Tropas sírias entram na cidade de Tal Tamr, nordeste do país, após Damasco fechar acordo com os curdos na região. (Via SANA)

As tropas norte-americanas, que estavam ilegalmente em Manbij, na fronteira com a Turquia, bateram em retirada, enquanto já chegaram à cidade tropas sírias, após acordo mediado pela Rússia em que milícias curdas – conhecidas como Unidades de Proteção Popular (YPG) – aceitaram o ingresso imediato de soldados sírios, diante da incursão de tropas, artilharia e aviação turca iniciada no dia 9 sob o cínico nome de “Fonte da Paz” para ocupar uma faixa na fronteira de 30-35 km de profundidade no norte do país e 120 km de extensão.

Segundo o próprio Pentágono, 1000 soldados norte-americanos estão de saída do norte da Síria e já estão deixando Kobane. As primeiras unidades sírias começaram a entrar em Manbij na noite de segunda-feira, com previsão para se completar em 48 horas, nesta terça-feira (15).

Em Hasaka – capital da província de mesmo nome -, em Qamishli e outras cidades, o acordo foi comemorado efusivamente nas ruas, com pessoas erguendo bandeiras sírias, buzinadas e disparos para o alto, assinalou a AFP. Tropas sírias e milícias curdas farão patrulhas conjuntas.

 

As tropas sírias também estão a caminho de Ayn Al Arab (ou Kobane, na denominação curda), às margens do rio Eufrates e maior cidade da fronteira com a Turquia, depois de já haverem ingressado em Tabqa, Al Araimi e Tal Tamer – esta, na estratégica rodovia M-4 de leste-oeste, paralelo à fronteira -, conforme o canal de televisão libanês Al Mayadin.

A calorosa recepção dos moradores de Ayn Issa às tropas sírias foi mostrada na tevê estatal síria. O retorno a Tabqa tem um valor todo especial: foi na base aérea de lá que em 2014 o Daesh (Estado Islâmico) executou a sangue frio 200 jovens cadetes já rendidos e atirou seus corpos em uma vala.

Na véspera da visita oficial à Arábia Saudita, o presidente Putin havia reiterado que “todas as tropas estrangeiras que estão ilegalmente na Síria devem se retirar e sua soberania, restaurada”. Parceiro com Moscou e Ancara do Processo de Paz da Astana, o Irã disse compreender as preocupações de segurança de Ancara, mas advertiu que a solução estava na retirada das tropas estrangeiras e entrada do exército sírio na área, não outra invasão. O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, pediu a todas as partes “que resolvam suas preocupações por meios pacíficos”.

A ordem de marchar para proteger os curdos sírios foi anunciada pela agência de notícias estatal SANA: “As unidades do Exército Árabe Sírio começaram a se mover para o norte para enfrentar a agressão turca em curso em cidades e áreas ao norte das províncias de Hasaka e Raqqa, onde as forças turcas cometeram massacres contra os habitantes locais, ocuparam algumas áreas e destruíram a infraestrutura”. O exército sírio se comprometeu em completar o avanço em 48 horas.

De acordo com o Washington Post, o acordo foi alcançado após três dias de negociações entre as forças curdas, enviados russos e Damasco. Alguns pesos pesados sírios, como o vice-chanceler Faisal Miqdad, chegaram a repelir qualquer acordo com os líderes curdos, chamando-os de “agentes dos americanos”. O governador da província de Hasaka, Jamir Hamoud Mousa, dissera que não iria negociar com grupos que “procuram a desintegração da Síria e que com sua conduta traiçoeira trouxeram para o país o ocupante turco”, segundo o jornal Al Watan.

Para o New York Times, o acordo patrocinado pela Rússia significa que o governo Assad está retomando o controle de uma área até aqui fora de alcance. As milícias curdas controlam um quarto da superfície da Síria, inclusive as áreas do petróleo e represas estratégicas.

Como as milícias curdas alinhadas sob o nome de fantasia de ‘Forças Democráticas Sírias’ haviam ficado de fora do Comitê Constitucional de 150 membros, entre governo, oposição e sociedade civil, fechado no dia 23 de setembro sob auspícios da ONU e data marcada para iniciar os trabalhos no dia 30 de outubro, visando uma nova constituição de consenso que abra caminho para eleições, tornara-se evidente que estas acreditavam piamente ser mais vantajoso insistir na subempreitada para Washington na Síria.

No dia 6, as coisas se precipitaram com o telefonema entre Trump e Erdogan – o do “sinal verde” -, e foi desencadeada a operação “Fonte da Paz” no dia 9, ao mesmo tempo em que começavam a partir as tropas especiais ianques das bases na fronteira para não serem pegas no fogo cruzado. No domingo, o chefe do Pentágono Mark Esper anunciou a retirada de 1000 soldados do nordeste da Síria, dizendo que “não colocaria militares americanos no meio de um conflito de longa data entre os turcos e o curdos. Não é por isso que estamos na Síria”.

De um Estado de fato dentro do Estado sírio, sob o guarda-chuva norte-americano, os líderes curdos se viram diante da incursão turca, que visa impor uma “zona segura” em que a ocupação norte-americana (sob fachada curda) seria trocada por uma ocupação turca chauvinista, onde 2 milhões de refugiados sírios seriam despejados, na prática formando um campo de concentração gigantesco. Para Ancara, as milícias curdas sírias não passam de uma extensão das milícias do PKK, organização que desde 1984 luta pela separação da Turquia.

Os curdos ficaram sabendo que tinham sido rifados pelo Twitter, com seus líderes – como assinalou o portal Sputnik em sua cobertura urgente da operação turca – se perguntando: “que merda é essa?” (sic). Quando insistiram em ter uma “zona de exclusão aérea” para não levarem bombas turcas na cabeça, foram informados pelo Pentágono de que isso não seria possível.

Os EUA informaram, ainda, que suas tropas estavam de partida das bases de Manbij e Kobane. Enquanto as tropas turcas avançavam, os comandantes curdos tentavam em desespero reverter o desastre, cobrando de Washington a “obrigação moral” de protegê-los.

Aos interlocutores norte-americanos, o general Mazloum Abdi disse que vocês estão “nos deixando para ser massacrados”. “Vocês não estão dispostos a proteger as pessoas, mas não querem que outra força venha e nos proteja, você nos venderam”.

Conforme o relato da Reuters, Mazloum disse que precisava saber se o Pentágono era capaz de “impedir que essas bombas caiam sobre nós ou não”. “Eu preciso saber, porque se você não for, preciso fazer um acordo com a Rússia e o regime [Assad] agora e convidar os aviões deles para proteger esta região.”

O pânico que se abateu sobre as hostes curdas pode ser visto na declaração do comandante militar de Kobane, Ismet Sheikh Hasan. “Fizemos tudo o que podíamos”, disse ele. “Convocamos o Ocidente [e] a liga Árabe, mas ninguém está vindo para ajudar, então não temos ninguém além de nós mesmos para defender [Kobane]. Os jovens curdos devem vir e defender suas casas, e as pessoas não devem abandoná-las – esta é a nossa terra. Parece que esse é o destino dos curdos, passar por isso a cada vez”.

Em um artigo publicado pela bíblia do intervencionismo norte-americano, a Foreign Affairs, Mazloum alertara seus mentores de que, entre o “genocídio” e “um duro compromisso” com Assad e a Rússia, não teria escolha.

Em entrevista ao Sputnik em Árabe, o ex-porta-voz oficial das Unidades de Proteção Popular (YPG), Reizan Hedu, assinalou os esforços que estão sendo feitos “para acabar com o sofrimento dos curdos sírios e de todo o povo sírio”, uma “solução radical da situação no norte do país, cuja base deverá ser o Estado sírio e sua direção política e militar, é ele que deve dirigir a operação de combate à agressão”.

Ao comando dos grupos árabes e curdos das chamadas ‘Forças Democráticas da Síria’ (FDS), Hedu apelou a que reconheçam o erro das “interações com os EUA”, que levaram a que a situação no norte da Síria “seja a que existe atualmente”. “Paguem por seus erros, corrijam sua conduta e conservem o que resta de honra”, enfatizou.

No comunicado em que o comando das FDS anunciou o acordo com o governo legítimo sírio, o tom já era outro. “Foi alcançado um acordo com o governo sírio – cujo dever é proteger as fronteiras do país e preservar a soberania da Síria – para que o Exército Sírio entre e desdobre ao longo da fronteira sírio-turca para ajudar as FDS a impedir esta agressão” da Turquia.

Da operação “Fonte da Paz”, além das tropas turcas, há o chamado “Exército Nacional Sírio”, de árabes chauvinistas pró-turcos, cujo comandante já esteve na folha dos EUA e tirou fotos com o finado senador John McCain, mas agora prefere o patrocínio de Erdogan.

Ancara anunciou a ocupação de três cidades – Tal Abiad, Suluk e Ras Al Ayn – e mais 22 aldeias, além da “neutralização” de 560 opositores. Também cortaram a estratégica rodovia Hasaka-Aleppo. Os intensos bombardeios já forçaram 190 mil pessoas a deixarem suas casas.

No sábado, pelo menos nove civis foram executados pelos mercenários a soldo de Erdogan em Tal Abiad. Uma líder feminista, Hevrin Khalaf, foi arrancada de seu carro e assassinada a tiros, mais seu motorista, após ser parada em uma rodovia pelos invasores pró-turcos. Bombardeio a um mercado em Ras Al Ayun deixou dezenas de feridos, com corpos carbonizados e mutilados espalhados por toda parte.

Na segunda-feira, Trump anunciou que irá sancionar a Turquia pela operação ‘Fonte da Paz’, aumentando as tarifas de volta para 50%, patamar em que estava antes da redução de maio. Também determinou a suspensão das negociações de um acordo bilateral de comércio com Ancara, cujo volume anual é de US$ 100 bilhões. A lista de sanções inclui os ministros da Defesa, da Energia e do Interior.

Diante da grita generalizada do establishment sobre sua retirada do norte da Síria, Trump asseverou que “deixe que a Síria e Assad protejam os curdos e lutem contra a Turquia por sua própria terra”. Acrescentou ter dito a seus generais: “por que deveríamos estar lutando pela Síria e Assad para proteger a terra de nosso inimigo? Quem quiser ajudar a Síria a proteger os curdos para mim está bom, seja Rússia, China ou Napoleão Bonaparte. Espero que todos se saiam bem, estamos a 12 mil quilômetros de distância!”

Segundo relato do vice-presidente Mike Pence, Trump também telefonou para Erdogan para exigir um cessar-fogo imediato no norte da Síria. Pence anunciou que viajará a Ancara “o mais rápido possível”.

Os governos europeus condenaram a incursão turca e anunciaram a suspensão da venda de armas ao país. Londres e Paris, que têm tropas especiais na área ilegalmente, estão mais preocupados em tirar seus invasores do meio do tiroteio o quanto antes. Também há preocupação generalizada de que presos do Daesh mantidos em prisões ou campos na região fujam, aproveitando da redução da vigilância e dos combates. Já houve uma fuga, de cerca de 700.