Guerrilha avança sobre a cidade de Kunduz

Já são seis as capitais provinciais tomadas pela ofensiva da guerrilha do Talibã em quatro dias, inclusive Kunduz, a quinta maior cidade do país, no norte, em paralelo à retirada das tropas invasoras norte-americanas e da Otan, já concluída em 95%. A ocupação já dura 20 anos.

Além de Kunduz, as capitais provinciais libertadas são Aybak, Sar-e-Pul, Taloqan, Sigarban e Zaranj. Mais ao sul, continua o cerco a Lashkar Gah e a Kandahar.

Relato prestado à AFP por uma autoridade provincial, sob anonimato, reflete bem o que está acontecendo um pouco por toda a parte: “mesmo antes dos ataques do Talibã, muitos baixaram as armas, tiraram os uniformes, deixaram suas unidades e fugiram”.

“Durante a noite passada, um antigo senador se rendeu aos talibãs e, nesta segunda-feira, pessoas notáveis pediram ao governador que retirasse suas forças da cidade para que não fosse impactada pelos combates, o que ele aceitou”, afirmou o vice-governador de outra província, Sefatullah Samangani, descrevendo como os fatos se deram em Aibak.

Dois membros do conselho provincial de Kunduz disseram que o Talibã assumiu o controle do gabinete do governador e da sede da polícia após um dia de tiroteios, bem como do prédio principal da prisão, onde 500 presos, incluindo combatentes do Talibã, foram libertados.

Avanços que aconteceram apesar da intensificação dos bombardeios por B-52, que estão de volta. Declaração da guerrilha denunciou os novos crimes de guerra da aviação norte-americana que “demonstram a profundidade da depravação e postura criminosa da América internacionalmente, um país que não se preocupa com nenhuma lei humanitária, direitos humanos ou normas internacionais ao perseguir seus interesses imperialistas, nem está vinculado a quaisquer compromissos”.

Como assinalou o ex-embaixador indiano na então União Soviética, e atualmente comentarista da cena internacional, M. K. Bhadrakumar, o padrão da ofensiva do Talibã mostra uma agenda “para ganhar o controle das províncias fronteiriças que defrontam a Ásia Central (e Rússia e China), Irã e Paquistão”. O foco nas províncias do norte e do oeste é evidente – acrescenta -, “pois são aquelas regiões não-pashtuns onde os senhores da guerra podem causar problemas”. Os pashtuns são a maior etnia afegã, que coexiste com outras etnias ao norte e ao oeste do país.

O norte do Afeganistão sempre foi visto como um lugar de oposição ao Talibã. Foi lá que encontrou a maior resistência ao assumir o poder na década de 1990.

Bhadrakumar destaca que, com esse movimento, o Talibã está literalmente cortando na raiz que os chefes de milícia, ali conhecidos como ‘senhores de guerra’, insuflem uma guerra civil sob ordens de Ghani [atual chefe do regime de Cabul] e da CIA e forças especiais.

Ainda segundo ele, essa ação revela que o Talibã está “determinado a garantir que a unidade do Afeganistão seja preservada” e, com base nisso, forjar “um compromisso construtivo de benefício mútuo, eventualmente, com os países vizinhos”. As potências ocidentais estão “delirando”, achando que serão elas que determinarão a “legitimidade” do Talibã.

O ex-embaixador assinala, ainda, que essa série de vitórias mostra que “o trabalho político tenaz [do Talibã] nos últimos 4-5 anos para criar uma base não-pashtun nas regiões norte e oeste obteve sucesso além das expectativas”.

Contraste

O que contrasta com que “a vontade de lutar pela sobrevivência” do governo Ghani “está se dissipando rapidamente”, à medida que a elite dominante em Cabul é vista pelo povo afegão “como inepta, irremediavelmente corrupta e apenas fantoches e serviçais dos americanos”, Bhadrakumar assinalou.

Emblemático do que está em curso, os norte-americanos deixaram na calada da noite sua principal base no Afeganistão, Bagram – que ficou tristemente famosa pela tortura -, depois de cortar a luz. Só avisaram a tropa afegã quando já estavam no aeroporto. Quando duas ou três horas depois os governistas chegaram ao local, este já estava sendo saqueado por dezenas de pessoas que carregavam tudo o que podiam.

Entre os assuntos pendentes dos 20 anos de invasão, está aonde Washington vai alocar 20 mil colaboracionistas, que a população afegã vê como descarados traidores.

“Solução negociada”

O embaixador permanente da Rússia junto ao Conselho de Segurança da ONU, Vassily Nebenzia, instou a “lançar rapidamente negociações substantivas” entre o regime de Cabul e a guerrilha talibã, para “encontrar uma solução sensata que leve em conta os interesses de todas as minorias étnicas e religiosas” e “evitar uma guerra civil”.

Rússia e China têm procurado apoiar um processo de paz inclusivo no Afeganistão, com Moscou tendo sediado desde 2018 várias rodadas de negociações interafegãs e recebido delegações do Talibã para troca de pontos de vista.

Na semana anterior, a China recepcionou uma delegação chefiada pelo vice-chefe do Talibã, mulá Abdul Ghani Baradar, com o chanceler Wang Yi declarando que a guerrilha teria “um papel importante no processo de reconciliação e reconstrução pacífica” do país

O Afeganistão tem o status de observador na Organização do Tratado de Xangai, que reúne China, Rússia, as repúblicas ex-soviéticas da Ásia Central, Índia e Paquistão, à qual proximamente deve se somar o Irã. Região estratégica tanto para o projeto russo de integração euroasiática quanto para a Nova Rota da Seda proposta por Pequim.

O Talibã pediu que a China “não interfira” nas questões internas afegãs e apoie a reconstrução. Deu, ainda, garantias de que “o território afegão não será usado contra a segurança de nenhum país” (ou seja, contra Xinjiang chinesa).

A principal preocupação de Moscou quanto ao Afeganistão é que não se permita que os enxertos de Estado Islâmico no país, acelerados por Washington nos últimos meses, desde a Síria (das áreas sob ocupação norte-americana), proliferem. A Rússia está pronta para prestar assistências às repúblicas ex-soviéticas da Ásia Central em caso de provocações.

A invasão do Afeganistão, pouco depois da queda das Torres Gêmeas em Nova York, marca o início da cruzada norte-americana para ‘refazer’ o Oriente Médio – sete países eram o alvo, em cinco anos, como revelou o ex-comandante da Otan, general Wesley Clark – e assaltar o petróleo.

Plano que prosseguiu, com o planeta inteiro transformado no “espaço vital” dos EUA após a instauração da ordem unipolar ao fim da Guerra Fria. Invasão do Iraque contra as inexistentes “armas de destruição em massa”, destruição da Líbia, intervenção na Síria, desestabilização no Líbano e Somália, e sanções draconianas e ameaças contra o Irã.

Foi um tempo, como relatou o ex-presidente Carter ao então presidente Trump, que enquanto os EUA torravam trilhões de dólares em guerras sem fim, a infraestrutura ficava em ruínas [e se desindustrializava e especulava de forma delirante], a China construía, produzia, investia e se tornava a fábrica do mundo.

Tempo também de milhões de civis mortos, mutilados ou empurrados de seus lares ou ao exílio. De oficialização da tortura pela nação que adora fazer preleções sobre “direitos humanos”. Do presidente que amava drones e seus assassinatos nada virtuais. Do país que “não consegue respirar” de tanto racismo, da especulação desenfreada que levou ao crash de 2008, e com a pandemia, e seu recorde mundial de mortos e infectados no país mais rico do mundo, anunciando a hora da verdade.

Uma das cenas que melhor traduz a ocupação é a dos marines em vigia em campos de papoula. O retrato da economia do Afeganistão sob a invasão: recordista mundial da produção de ópio, matéria prima da heroína.

Diante da ocupação, o Talibã teve de rever algumas das suas concepções para conseguir se tornar a principal força de resistência.

Logo o Talibã, que chegara ao poder com a ajuda dos serviços secretos paquistaneses e da CIA, e cujo primeiro ato em Cabul foi sequestrar e linchar o ex-presidente Mohammad Najibullah, que estava sob proteção da ONU.

O Afeganistão nada teve a ver com a derrubada das Torres Gêmeas, e a Al Qaeda foi uma criatura da CIA, com dinheiro saudita, que se virou contra o criador, depois de servir para dizimar o regime progressista afegão, e o processo de transformação ali em curso, com reforma agrária, alfabetização e concessão de direitos às mulheres e às minorias.

Na reunião do Conselho de Segurança da ONU na sexta-feira, o embaixador russo Nebenzia, sempre apontando que “não existe uma solução militar” no Afeganistão, sublinhou que uma solução só é possível por meio de “negociações, não hostilidades”, mas enfatizando que os pedidos de “flexibilidade” deveriam ser dirigidos a “ambos os lados do conflito, não a um deles”.

A enviada da ONU ao Afeganistão, Deborah Lyons, acusou a guerrilha de ter tomado a “decisão estratégica” de tomar as cidades, pondo em risco a vida dos civis. Já Washington e Bruxelas, que estão em processo de fuga do Afeganistão, depois de promoverem o caos ali por duas décadas, exigiram um “cessar-fogo”. Apesar da solicitação feita, o Paquistão não pode participar do CS.