Donald Trump foi declarado “não culpado” no processo de impeachment aberto pela Câmara e continuará presidente, decidiu o Senado dos EUA em votação na quarta-feira. Sem surpresa, Trump, que era acusado de abuso de poder e obstrução ao Congresso, foi isentado por respectivamente 52 a 46 e 53 a 47.

A pizza já tinha ido para o forno na semana anterior, quando o Senado recusou convocar novas testemunhas – a mais notória delas, o ex-conselheiro de Segurança Nacional John Bolton – e admitir novos documentos, que estavam vazando diariamente.

Apenas um senador, o republicano Mitt Romney, cruzou as linhas partidárias em seu voto a favor da acusação de abuso de poder.

“Portanto, é ordenado e julgado que Donald John Trump seja e agora é absolvido das acusações…”, proclamou o chefe de cerimônias e cabeça da Suprema Corte, John Roberts, dando por encerrado o que muitos viram como um turno preliminar das eleições de 2020.

“NORMALIZAÇÃO DA ILEGALIDADE”

O que mereceu da presidente da Câmara, Pelosi, a declaração de que “hoje o presidente e os republicanos do Senado normalizaram a ilegalidade e a rejeição do sistema de equilíbrio [entre os poderes] em nossa constituição”.

Para que fosse condenado e deposto, Trump teria que ser considerado culpado por dois terços dos senadores (67 dos 100), o que implicava em ter de deslocar o voto de 20 senadores republicanos, o que jamais esteve perto de ocorrer.

Pelo Twitter, o presidente bilionário comemorou sua escapada, com a acintosa exposição de placas de ‘Trump 2024’, ‘Trump 2028’, ‘Trump 2032’ e por aí vai, como se pudesse ser presidente eterno. Anunciou um pronunciamento nesta quinta-feira (6) para o que chamou de “discutir a vitória sobre a farsa do impeachment”.

Na história dos EUA, jamais um presidente sofreu impeachment, o que agora se repetiu. Apenas no caso de Nixon, ele renunciou antes que fosse à votação, em consequência do escândalo do Watergate e da crise escancarada nos EUA pela derrota no Vietnã, pela luta pelos direitos civis e pelo colapso do dólar acoplado ao ouro. Os outros foram Bill Clinton, no século passado, e Andrew Johnson, logo depois da Guerra Civil.

Foi Bill Clinton, também isentado no Senado do impeachment, na época empurrado pelos republicanos a pretexto de um escândalo sexual, quem inaugurou o método de bombardear outro país – no caso, Sudão e Iugoslávia – para se escudar no chauvinismo que impera na sociedade norte-americana, desviar a discussão e se safar. Funcionou.

Na variante de Trump, assassinou com míssil disparado de drone o mais alto comandante militar iraniano e anunciou o ‘acordo do apartheid do século’ para o Oriente Médio.

Sucintamente, Trump respondeu ao processo por duas acusações. “Abuso de poder” por pedir por telefone ao novo presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que investigasse Joe Biden e seu filho, com o ex-vice-presidente sendo considerado então o pré-candidato democrata melhor colocado. Ação apontada pelos democratas como “interferência de um governo estrangeiro” em favor da reeleição de Trump em 2020.

E “obstrução ao Congresso”, por impedir o depoimento de vários figurões de seu governo que haviam intimados, e por recusar a entrega de documentos referentes às acusações.

Para obter de Zelensky o atendimento de seu “pedido de favor”, que incluía investigar o governo ucraniano anterior e relações com o Diretório Nacional Democrata na eleição de 2016, a Casa Branca bloqueou a ajuda militar de quase US$ 400 milhões, ação considerada pelos promotores democratas do impeachment como uma “ameaça à segurança nacional” em favor da Rússia, por causa do conflito no leste do país depois do golpe da CIA de 2014 em Kiev.

A linha de defesa de Trump e de sua equipe jurídica foi, sempre, dizer que o presidente “nada” fez de errado; se fez, não seria passível de impeachment, só “inapropriado”; apenas quis combater a “corrupção na Ucrânia”; e que os democratas tentavam desconhecer o resultado das eleições de 2016 e interferir nas eleições de 2020.

O voto mais importante no Senado foi do republicano e ex-candidato a presidente do partido em 2012, Mitt Romney, que ao endossar expressamente a acusação democrata de que Trump cometeu abuso de poder, provocou um rombo no casco do encouraçado presidencial, ao roubar do presidente a alegação de que tudo não passou de uma perseguição partidária contra ele, uma “caça às bruxas”.

Foi a primeira vez em um julgamento de impeachment em que um senador votou contra o presidente do seu próprio partido.

É, mais ou menos, a repetição da véspera, em que o simples fato de rasgar página por página o discurso de Trump, demarcou o terreno em disputa e jogou água no chope do presidente bilionário.

“O presidente é culpado de um abuso chocante da confiança pública”, disse Romney em um discurso no Senado justificando seu voto. “Corromper uma eleição para se manter no poder talvez seja a violação mais abusiva e destrutiva do juramento ao cargo de alguém que eu possa imaginar”, acrescentou.

O Washington Post chamou a atitude de Romney de “traçar uma linha na areia” – uma demarcação em relação ao trumpismo vociferante.

Em entrevista à Fox News, Romney não se furtou a declarar que era difícil para ele “imaginar um ataque mais sério à Constituição e a uma república como a nossa”. “Dizer que um presidente procura alistar um governo estrangeiro para corromper nossas relações para permanecer no poder… isso acontece em autocracias de sucata. Isso não acontece nos Estados Unidos da América”.

Como disse um colunista do Washington Post, “o ato de bravura de Mitt Romney não mudou nada e mudou tudo”. O troco vem aí: segundo a mídia, Trump já está preparando um vídeo atacando Romney.

DAY AFTER

Nas páginas do Washington Post, os promotores designados pela Câmara para a acusação no Senado reiteraram que Trump “se considera acima da lei”, que comete “comportamento corrupto” para se beneficiar politicamente, comprometendo “a segurança nacional”, “violando o processo eleitoral” e “traindo seu país”.

Congressistas democratas estão dizendo que “alguns republicanos”, em particular, “pensam que Trump é culpado”, indicando que Romney não estava sozinho.

Como rescaldo do tiroteio institucional em curso, senadores republicanos anunciaram que vão pedir os registros de viagem à Ucrânia do rebento de Joe Biden, Hunter, que até pouco antes do início do escândalo do telefonema a Zelensky no ano passado continuava diretor da empresa de gás Burisma.

A polarização continua, com a Fox News cantando vitória enquanto o Washington Post, em editorial, aconselhou o Congresso a “continuar a responsabilização de Trump” – mais ou menos, um estado de impeachment permanente.

Artigo no Guardian especulou sobre a polarização nos EUA em curso nos EUA e que uma crise constitucional sobre o resultado da eleição faria até o julgamento do impeachment parecer brincadeira de criança.

A questão implícita é a crescente divergência entre o voto popular – em que os democratas vencem, até Hillary teve três milhões de votos a mais – e as manobras nos “meandros do colégio eleitoral”, particularmente vencendo nos estados do meio-oeste, para a manutenção de Trump no poder. (E suas nuances, como as fake news e a psicometria a la Cambridge Analytica).

Em meio a isso tudo, partiu do pré-candidato Bernie Sanders, logo após o apagão no resultado do caucus de Iowa, a mensagem mais ponderada e urgente: “irmãos e irmãs, juntos vamos derrotar Donald Trump”.