Um debate político: o universal, o particular e o individual
“O debate que opõe os historiadores do cotidiano, do particular, do individual, aos que enfatizam o universal, o geral, o enfoque totalizante, é de natureza nitidamente política.”
Por José Carlos Ruy*
Uma teoria é formada pelo conjunto de categorias que orientam o exame do mundo objetivo. As categorias são universais que resultam do processo de abstração baseado na observação e no isolamento de traços comuns a inúmeros fenômenos reais – singulares e individuais – abstraindo suas particularidades. E aqui estamos às voltas com a dialética do universal e do particular.
Hegel já havia ensinado que o universal é a generalização que deriva da abstração que representa no cérebro a matéria sensível. Cérebro dentro do qual esse conteúdo é elaborado pelo pensamento. “O universal não se ouve nem se vê; mas é somente para o espírito”, escreveu na “Pequena Lógica” (Hegel: 1995, §20 e §21).
O debate que opõe os historiadores do cotidiano, do particular, do individual, aos que enfatizam o universal, o geral, o enfoque totalizante, é de natureza nitidamente política.
A luta pela democracia, nas décadas de 1960 e 1970, levou alguns a pensar que toda forma de poder é nociva. O trânsito entre a ênfase na liberdade individual e no subjetivismo típico da “nova esquerda” de então, e o resgate da memória, da história oral, do individual, da subjetividade, parecia legitimar esta opção que, como nos escritos de Michel Foucault, fortalece a visão de qualquer forma de “poder” como algo difuso, não centralizado. Maneira de ver que corresponde à hegemonia ideológica do capitalismo e sua ênfase no indivíduo, registra o escritor marxista Armando Boito (2007).
A historiadora Emília Viotti da Costa chamou a atenção para as limitações dessa forma de pensar. E alertou para o modismo que há num contexto dominado pelo mercado editorial, que condiciona a própria elaboração historiográfica, cujos rumos pode determinar,
e induzir a produção para a via conservadora devido às imposições mercadológicas sob comando daideologia burguesa dominante (entrevista in Moraes: 2002). Há, esclarece ela, o “abuso do pitoresco, do curioso, do grotesco, de tudo o que possa atrair um público maior”, opção marcada pela aparente ausência de preocupação de natureza social ou política entre muitos historiadores. “O abandono da noção de totalidade e da ideia de processo, a falta de conexão entre a micro e a macro história, enfraquece as interpretações e dificulta a elaboração de uma síntese”, disse. “Acumulam-se dados desconexos, perde-se a visão do conjunto. A historiografia descola-se dos problemas da sociedade e se perde em minúcias, tornando irrelevante o trabalho do historiador que vira um antiquário, um colecionador de casos”.
Nessas condições “a idéia de que a história é um dos instrumentos para a mudança do mundo não encontra muita aceitação”. E mesmo a questão do poder fica em plano secundário para estes historiadores que muitas vezes se proclamam “libertários” e, sob a influência de Foucault, se interessam apenas pelo que chamam de “micro-física do poder” (in Moraes: 2002).
Essa postura, disse a historiadora em outra entrevista, acaba muitas vezes “num relativismo total”. A afirmação da subjetividade pode ser vista como uma espécie de resistência, mas há o risco de “levar toda a história para o campo do subjetivo, transformando-a em uma simples coleção de testemunhos e depoimentos”. Dessa forma, a renúncia “a um discurso totalizador que possa incorporar as múltiplas subjetividades” e resultar em “uma história em que todos os testemunhos são igualmente relevantes”, deixa o historiador sem “critérios para separar o relevante do irrelevante” (Costa: 1989).
Na introdução a “Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue”, cujo tema é a rebelião escrava em Demerara (ex-Guiana inglesa), em 1823, a historiadora foi mais explícita sobre a chamada história oral. “As histórias contadas pelos participantes revelam as percepções e o modo como organizaram suas experiências. Suas histórias se articulam num marco de referência e numa linguagem ao mesmo tempo constituídos por suas experiências e delas constitutivos”. Mas é preciso tomar tais relatos cum grano salis. “As auto-definições das pessoas, suas narrativas sobre si mesmas e sobre os outros, conquanto significativas, não são suficientes para caracterizá-las nem para relatar sua experiência, muito menos para explicar um acontecimento histórico. O que as pessoas contam tem uma história” que “suas narrativas não revelam imediatamente; uma história que explica porque usam as palavras que usam, dizem o que dizem e agem como agem; uma história que explica os significados específicos por trás da universalidade ilusória sugerida pelas palavras – uma história de que muitas vezes elas próprias não se dão conta. Suas afirmações não são simplesmente declarações sobre a ‘realidade’, mas comentários sobre experiências do momento, lembranças de um passado legado por precursores e antecipações de um futuro que desejam criar”, escreveu (Costa: 1998a).
A confiança rasa em relatos do tipo referido por Emília Viotti pode deixar na sombra, esconder sob o manto dos desejos e dos interesses de seus autores, aquilo que move o “rio das eras” que, escreveu Marc Bloch, “corre sem interrupção” (2001).
Há um trabalho de deciframento a ser feito neste ponto, e ele vai além do que os personagens da história dizem de si próprios, sendo necessário escavar essa superfície para encontrar seu significado mais profundo e elucidar suas conexões e mediações. Estas narrativas expressam posições de classe, religião, etnia, status social, gênero “e o papel que cada um desempenhava na sociedade”. Entretanto, diz Emília Viotti, estas são categorias “construídas historicamente, não são essências imutáveis e primordiais das quais se possam deduzir as ideias e o comportamento das pessoas”. Nem a história é o resultado de uma “ação humana” misteriosa e transcendental, como querem uns, nem os homens e as mulheres são fantoches de “forças históricas”, como querem outros. “As ações humanas constituem o ponto em que se resolve momentaneamente a tensão constante entre liberdade e necessidade”, conclui ela.
Ecoando antigas lições de Marx e Engels, Emília Viotti adverte que “estamos tão habituados a ver a história como um produto de categorias reificadas, a mencionar ‘variáveis’ e ‘fatores’, e a usar abstrações como capitalismo, abolicionismo, evangelização e similares, que muitas vezes nos esquecemos de que a história é feita por homens e mulheres, embora eles a façam sob condições que não escolheram. Em última instância o que interessa é a maneira como as pessoas interagem, como pensam e agem sobre o mundo e como, ao transformar o mundo, transformam a si mesmas” (Costa: 1998a).
A questão fundamental do poder é escamoteada pela historiografia que se baseia no “cotidiano”, alertou Emília Viotti em uma entrevista em 1998. Contrariamente ao “anti-autoritarismo” e à denúncia de todas as formas de poder que estariam em oposição à liberdade individual, como alardeia essa historiografia que se pretende libertária, a ênfase no particular e no singular e a fuga ao universal resultam em que, diz ela, “quando o poder está em toda a parte, não está em parte alguma. Se dissolve a noção de poder”, diluindo as responsabilidades e tornando as lutas parciais e atomizadas, fazendo com que os esforços nunca se juntem.
Emília Viotti aponta duas formas de politização. Uma, consciente, “se dá quando se faz uma história dentro da linha da política em que se acredita” podendo, claro, “chegar aos exageros de uma história engajada que acabou deformada.” E existe uma maneira inconsciente de fazer política na qual se nega envolvimento político, embora ele sempre exista pois, subjacente a qualquer estudo “há noções filosóficas sobre o que é história e o que é mundo”, e elas “são necessariamente políticas” (Costa: 1998b).
A atividade de contar a história reflete as convicções ideológicas, políticas e sociais de quem a conta e da classe social à qual ele é ligado. Essa atividade é orientada pela ideologia dos grupos e classes dominantes, e também pela visão de mundo dos grupos e classes emergentes, que lutam contra a hegemonia política, econômica, social, cultural e ideológica daqueles que detém o poder.
Cada classe social busca no passado os fatos para compor o mosaico de sua visão de mundo. Procura seus heróis e valoriza os momentos em que seus antepassados de classe agiram de maneira criativa – os momentos em que, como Hegel disse de Napoleão após a batalha de Iena, encarnam o espírito do tempo (Inwood: 1997- como Goethe, ele considerava Napoleão o grande libertador, o “espírito do mundo a cavalo”) e cristalizam os momentos em que esses grupos ou heróis, ao lutar por seus próprios objetivos, representam a vontade geral da sociedade. A luta política e a visão de mundo estão na base das teses que dão ao historiador as condições para reconstruir os processos históricos permitindo a compreensão de um todo articulado e coerente.
Referências
Bloch Marc – A apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001
Boito Jr., Armando. “O Estado capitalista no centro: crítica ao conceito de poder de Michel Foucault”. In: Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e históricos. São Paulo, Editora Unesp, 2007.
Costa, Emilia Viotti da. Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue: a rebolião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo, Cia das Letras. 1998a.
Costa, Emilia Viotti da. Entrevistas ao Jornal do Brasil, 25/06/1989 e 28/03/1998b
Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). V. 3: A filosofia do espírito. São Paulo, Edições Loyola, 1995
Hegel, G. W. F.. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio (1830) – Volume 1, A ciência da lógica, Edições Loyola, São Paulo, 1995 (esta obra também é conhecida como A pequena lógica).
Inwood, Michael. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997
Moraes, José Geraldo Vinci de, e Rego, José Márcio. Conversas com Historiadores Brasileiros. São Paulo, Editora 34, 2002
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José Carlos Ruy* é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.
As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do PCdoB