Embora Freud tenha sido influenciado pelas ideias de Gustave Le Bon, sua análise foi mais complexa. Ele partiu da tese, fundamental para ele, de que haveria um conflito opondo os indivíduos entre si e com a sociedade, mas admitiu que a vida humana (como a história) pode ser moldada pelo desenvolvimento deste conflito e levar a situações novas – historicamente novas. Essa visão do pai da psicanálise não é, porém, compartilhada pela imensa maioria dos ideólogos e escritores influenciados por ele.

Por Jose Carlos Ruy*

Para Freud, o desenvolvimento humano repete, a nível individual, etapas que a humanidade viveu desde épocas anteriores. No livro “O mal-estar na civilização” (1930) ele fez a apresentação mais acabada de suas ideias sobre a história, diz seu biografo Ernest Jones. Freud afirmou que a sociologia “não pode ser outra coisa senão psicologia aplicada” (Jones: 1989; Freud: 1974). Para Freud, em seu desenvolvimento, e pela educação que recebe, o indivíduo reprime seus impulsos inconscientes e inatos, que seriam socialmente ameaçadores.

Em “Moisés e a religião monoteísta” (1939) Freud reafirmou que o “conteúdo do inconsciente é coletivo” e faz parte do “patrimônio universal dos seres humanos” (Freud: 1989). Segundo ele, o que ocorreu nos primórdios da humanidade é semelhante ao que a psicologia revela, “embora não de todo idêntico”. E isso o levou a afirmar “que os precipitados psíquicos daqueles tempos primordiais haviam se tornado patrimônio hereditário” que, em cada geração precisa ser novamente despertado – isto é, neste ponto ele introduz uma dimensão histórica e cultural ao dizer que aqueles instintos precisam ser despertados a cada geração, de acordo com o desenvolvimento alcançado. Ele se refere ao “simbolismo, com segurança ‘congênito’, que provém da época do desenvolvimento da linguagem”. Mas faz uma ressalva ditada pela prudência: “O que pode nos faltar em matéria de certeza, pode ser obtido de outros resultados da investigação psicanalista” (Freud: 1989).

Freud não acreditava que houvesse algum plano pré-estabelecido imposto ao desenvolvimento histórico, diz Jones. Ele via a epopeia humana como um conflito infindável movido pelo impulso para satisfazer instintos primários que geram tendências destrutivas incoercíveis (Jones: 1989). Em “O Futuro de uma ilusão” (1927), Freud escreveu: “em todos os seres humanos estão presentes tendências destrutivas, isto é, antissociais e anticulturais” (Freud: 1989).

Isso tem efeitos sociais e políticos ao exigir que a “cultura” seja imposta “a uma maioria recalcitrante por uma minoria que soube se apropriar dos meios de poder e compulsão” (Freud: 1989). Isto é, em termos marxistas, por uma classe dominante que impõe a disciplina, que atende a seus interesses, às demais classes subalternas. Freud iguala, nessa compreensão, a imposição do trabalho à necessidade de “governo da massa por parte de uma minoria, pois as massas são indolentes e pouco inteligentes, não amam a renúncia do pulsional”, sendo impossível convencê-las da inevitabilidade dessa renúncia. Reagindo a essa imposição, os indivíduos da massa “se apoiam uns aos outros na tolerância de seu desenfreio” (Freud: 1989).

Mesmo assim considerou que as mudanças são possíveis. Ele pensou ser “provável que certa porcentagem da humanidade – em consequência de disposições enfermiças ou de uma intensidade pulsional hipertrofiada – permaneça sempre a-social”. Mas, disse, talvez seja possível “diminuir a maioria hoje inimiga da cultura até convertê-la em uma minoria” (Freud: 1989).

Ele foi cuidadoso ao escrever sobre a União Soviética, onde ocorria a grande e profunda tentativa de mudança social e revolucionária. Evitou emitir uma opinião sobre a construção do socialismo. “Não quero dar a impressão de que me extraviei da senda prefixada por minha indagação. Por isso quero assegurar expressamente que está longe de mim o propósito de formular juízos sobre a grande experiência cultural que se desenvolve hoje no vasto país situado entre a Europa e a Ásia.” E confessava seu desconhecimento a respeito: “não tenho o conhecimento nem a capacidade para decidir se é ou não realizável, nem para examinar se os métodos empregados são adequados ao fim, nem para medir o tamanho do inevitável abismo que separa o propósito de sua execução” (Freud: 1989).

Apesar de manifestar estas reservas, Freud, baseado na crença de que cada ser humano traz, no íntimo, pulsões instintivas e antissociais, rejeitou a opção comunista para reorganizar a sociedade em novas bases, eliminando a propriedade privada. Há, supôs, necessidades psicológicas mais profundas e elementares, que não são atendidas apenas com a abolição da propriedade privada. “Os comunistas acreditam ter encontrado o caminho para a redenção do mal” e dizem que o “ser humano é integralmente bom, transborda de benevolência ante seus próximos, mas a instituição da propriedade privada corrompeu sua natureza. A posse de bens privados dá ao indivíduo o poder, e com ele, a tentação de maltratar a seus semelhantes; os despossuídos não podem a não ser se rebelar contra seus opressores. Seus inimigos. Se se cancela a propriedade privada, se todos os bens se declaram comuns e se permite participar de seu gozo a todos os seres humanos, desaparecerão a malevolência e a inimizade entre os homens. Satisfeitas todas as necessidades, ninguém terá motivos para ver no outro seu inimigo. Todos se submeteriam de boa vontade ao trabalho necessário”. Freud, com base nos tais impulsos inatos do inconsciente, não aceitou essas ideias e argumentou contra elas ao se referir a necessidades psicológicas que considera elementares. “Não é de minha incumbência a crítica econômica ao sistema comunista; não se pode indagar se a abolição da propriedade privada é oportuna e vantajosa”. Mas considera esta premissa “uma vã ilusão” – o fim da propriedade privada pode eliminar um instrumento poderoso que gera a violência. Mas não elimina o mais poderoso impulso para a agressão, que tem base nas “desigualdades de poder e influência”, das quais a opressão abusa. “A agressão não foi criada pela instituição da propriedade; reinou quase sem limitações em épocas primordiais quando esta era ainda muito escassa” (Freud: 1989).

Isto é, a agressividade dos seres humanos resultaria de impulsos inconscientes, primordiais e inatos. E suas razões seriam antes psicológicas do que sociais, políticas e econômicas. E, por isso, seria um engano a ideia de fim do Estado e ausência de qualquer tipo de governo.

Como cientista dedicado ao estudo de processos concretos, Freud fez em “O Futuro de uma ilusão” uma análise onde há clara referência à divisão de classes na sociedade (ele põe um sinal de igual entre as palavras “sociedade” e “cultura”) e no processo de trabalho, com a presença de uma classe dominante e outra dominada. “Toda cultura repousa”, escreveu, “na compulsão ao trabalho e na renúncia do pulsional, e por isso inevitavelmente provoca oposição nos afetados por tais requerimentos” (Freud: 1989).

Esta “compulsão ao trabalho” e “renúncia” à satisfação dos instintos se assemelha ao que Marx descreveu como trabalho alienado, embora Freud não use essa linguagem. E, encarando metafisicamente o reflexo do conflito entre individual e coletivo na mente humana, não pôde ver essa percepção como condicionada pelo processo de trabalho alienado e pelo processo social que mutila a alma dos trabalhadores e dos seres humanos.

Referências

  • Freud, Sigmund. Moisés y la Religión Monoteísta. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1989 (Obras Completas, v. 23).
  • Freud, Sigmund. O futuro de uma ilusão, in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol.XXI. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
  • Freud, Sigmund. O mal estar na civilização. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol.XXI. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
  • Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud, v. 3. Rio de Janeiro, Imago, 1989