O Tribunal Penal Internacional (TPI) autorizou na quinta-feira (5) uma investigação que tem como alvo o exército dos EUA e funcionários da CIA por crimes de guerra e contra a humanidade cometidos no Afeganistão entre 2003 e 2014, revertendo decisão de instância inferior de abril do ano passado.

É a primeira vez que o TPI abre uma investigação formal centrada nas forças norte-americanas.

A promotora-chefe Fatou Bensouda iniciará uma investigação completa, a partir de evidências que mostram que os americanos “cometeram atos de tortura, tratamento cruel, ofensas à dignidade pessoal, estupro e violência sexual” no Afeganistão durante os primeiros anos da ocupação, determinou o TPI.

“A câmara de apelações considera apropriado … autorizar a investigação”, declarou o juiz-presidente Piotr Hofmanski.

A decisão provocou uma irada resposta do secretário de Estado e ex-diretor da CIA, Mike Pompeo, que chamou o tribunal de “instituição política irresponsável, disfarçada de órgão legal” e a investigação, de  “vingança política”. Ele prometeu, ainda, proteger todos “os nossos cidadãos” desse “tribunal renegado”, do qual os EUA “não fazem parte”.

Como o Afeganistão é signatário do TPI, a jurisdição do tribunal se aplica ao caso. No ano passado, os EUA ameaçaram revogar vistos dos juízes e promotores do TPI, caso algum militar ou agente norte-americano fosse investigado pelos crimes de guerra.

Até aqui, o TPI só vinha levando a julgamento dirigentes africanos, a ponto de ser ironizado como “Tribunal de Preto Internacional”, o que chegou a causar o afastamento de países do continente do órgão.

No ano passado, um juiz da Câmara de Pré-julgamento do TPI considerou que havia possibilidade de haver crimes dessas naturezas no Afeganistão, mas rejeitou autorizar a investigação sob o pretexto de dificilmente seria possível condenar alguém, citando haver “uma perspectiva ruim para a cooperação estatal” – isto é, os EUA estavam contra.

O magistrado acrescentara que eram “extremamente limitadas” as perspectivas de um processo bem-sucedido que sirva aos interesses da justiça, “dada a situação no Afeganistão”. Na época, o então conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, ameaçara juízes e promotores do TPI.

Rejeição recebida com protestos de entidades de defesa de direitos humanos. Apesar de a investigação ter sido, afinal, aberta, não se sabe se algum suspeito será efetivamente indiciado ou mesmo se será levado até Haia.

Em dezembro, promotores entraram com recurso junto à instância de apelações do TPI, que o acolheu, ressaltando que os juízes deveriam ter considerado “apenas se havia motivos para prosseguir e se a Corte tinha jurisdição sobre os crimes”. Ambos os requisitos são atendidos aqui, confirmou.

“A Câmara de Apelações considera que é apropriado rever a decisão no sentido de que o promotor é autorizado a começar uma investigação sobre os crimes alegados cometidos no território do Afeganistão desde 1º de maio de 2003, assim como outros que têm nexo com o conflito armado no Afeganistão”, disse o juiz presidente, Piotr Hofmanski.

Como sustentou Bensouda em sua alegação, existem fortes indícios de que “membros das Forças Armadas dos Estados Unidos perpetraram crimes de guerra de tortura e crueldade, ataques à dignidade pessoal, violência sexual e estupro”, desde 2003. Entre os crimes estão as supostos torturas sofridas por 61 prisioneiros nas mãos das tropas americanas. Os mesmos relatórios apontam ainda “para membros da CIA, por crimes semelhantes no Afeganistão e em outros Estados (Polônia, Romênia e Lituânia) contra réus de terrorismo; em particular contra 27 pessoas ”.

Katherine Gallagher, advogada do Centro de Direitos Constitucionais, que representa um grupo de vítimas que foram detidas pelos EUA, afirmou que a decisão dá nova vida ao mantra de que ninguém está acima da lei, e restaura alguma esperança de que a justiça possa estar disponível a todos.

“As muitas vítimas de atrocidades cometidas no contexto do conflito no Afeganistão merecem finalmente ter justiça”, disse Bensouda após a decisão. “Hoje elas estão um passo mais perto.”

No final de fevereiro, o governo Trump e a guerrilha do Talibã assinaram em Doha, no Catar, um acordo para retirada completa, em 14 meses, das tropas americanas e da Otan do território do Afeganistão, e que prevê negociações da guerrilha com o regime instalado por Washington. Quatro dias após o acordo, o Pentágono voltava a bombardear supostos alvos da guerrilha, que na maioria dos casos são civis que estavam no lugar errado na hora errada. A promotora-chefe anunciou, ainda, que a investigação incluirá crimes cometidos pela guerrilha e pelas forças do regime de Cabul durante o conflito.