O procurador geral da República, Augusto Aras, determinou a abertura de inquérito no Superior Tribunal de Justiça para apurar eventual omissão tanto do governador do Amazonas, quanto do prefeito de Manaus, nesta crise que levou ao colapso do sistema de saúde, especialmente no que diz respeito ao fornecimento de oxigênio para os pacientes com covid-19.

O procurador afirmou que levou em consideração inclusive o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que cabe tanto a União, quanto aos Estados e municípios atuarem em conjunto no combate a pandemia. A procuradoria também deu 15 dias de prazo para o ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, explicar porque não agiu para garantir o fornecimento de oxigênio aos hospitais de Manaus, antes, mesmo tendo sido avisado por diversas vezes, com pelo menos quatro dias de antecedência, deste problema crítico de escassez do insumo.

A professora Deisy Ventura, coordenadora do doutorado em Saúde Global e Sustentabilidade da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e editora do Boletim Direitos na Pandemia, indignou-se diante a falta de responsabilização do governo federal sobre a disseminação de mentiras e colapsos reiterados ocorridos em Manaus. A especialista diz que “o governo federal é o coordenador do sistema de saúde”.

A situação vivida por Manaus — comenta Deisy — mostra o quanto a “omissão ou a ação propositada” dos nossos governantes pode fazer com que tenhamos nossa vida ceifada mais cedo e de uma forma indigna. Na opinião dela, o bordão banalizado pelo presidente Bolsonaro de que “todos vamos morrer um dia”, precisa ser desqualificado com essas imagens de Manaus. “As pessoas que morreram em Manaus não precisavam ter morrido. Oxigênio no hospital é uma providência elementar não é uma providência de alta complexidade. Que isso aconteça no Brasil, que tem um sistema de saúde referência mundial, é absolutamente inaceitável”, indignou-se.

“Manaus mostra o que estamos vivendo há muito tempo: que a pandemia do coronavírus vai sobrecarregar o sistema de saúde do nosso país. Não estamos falando só de casos graves, mas de casos leves e até outros problemas de saúde, pois quando o sistema está sobrecarregado muitas pessoas vão perder sua vida ‘na hora errada’. Todas as pessoas que morreram por falta de oxigênio poderiam ter tido a continuidade da sua vida e grande parte a recuperação plena, caso o sistema estivesse em plenas condições”.

Competência comum

Quanto a responsabilidade por isso, ela diz que não há nenhuma dúvida na Constituição brasileira, em seu artigo 24, que gerou essa polêmica de quem poderia legislar em matéria de saúde. O STF se pronunciou claramente de que a competência normativa para ditar normas sobre a pandemia pertence aos três entes federativos, mas, como diz o artigo 23, é uma “competência comum” proteger a saúde da população.

“O presidente da República mente descaradamente de que ele foi proibido pelo STF de agir. Muito ao contrário, diversos acórdãos e liminares cobraram do Governo Federal suas responsabilidades. Por força de uma vasta e consolidada legislação do Sistema Único de Saúde, ele é o coordenador e cabeça do SUS, que hoje está acéfalo”, criticou.

Deyse considera “surpreendente” que essa ação do procurador-geral da República vise, particularmente, o governador e o prefeito, e “pegue leve” com o governo federal, que tem uma “responsabilidade enorme”, inclusive por circunstâncias que são específicas nesse episódio de Manaus.

Colapso em todo o sistema

Após sofrer um colapso no sistema de saúde no início da pandemia, se tornando um modelo para o país, deveria ser exemplo de algo que não pode acontecer. Mas aconteceu de novo! Manaus volta a ser um exemplo das disfunções que podem acontecer em meio a uma pandemia gerando prejuízos em vidas, mas também à economia.

Desta forma, Manaus se tornou um caso paradigmático no mundo, com manifestações da própria Organização Mundial da Saúde, a respeito, pois a situação envergonhou a imagem do Brasil em todo o mundo.

No primeiro momento, Manaus serviu de alerta para os demais governadores e prefeitos brasileiros. “Fez com que alguns gestores locais abandonassem o discurso negacionista do governo federal [em relação à propagação do coronavírus], porque viram a gravidade do que estava acontecendo. Houve uma sobrecarga inclusive do sistema funerário, o que assustou os gestores, que passaram a desconfiar da retórica e da prática do governo federal”, relembra a especialista.

A responsabilidade da sociedade

Mas a responsabilidade do episódio não fica somente por conta dos entes federativos, como aponta Deisy em sua análise: “Também há uma responsabilidade muito grande da sociedade”. O governador do Amazonas, no dia 23 de dezembro, por meio de um decreto, suspendeu as atividades não essenciais, “que sabemos que é algo que funciona para evitar a sobrecarga do sistema”. E houve um movimento liderado por políticos e empresários bolsonaristas de contrapor a decisão do governador, que acabou voltando atrás na decisão.

Durante todo o ano passado, conforme lembra ela, a população foi incitada por esses políticos bolsonaristas a se rebelar contra as recomendações sanitárias, falando até em “totalitarismo”. O poder judiciário local que obriga a retomada do decreto, “tarde demais”, após as festas de fim de ano.

Deyse também diz que o Brasil resta como único país, “passando vergonha” por defender tratamentos preventivos contra a Covid-19, quando o médico francês que eram referência na prescrição de cloroquina já admitiu que seus estudos eram imprecisos e está sendo processado por charlatanismo.

“Com isso, o governo federal tem responsabilidade dimensionada de duas formas. Primeiro porque não prestou assistência oxigênio quando foi avisado do problema e, segundo, que quando Manaus pede socorro, o ministro da Saúde organiza uma missão pró-cloroquina. Vai a Manaus distribuir cloroquina e lançar um aplicativo que ajudaria os médicos na resposta à pandemia, recomendando medicamentos sem eficácia comprovada.

“Ele chegou a dizer a aberração de que a catástrofe em Manaus se deve a não ter usado o tratamento precoce com cloroquina”, diz. Deyse menciona o trecho do livro do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, “Um paciente chamado Brasil”, do momento em que Jair Bolsonaro deixou de ouvi-lo para se cercar de médicos bolsonaristas que defendiam imunidade de rebanho, que não haveria número grande de casos e óbitos e que, principalmente, a cloroquina funcionaria.

“Ele não teve a honestidade e competência para mudar sua posição, como tantos outros governantes tiveram e abandonaram completamente essa canoa furada”, afirmou.

Com isso, o Brasil fica à revelia de decisões judiciais liminares que dão prazos de 48 horas, quinze dias, para que os governos façam seu trabalho, sem perspectiva de que sejam responsabilizados pela falta de ação e informações falsas na pandemia. “Nós temos todos os instrumentos jurídicos para responsabilizar as pessoas que praticaram crimes contra a saúde pública e crimes de responsabilidade. Se eles não forem processados, não podemos afirmar que as instituições estão funcionando como se diz por aí.”

Ela diz que, do ponto de vista internacional, também existe a possibilidade de responsabilização do estado no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como as diversas comunicações que vão se multiplicar no Tribunal Penal Internacional. “Sabemos que a justiça é totalmente permeável à opinião popular. A sociedade não pode se furtar, pois não é possível que o Ministério da Saúde continue iludindo a população com informações falsas, mergulhando no crime de responsabilidade e na infâmia”.

Com tudo isso, a professora teme que a vacinação possa não exercer o efeito desejado, com a população sendo incitada pelo governo a relaxar as medidas sanitárias, promovendo ainda mais o colapso do sistema de saúde e as mortes.

Edição de entrevista à Rádio USP

 

(BL)