiago, Valparaíso, Concepción, Talca, Curicó, Coquimbo, Calama, Valdivia, Temuco, Osorno, Puerto Montt, Punta Arenas, Quilpúe, Viña del Mar, Constitución e Quillota.
Neste contexto, teve concentração em massa até altas horas da noite na região das praças Itália e Ñuñoa da capital, Santiago, lugares que têm se convertido em sítios chaves do levante social desta semana. Na quarta e quinta- feiras últimas foi um sucesso a convocação da Mesa Unidade Social, composta por centrais sindicais, partidos e entidades sociais, que convocou a Greve Geral, apoiada por multitudinárias marchas e realização de amplas reuniões autoconvocadas em muitos pontos do país onde participaram milhares de chilenos.
“Uma taxa de crescimento em baixa e um desemprego que chega aos 8,1%, disparado após numerosos fechamentos de fábricas ao longo do país, deixou mais de 70 mil desempregados nos últimos meses”, disse a jornalista Karen Medina E, assinalando os motivos que, somados, levaram à rejeição da política do governo de Sebastián Piñera.
“Novos aumentos nas tarifas dos serviços básicos – o último na de eletricidade, com 9,2% – e na gasolina, parafina e petróleo – o último em setembro – continuavam apertando o bolso das famílias chilenas. Diversas convocatórias de protestos de organizações cidadãs, sociais e de trabalhadores durante o ano nos lembram que a saúde pública está em sua pior crise, faltando insumos básicos de atenção nos hospitais; ou que os lucros das Administradoras de Fundos de Pensão, AFPs, subiram 100% só no primeiro trimestre deste ano”, prossegue a jornalista.
Ela destaca que “além disso, mais de 2 milhões de aposentados sob esse sistema imposto pela ditadura de Pinochet recebe em média 880 reais mensais (160 mil pesos), e gastam quase um terço só em remédios; a metade dos trabalhadores chilenos recebe em média 1930 reais (350 mil pesos) de salário mensal, o que impede uma boa qualidade de vida e esmaga as famílias com dívidas impagáveis”.
Diante da insatisfação com tudo isso, sublinha a jornalista, “o estopim da conflagração, foi o aumento das tarifas do Metrô, que em 2019 subiram 30 centavos e tentaram aumentar agora mais 30”, o que levava o bilhete a 4,8 reais.
O uso do metrô em Santiago, pelos cálculos do jornal La República, equivale a 13,78 % de um salário mínimo.
“O concreto e objetivo é que, entregues ao capital estrangeiro as grandes riquezas do país e mantidas até hoje todas as privatizações das empresas estatais a favor de interesses privados, o povo chileno continua sem Educação Pública, sem Saúde Pública, sem Previdência Social estatal, salvo em proporções cruelmente ridículas. Nem o cobre, nem o lítio, nem nenhuma das riquezas naturais do país servem aos interesses das maiorias, mas dos bolsos de uns quantos personagens da ditadura que continuam sendo poderosos empresários sem ter gasto jamais um centavo”, denunciou o jornalista Eduardo Contreras, do Partido Comunista do Chile.
Milhares de pessoas participaram, na quinta-feira, 24, nos encontros chamados Cabildos convocados pela Mesa Unidade Social colocando suas opiniões, fazendo propostas, fazendo exigências e elevando a organização do movimento em um momento de crise social e política como há tempos não acontecia no país.