O presidente dos EUA, Donald Trump, afirmou que os norte-americanos deveriam se preparar para “duas semanas muito, muito dolorosa”, enquanto a força-tarefa da Casa Branca contra o coronavírus alertava que, mesmo com as atuais diretrizes de distanciamento social mantidas, a perda de vidas pela pandemia poderia chegar até a 240 mil.

A declaração foi feita, segundo o New York Times, em um “tom incomumente sombrio”, ao final do dia em que os EUA ultrapassaram a China na contagem de corpos da pandemia, terça-feira (31).

Na semana passada, o país já superara a China em total de contágios e já tem mais do dobro.

“Quero que todo americano esteja preparado para os dias difíceis que estão pela frente”, disse Trump a repórteres na Casa Branca. “Vamos passar por duas semanas muito difíceis. Serão duas semanas muito dolorosas, muito, muito dolorosas.”

Trump, que em discursos e em tuitadas dissera antes que o Covid-19 era como “uma gripe comum”, caiu na real, embora sem assumir sua responsabilidade na questão.

Aos repórteres, afirmou que “muitas pessoas disseram: ‘Vá em frente. Não faça nada, apenas siga em frente. E pense nisso como uma gripe. Mas não é a gripe. É cruel”.

De acordo com o vice-presidente Mike Pence, a quem Trump responsabilizou pela mobilização contra a Covid-19, a “Itália” pode ser “a comparação mais próxima agora da situação do coronavírus nos EUA”.

A Dra. Deborah Birx, coordenadora de resposta da força-tarefa, disse que os modelos mostram que “sem mitigação” – isto é, sem quarentena – o pior cenário estima entre 1,5 a 2,2 milhões de mortes por coronavírus nos EUA. Mas, com as medidas implementadas, ela acrescentou, a “montanha” pode ser reduzida a uma “colina” que projeta de 100.000 a 240.000 mortes – ainda um total assombroso.   O que corresponderia a “4 mil a cinco mil óbitos por dia”, mas que poderia ser atenuado, caso – ela apontou – as pessoas mudassem seu comportamento.

Deborah reconheceu que as medidas de quarentena adotadas na Califórnia e no estado de Washington – no período em que Trump sabotava a ‘mitigação’ com seus acenos a ‘reabrir na Páscoa’ – lograram diminuir a propagação da pandemia, o que “nos dá grande esperança”. “São as comunidades que farão isso. Não há bala mágica. Não há vacina mágica ou terapia. É apenas comportamento”, enfatizou.

Como se adoção da quarentena nesses estados não tivessem partido dos governadores democratas e prefeitos, e como se o governo federal não tivesse se excedido em incompetência na implantação dos testes, frouxidão na mitigação e por deixar ao ‘mercado’ a solução para a falta de respiradores, máscaras cirúrgicas e até aventais de proteção nos hospitais.

No mesmo dia em que o primeiro paciente de Covid-19 foi anunciado nos EUA, também foi detectado o primeiro enfermo da Covid-19 na Coreia do Sul: 20 de janeiro.

Hoje, os EUA são o epicentro da pandemia, com quase 200 mil casos e 4361 mortes, comparado com o total na Coreia do Sul de 9.987 casos e 165 mortos.

Na conferência de imprensa, Trump lavou as mãos sobre sua responsabilidade para a disseminação do coronavírus, de que chegara a dizer que desapareceria com “o calor do verão”, e pela pressão que fez até uma semana antes para liberar geral depois da Páscoa.

Também foi Trump que no seu orçamento anual anunciou em fevereiro um corte de 16% nas verbas para combater epidemias – isso, 11 dias depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter decretado emergência mundial de saúde pública por causa do coronavírus e mais de 20 dias depois de registrado nos EUA o primeiro caso de contágio.

No domingo, ao recuar de reabrir a economia até a Páscoa, e estender até o dia 30 o isolamento social, Trump havia chamado a previsão de 200 mil mortos, mesmo com quarentena, de “um bom trabalho”, já que as mortes, de acordo com o famoso estudo do Imperial College de Londres, poderiam, pela prevalência do laissez-faire sanitário, ser de 2 milhões.

Uma colunista do Washington Post chegou a indagar: “que tipo de homem é esse que acha que ‘200 mil mortos’ é ‘um bom trabalho’”?

Questionado sobre se os norte-americanos estão preparados para a possibilidade de haver de 100 mil a 200 mil mortes pelo coronavírus, o Dr. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, e principal conselheiro científico de Trump sobre a questão, afirmou acreditar que “sim”. “Por mais preocupante que seja esse número, devemos estar preparados para isso”.

“Vai ser tanto assim? Espero que não, e acho que quanto mais insistirmos na mitigação, menor será a probabilidade desse número”, acrescentou, dizendo estar “realmente convencido” de que a mitigação fará isso “para nós.”

Fauci disse que “vamos continuar vendo as coisas melhorarem. Não podemos ficar desanimados com isso, porque a mitigação está realmente funcionando … Agora é a hora, sempre que você está tendo efeito, de não tirar o pé do acelerador e do freio, mas apenas pressioná-lo no acelerador. . E é isso que espero e sei que podemos fazer nos próximos 30 dias”.

MUDANÇA DE ENFOQUE

Como registrou o NYT, ao ter de mudar seu enfoque sobre a pandemia, Trump sem a menor cerimônia vem tentando reescrever a história, claro que pensando nas eleições.

Embora os especialistas em saúde pública tenham feito soar o alarme cedo, com base em relatórios da China, o presidente norte-americano alega que “ninguém sabia o quão contagioso isso era. Acho que nenhum médico sabia disso na época. As pessoas não viram nada assim”.

Foram seis semanas perdidas, cujas consequências são vistas agora em Nova Iorque, transformada em uma cidade fantasma e com os hospitais à beira do colapso, e em outras cidades, como Nova Orleans e Miami. O auge da pandemia em Nova Iorque é esperado, segundo o governo do estado, Andrew Cuomo, para “duas ou três semanas”.

Isso em um país em que o sistema de saúde é hiperprivatizado, dezenas de milhões não têm qualquer assistência médica ou simplesmente não teriam como pagar uma internação em UTI, e milhões de imigrantes sem documentos não irão em busca de socorro médico para não serem extraditados.

Feita a meia-volta, agora Trump até mesmo assevera que é graças a ele que as coisas não chegaram ao pior. “Você teria pessoas morrendo por todo o lugar”. “Você teria visto pessoas morrendo em aviões, você teria visto pessoas morrendo em saguões de hotéis. Quantas pessoas já viram alguém morrer? Você teria visto a morte por todo o lado”.

Em 72 horas, o total de mortes dobrou no estado de Nova Iorque. Chegou a NY na segunda-feira o navio-hospital USNS Comfort, com mil leitos, para atender pacientes que não sejam de coronavírus e ajudar a desafogar os hospitais da cidade. O hospital de campanha no Central Park está pronto. Governadores republicanos, que vinham resistindo a encarar de frente a pandemia, como a Flórida, passaram a dar ordem “ficar em casa”.