Temos vivido muitas ameaças à vida e poderíamos falar de várias delas, desde a fome, até a violência urbana e a crescente letalidade policial. Mas quero apontar uma grande causa de perda de vidas que é pouco percebida, mas é gravíssima nas consequências, que é a absurda dependência externa de insumos em saúde. Desde máscaras e luvas, chegando em medicamentos e vacinas.

Por Jandira Feghali*

Hoje importamos 99% dos IFAs (ingredientes farmacêuticos ativos) para a fabricação de fármacos e medicamentos e, até o momento, 100% para as vacinas para Covid-19. O gasto para importar ventiladores pulmonares passou de US$ 52 milhões, em 2019, para US$ 167,9 milhões, em 2020. Em equipamentos de proteção individual houve um acréscimo de US$ 363 milhões neste período.

Nossa vulnerabilidade ficou visível, na medida em que corremos o risco de sequer ter o que comprar, já que mais de 100 países estabeleceram barreiras de exportação em saúde em meio a esta tragédia sanitária.

Há quase duas décadas temos discutido a importância do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, fundamental para superar a dependência de outras nações. Trata-se de um mecanismo absolutamente integrado à política de saúde, aos serviços de assistência e que gera políticas de pesquisa, inovação e desenvolvimento industrial público e privado. Corresponde a 9% do PIB, gera 8 milhões de empregos diretos.

Temos um sistema público de saúde, temos agências de financiamento, temos laboratórios públicos oficiais e instituições como a Fiocruz e o Butantan. Temos empresas privadas que persistem na busca por inovação. Temos universidades públicas que são referências em pesquisa. O que não temos mais é uma política de Estado capaz de unir nossa capacidade e nossos cientistas e investir para que se revertam em inovação, produção e maior independência em relação ao mercado externo.

O que assistimos, principalmente de 2017 para cá, foi uma política que desativou fóruns importantes, como o Grupo do Complexo Industrial da Saúde (GCIS), e asfixiou instituições e o SUS. Em tempos de pandemia isso fica evidente.

Talvez agora, as pessoas entendam que esse debate é fundamental. Não fosse pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan não teríamos sequer começado a vacinação. Talvez agora, a sociedade entenda que depender do mercado externo e acabar com o poder de compra do governo significa desassistência. Talvez agora, o Congresso entenda que investir no Complexo Industrial Nacional de Saúde é uma questão de soberania e de garantir o preceito constitucional de saúde como dever do Estado e direito de todos.

Talvez agora seja possível entender que não é racional ter teto constitucional para políticas públicas e estratégicas. A pandemia escancarou essa realidade. Muitas mortes poderiam ser evitadas se tivéssemos a ciência e uma visão estratégica do papel do Estado no comando do nosso país.

Há um desequilíbrio gritante entre o que exportamos e o que importamos na área da saúde que evidencia a necessidade de adotarmos medidas para reverter esse quadro. Dólar alto, restrições internacionais e uma desleal disputa mundial por produtos essenciais no combate à Covid-19 comprovam que buscar autonomia na pesquisa, desenvolvimento e produção desses produtos é o caminho para salvar vidas.

Mas, enquanto discutimos com profundidade esses temas, não encontramos eco num governo que, desde o início da pandemia, vem se mostrando incapaz e nada disposto a avançar no sentido de vencer o vírus e proteger a população. Um governo que insiste em manter um teto de gastos e dá um péssimo exemplo sobre a importância de adotar medidas sanitária comprovadamente eficazes contra a disseminação do vírus.

Talvez agora as pessoas entendam que é momento de abandonarmos o fundamentalismo e a ignorância e voltarmos nossa ação para o conhecimento, a solidariedade, e uma política que respeite os direitos inscritos na Constituição. Certamente, não encontramos esses valores no atual governo.

 

*Jandira Feghali é deputada federal do PCdoB-RJ

(Artigo originalmente publicado pela revista CartaCapital)

 

(PL)