Dança de Trump com os feudais sauditas em 2017: “Fiz com que o Congresso deixasse o príncipe em paz” | Foto: Reuters

Entre as muitas revelações do novo livro do jornalista Bob Woodward, Rage (Raiva, em versão livre) sobre o governo Trump, uma das mais cabeludas é sua cumplicidade no acobertamento do trucidamento do jornalista saudita Jamal Khashoggi, dentro do consulado do seu país, confessado com uma frase lapidar: “salvei o traseiro” do príncipe Mohammad Bin Salman.

O livro, o segundo do jornalista sobre o governo Trump, está sendo lançado nesta terça-feira (15) nos EUA e teve trechos antecipados na semana passada.

Woodward, ao lado de Carl Berstein, tornou-se famoso pelo papel que suas denúncias, nas páginas do Washington Post, cumpriram durante as investigações do Watergate, que culminaram na renúncia do presidente Richard Nixon, antes que fosse deposto por impeachment, na década de 1970.

Ao ser indagado por Woodward, em 22 de janeiro, sobre o caso, Trump não se furtou a relatar ter “salvo o traseiro dele”, isto é, do príncipe herdeiro Mohammad Bin Salman.

“Eu consegui fazer com que o Congresso o deixasse em paz” – acrescentou -, “consegui fazer com que eles parassem”.

“O pessoal do Post está chateado pelo assassinato de Khashoggi”, comentara antes o jornalista, acrescentando que aquilo tinha sido “uma das coisas mais brutais”, como o próprio Trump admitira.

“Sim, mas o Irã está matando 36 pessoas por dia”, retrucou Trump na maior cara de pau.

Como se tivesse sido Teerã – e não Riad -, que tivesse atraído um seu nacional a um consulado para entregar uma certidão para casamento, um jornalista tido como oposição, feito picadinho dele, botado um sósia para encenar que estava saindo, à luz do dia, mas deixando a noiva na porta e dado sumiço nos restos mortais, que até hoje não foram encontrados.

E com uma verdadeira caravana da morte se deslocando previamente da Arábia Saudita para a Turquia e fugindo o mais rápido que pôde – além das gravações vazadas.

Em 2017, ficou marcada aquela cena ridícula de Trump dançando com os anfitriões feudais em Riad, todos de espada na mão, em comemoração a uma venda bilionária de armas norte-americanas – US$ 110 bilhões – para massacrar civis no Iêmen e ameaçar o Irã de guerra.

Uma cena também muito comemorada, como diria anos mais tarde Trump, por “todas aquelas empresas maravilhosas que fazem as bombas e os aviões”e pelo alto escalão do Pentágono que só pensa em “mantê-las felizes”.

Afinal, não ia ser um jornalista contador de fake news que iria atrapalhar os excelentes negócios dos monopólios de guerra de Washington com Riad, ainda mais no que depender de Trump.

Levando em consideração que Trump minimiza a existência de 190 mil cadáveres de norte-americanos, vítimas da sua incúria, da sua mentira e da Covid-19, o que seria 1 jornalista – ainda mais, árabe – morto e esquartejado?

Segundo o livro de Woodward, Trump disse ter se envolvido muito com o caso e que estava a par de “tudo” sobre “toda a situação”.

Quanto à inocência de Bin Salman, Trump respondeu: “Ele sempre dirá que não fez. Ele diz isso a todo mundo e francamente eu estou feliz que ele diga isso. Mas ele dirá a você, dirá ao Congresso e dirá a todo mundo. Ele nunca disse que fez”.

O crime aconteceu em 2018 e gerou um escândalo mundial. A noiva ficara na porta. Não havia como esconder que fora cometido um crime bárbaro, até pelos padrões de Riad. Afinal, esse gosto por decapitações não foi inventado pelo Estado Islâmico.

No final do ano passado, alguns bodes expiatórios – paus mandados, sanguinários, mas paus mandados – haviam sido condenados à morte pelo assassinato, enquanto o palácio real falava que tudo fora “à revelia”. Quanto às figuras mais próximas ao príncipe MBS, o tribunal os considerou inocentes, por falta de provas.

A imparcial corte concluiu que nada havia contra o cônsul saudita em Istambul, Mohamed Al Otaibi, em cujo escritório o jornalista foi trucidado. Menos ainda contra os dois réus mais notoriamente ligados ao príncipe, o conselheiro Saud al Qahtani e o chefe adjunto dos serviços secretos sauditas, Ahmed Asiri.

Graças ao espírito compassivo dos filhos do trucidado, as sentenças de morte acabam de ser trocadas por penas de 20 anos de prisão para os cinco principais autores. Outros três tiveram penas de 7 a 10 anos. A identidade dos oito não foi revelada.

Pela lei islâmica, os parentes podem perdoar o assassino de seus entes queridos, e o perdão pode levar a uma suspensão da execução. Juntando isso, mais os conhecidos poderes de convencimento da realeza feudal, em maio os filhos de Kashoggi anunciaram que estavam dando o perdão, por ocasião do mês santo do Ramada.

Como é notório, Bin Salman é muito persuasivo, como descobriram recentemente membros da família real, involuntariamente hospedados em um hotel cinco estrelas de Riad, com tratamento VIP garantido por especialistas da Blackwater ou congênere.

Ex-consultor de ex-chefe da inteligência saudita caído em desgraça, e ex-editor de jornal, Khashoggi passara a ser mal visto pelo príncipe Bin Salman, e acabou não adiantando a precaução que tomara de mudar de ares, indo para os EUA, onde escrevia para o Post.

Para a Relatora Especial da ONU para Execuções Extrajudiciais, Agnès Callamard, as sentenças são uma “paródia de justiça”. “Essas decisões não têm qualquer legitimidade legal ou moral”, disse ele. De acordo com a esposa de Khashoggi, o veredicto não passa de uma “farsa”.

 

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