Rio de Janeiro - Operação policial após ataques às bases das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Audiência continua na segunda-feira. Entidades relacional a violência policial com o racismo e organizações de moradores contam a rotina de violência nas comunidades.

O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou hoje (16) audiência pública para debater a decisão da Corte que restringiu a realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante o período da pandemia de covid-19.

No ano passado, o STF validou a decisão individual do ministro Edson Fachin que estabelece as balizas, com o objetivo de evitar mortes de moradores das comunidades durante confrontos entre policiais e criminosos.

Pela decisão, as operações poderão ser deflagradas somente em casos excepcionais. A polícia ainda deverá justificar as medidas por escrito e comunicá-las ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial.

Durante a audiência, diversas entidades que atuam em defesa dos moradores de comunidades e integrantes do movimento negro afirmaram que a medida do STF diminuiu as mortes de moradores. Além disso, a condução das investigações desse tipos de caso foi criticada pelos palestrantes.

O defensor público do Rio de Janeiro Daniel Lozoya afirmou que não existe investigação efetiva e imparcial desses casos. Segundo Lozoya, também não há prioridade política para reduzir a violência. “A maior dificuldade no acesso à Justiça é essa falta de proteção e a falta de investigação desses casos, que acaba impossibilitando a reparação, a responsabilização e a perpetuação desse estado de coisas”, disse.

A professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Flávia Medeiros Santos também citou as dificuldades nas investigações de crimes ocorridos nas comunidades e afirmou que há casos de interferência em investigações, como o caso da morte do adolescente João Pedro, de 14 anos, dentro de casa durante uma operação no complexo do Salgueiro, em Sao Gonçalo (RJ).

“Pensar a perícia fora da polícia seria de fato criar nova forma de valorizar esse trabalho que é feito pelos peritos e que, infelizmente, é completamente comprometido por interesses da própria persecução penal da Policia Civil”, afirmou.

Na segunda-feira (19), no segundo dia da audiência pública, serão ouvidos representantes da secretaria de Segurança Pública do Rio e da Policia Militar do estado.

A audiência pública, convocada pelo ministro Edson Fachin, relator da Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF 635), prosseguirá na segunda-feira (19), a partir das 8h, com transmissão ao vivo pela TV Justiça, pela Rádio Justiça e pelo canal do STF no YouTube.

Violência policial e racismo

O último grupo de expositores da audiência pública sobre letalidade policial realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta sexta-feira foi composto de representantes de instituições voltadas para estudos e ações nas áreas de segurança pública e Direitos Humanos. Em comum, as exposições apontaram a relação entre a violência das ações policiais e o racismo.

Universidade Zumbi dos Palmares
“Para construir o Brasil do futuro, precisamos nos apartar do Brasil do passado”, relatou o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente. Para ele, a superação desse paradigma se dá por meio de ações como a descriminalização das drogas, a reestruturação da polícia e políticas públicas que contemplem a necessidade das comunidades para romper o paradigma atual da segurança pública.

UFSC
Já Flávia Medeiros Santos, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), propôs como um caminho para o problema da segurança pública a instituição da autonomia e independência da perícia criminal. Dessa forma, ela enfatiza, a “cadeia de custódia não enfrentaria riscos pela ingerência direta daqueles que poderiam ser responsabilizados pela produção de mortes, pondo em risco provas fundamentais e impossibilitando a resolução de crimes”.

Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
“A violência é um grande obstáculo que se coloca entre a sociedade que gostaríamos de ser e a nossa dura e cruel realidade”, afirmou o procurador Carlos Alberto Vilhena. Segundo ele, o número de vítimas é formado, principalmente, por pessoas que já se encontram em situação de extrema vulnerabilidade, geralmente jovens negros moradores de favelas e desempregados, o que revela a triste realidade do racismo estrutural. Vilhena defendeu uma atuação homogênea da polícia, tanto em bairros de classe alta como em bairros da periferia.

Marco Antonio Delfino de Almeida, do Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial vinculado à Procuradoria, revelou que, de cada cinco vítimas da letalidade policial, quatro são negras: “a rotina de violência é o aspecto mais cruel dessa realidade, que afeta de forma desproporcional comunidades negras e periféricas”, afirmou. Para ele, as políticas públicas de segurança pública devem ser baseadas nos princípios da eficiência, da transparência e da ampla participação social.

Instituto de Defesa da População Negra
O expositor do instituto, Joel Luiz Costa, traçou contexto histórico da escravidão e lembrou que a região que hoje abrange as cidades do Rio de Janeiro e de Niterói já contou com “a maior concentração urbana de pessoas escravizadas no mundo”. Para ele, o debate a respeito da letalidade policial passa, necessariamente, pelo reconhecimento do racismo estrutural. “Com racismo não há democracia”, enfatizou.

Joel Luiz, que é advogado e pesquisador no campo da segurança pública, destacou que não só a polícia deve ser responsabilizada pelos graves números de letalidade de jovens negros, pois o dever de resguardar a população recai sobre todos os agentes do sistema de justiça. Ele citou como exemplo mandados de busca e apreensão coletivos expedidos pelo Tribunal de Justiça fluminense em 2017 que autorizaram operações em diversas favelas, com justificativa na “forma desorganizada como as comunidades pobres ganham novas casas constantemente sem registro que as identifique”.

Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
O representante do órgão, Daniel Lozoya, afirmou que, nos primeiros meses de vigência da cautelar deferida pelo ministro Fachin na ADPF 635, houve redução de 70% do número de mortes nas operações em comunidades. No entanto, a partir de outubro, os números voltaram aos patamares anteriores.

Para Lozoya, a liminar está sendo descumprida, e o STF precisa definir a expressão “caráter excepcional” em relação aos critérios para a execução de operações policiais no estado. Ele salientou que, se as operações são excepcionais, não deveriam ser frequentes.

O defensor público argumentou que as essas ações policiais, além de ineficazes para o controle do crime, são indutoras do aumento da letalidade. Para demonstrar a gravidade do problema, relatou que, de 2013 a 2019, o número de mortes pela polícia quadruplicou, passando de 9% para 35% do total de homicídios O fenômeno, segundo ele, é identificado por pesquisadores como “estatização dos homicídios”.

Educafro
Para o professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas Wallace Corbo, que representou o Educafro, ao analisar a ADPF 635, o STF terá a oportunidade de reconhecer a existência de um apartheid racial no Brasil e de um apartaheid racial e social no Rio de Janeiro. De acordo com ele, esse estado de coisas no estado é caracterizado por uma discriminação indireta, geográfica, racial e, embora não faltem normas para combater o racismo ou a violência, essas normas são utilizadas pelas instituições de forma a perpetuar a desigualdade e a discriminação.

Na sua avaliação, a política de segurança pública do Rio de Janeiro é causa e consequência do racismo sistêmico. “Ela é causa porque gera uma série de violações e discriminações, e é consequência porque opera a partir dessa racionalidade que normaliza a morte de pessoas pretas, a negação de direitos de moradores de favelas e a tragédia da população pobre”, disse.

OAB
Em nome da OAB, Silvia Cerqueira, que integra a Comissão Nacional de Promoção da Igualdade (CNPI), afirmou que é fundamental investir no desenvolvimento de métodos para o enfrentamento das distorções sociais, a fim de combater o racismo. Segundo ela, também é necessário que a União invista em educação para a diversidade nas corporações policiais como forma de reduzir a violência e a letalidade em suas ações.

Também representando a OAB, Humberto Adami afirmou que o Tribunal de Contas da União (TCU) e os dos estados deveriam investigar os custos da chamada “guerra às drogas”, que utiliza recursos públicos que, em seu entendimento, não têm controle. Ele destacou que a violência e a discriminação têm também um cunho religioso, pois, em muitos momentos, atinge os terreiros em comunidades nas periferias.

Rotina de violência

A maior parte das exposições do período da tarde do primeiro dia da audiência pública sobre a letalidade policial no Rio de Janeiro coube a entidades que representam moradores de comunidades e parentes de vítimas das ações da polícia. Eles relataram a rotina e os efeitos dessa situação no dia a dia das pessoas e propuseram saídas.

Rede Rio Criança
Márcia Gatto, expositora da organização não governamental, afirmou que, no Brasil, mata-se mais do que em países em guerra e, segundo o Mapa da violência, os homicídios representam quase metade das mortes de adolescentes. Como solução, a regulamentação da política de armamento e munições da polícias e do uso de helicópteros nas operações, a redução do uso de armamento mortal nas favelas, a capacitação dos agentes policiais em Direitos Humanos e a priorização das investigações de crimes cometidos contra crianças e adolescentes.

Em relação ao sistema de justiça, Márcia sugeriu a criação de varas especializadas em crimes contra crianças e adolescentes, a priorização da tramitação desses processos e a reparação extrajudicial a familiares das vítimas. Ela citou o caso Henry Borel como exemplo da diferenciação “clara e notória” de tratamento, com base na cor e na classe social das vítimas. “Há agilidade em elucidar os crimes da classe dominante, mas falta vontade política nos crimes contra esses indesejáveis ‘seres matáveis’”, disse.

Rede da Maré
Para Eliana Sousa, expositora da instituição, uma sociedade com isonomia de direitos exige a garantia de um patamar básico de dignidade humana, que contemple todo cidadão e toda cidadã, independentemente de cor, etnia, credo e sexo. Infelizmente, a seu ver, o Brasil está longe de alcançar os dados minimamente aceitáveis em uma sociedade democrática.

Ela defendeu um Ministério Público atuante como forma de inibir ações ilegais das forças policiais, com um promotor plantonista, o acompanhamento sistemático das vítimas e das famílias e a realização de perícias independentes em investigação de crimes praticados por policias. Ao Poder Judiciário, a seu ver, cabe garantir que moradores das periferias possam confiar plenamente na força do Estado para protege-los. “Apenas assim teremos, de fato, um país que afirma a sua democracia”, concluiu.

Grupo Mães da Maré Vítimas da Violência do Estado
Integrantes do grupo relataram os casos de seus filhos, mortos ou feridos em ações policiais. Elas reivindicam, entre outros pontos, a presença de ambulâncias nas operações e câmeras nas viaturas e uniformes dos agentes de segurança e a não realização de operações noturnas, quando os moradores estão chegando do trabalho ou, alguns, estão saindo para trabalhar, e também em horários escolares.

Elas frisaram que são a favor das operações, desde que o Estado, na repressão ao crime, proteja a vida de inocentes. “Nossas crianças e adolescentes, quando não são mortos, têm o seu direito de ir e vir tirado”, disse Bruna Silva.

Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense
Isilmar de Jesus, representante da rede, destacou que os números de letalidade policial no país mostram a necessidade da ADPF, mesmo fora do contexto da pandemia, e frisou a urgência de fiscalização, em razão do descumprimento reiterado da liminar pela polícia.

“A ADPF salva vidas”, disse Elisabeth Santos. Para ela, é imperioso o cumprimento da Constituição Federal, “com o Ministério Público fazendo seu trabalho, que é o controle externo das polícias”.

Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
Dalva Correa, Luciano Norberto dos Santos e Patrícia Oliveira contribuíram com seus relatos pessoais na condição de familiares de vítimas da violência policial. Eles expuseram que, além da dor de perder um ente querido, os parentes ainda sofrem com transtornos traumáticos que, muitas vezes, levam ao desemprego e a doenças, mentais e até físicas.

Para a mãe de Tiago Correa, morto aos 19 anos em uma operação policial, a dor é rotineira. Dalva lembrou que abraçou seu filho no nascimento coberto de sangue e, da mesma forma, se despediu dele em 16 de abril de 2003, quando foi vítima do caso que ficou conhecido como Chacina do Borel.

Luciano Noberto teve seu irmão morto quando saia do trabalho. Além de lamentar as vítimas da letalidade policial, ele se solidarizou com os milhares de familiares dos mortos pela Covid-19, “que também são vítimas da negligência do Estado”.

Por sua vez, o irmão de Patrícia sobreviveu à Chacina da Candelária, e seu caso levou à criação do Programa de Proteção à Testemunha. Durante a audiência pública, ela disse que recebeu relatos de operações em comunidades da capital fluminense e revelou que muitas pessoas se recusaram a participar do debate por medo de represálias. “É necessário um controle externo da atividade policial”, ponderou, ao alertar que a Assembleia Legislativa do estado vota projeto de lei para a reintegração de policiais militares expulsos da corporação.

Movimento Parem de Nos Matar
Para Paulo Henrique de Oliveira, representante do coletivo, a iniciativa de realizar a audiência pública é um momento histórico. “A comunidade está falando com a mais alta Corte do país, e favelados têm a sua voz ouvida por milhares de pessoas que acompanham a audiência virtualmente”, disse.

Paulo assinalou que a violência é uma constante na história dos moradores das favelas e leva mães a um eterno luto por terem seus filhos assassinados. A seu ver, é urgente a adoção de medidas pelo poder público para acabar com as dores dessas mães, não somente durante a pandemia. Ele defendeu a adoção de protocolos das Nações Unidas, da qual o Brasil é signatário, que traria mais transparência à investigação de mortes por policiais militares e à luta contra a letalidade policial.

Coletivo Papo Reto
Renata Trajano, moradora do Complexo do Alemão, contou que os próprios moradores formaram um gabinete de crise durante a pandemia para enfrentar não só as questões de violência, mas também a fome que assola a comunidade. Segundo ela, a liminar concedida pelo ministro Fachin proibindo incursões policiais nas favelas durante a pandemia foi descumprida, e a polícia chegou a confundir o caminhão carregado com cestas básicas e produtos de higiene com um caminhão roubado.

“A gente morre várias vezes porque, depois que temos nossos filhos mortos, precisamos provar que eles não são bandidos. Nós sobrevivemos porque nascemos para ser resistência”, ressaltou, ao criticar a violência policial.

Por Cezar Xavier com informações do STF