Sônia Haas: ainda vivemos a impunidade das atrocidades da ditadura
Sônia Haas tinha por volta de cinco anos quando recebeu a primeira lição de justiça dentre as muitas que seu irmão, João Carlos Haas Sobrinho, 17 anos mais velho, lhe daria. A família, gaúcha de São Leopoldo, se preparava para um piquenique, mas a mãe da pequena Sônia, Ilma Haas, havia decidido que o sol estava muito forte para a guria, que deveria ficar em casa. Sônia lembra com tristeza da decisão que, no entanto, não durou muito. “O João entrou, me pegou, colocou nas costas dele, e disse para minha mãe: ‘me dá o chapéu dela’. Minha mãe o respeitava muito e deu o chapéu. E ele disse: ‘eu vou cuidar dela, não se preocupe’. Que maravilha! Foi uma lição de justiça e sensibilidade”, lembra Sônia.
Passados 49 anos da morte de João Carlos pela ditadura, a irmã ainda está na luta, junto a dezenas de outros familiares de mortos e desaparecidos políticos, para que haja justiça no Brasil para os crimes da ditadura e para que os restos mortais sejam encontrados, um passo importante para que a história brasileira seja contada da forma como realmente ocorreu.
Uma vitória foi obtida em 2019 pela família de Dr. Juca, como ficou conhecido João Carlos, quando a certidão de óbito do militante do PCdoB, assassinado no Araguaia pela repressão, foi retificada. E passou a constar: “faleceu entre setembro e outubro de 1972, sendo a data mais provável o dia 30 de setembro de 1972, sendo Xambioá, Tocantins, no âmbito do evento reconhecido como Guerrilha do Araguaia, em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.
No dia em que João Carlos completaria 80 anos — 24 de junho de 2021— Sônia promoveu um evento virtual para celebrar sua memória e lançar o projeto da revista em quadrinhos “Dr. Araguaia”, concebida pelo ilustrador Diego Moreira com o apoio de Sônia. A ideia é lançar a publicação em setembro, com o apoio do PCdoB e da Fundação Maurício Grabois, quando a morte de Dr. Juca completará 49 anos. Para isso, está sendo feita uma campanha de arrecadação de recursos para viabilizar a revista (veja abaixo como contribuir).
“A história em quadrinhos vai contar a vida do João Carlos — um menino que nasceu numa cidade pequena, cresceu sendo coroinha de igreja, andando de bicicleta, ajudando a mãe a cuidar dos irmãos, foi um ótimo estudante, e que resolveu lutar pelo ideal que ele acreditava. Haverá passagens dele no Araguaia, mostrando sua atuação como médico e como líder”, conta Sônia.
À procura de João Carlos
O jovem João Carlos ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1959 e se formou em 1964. Teve atuação no movimento estudantil e depois, ingressou no PCdoB. Conforme o livro “Dossiê Ditadura – Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985)”, viabilizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, “em meados de 1966, João Carlos Haas Sobrinho, André Grabois, Divino Ferreira de Souza e Libero Giancarlo Castiglia viajaram para a China e na escala no aeroporto de Karachi, no Paquistão, tiveram seus passaportes retidos por várias horas, sem nenhum esclarecimento”.
A publicação aponta, ainda, que Haas voltou clandestinamente ao Brasil em 1967, indo para Porto Franco, no Maranhão, onde montou um pequeno hospital. Nas Forças Guerrilheiras do Araguaia, era o responsável pelo serviço de saúde, atendendo também moradores da região, carentes de todo tipo de assistência. “A gente não sabia que ele tinha ido para a Guerrilha, não sabia onde ele estava. Depois de 1969, ele mandou uma última carta, em julho”, lembra Sônia. Segundo relata a irmã, ele saiu de casa em janeiro de 1966 dizendo que faria uma especialização no Hospital de Clínicas de São Paulo, sem dizer para os seus pais os planos de ir para a região. “Não imaginávamos onde ele estava, não tínhamos noção. Meu pai tinha muito medo porque ele tinha mais seis filhos. Foi muito difícil, doloroso”, diz Sônia.
O paradeiro de João Carlos só começou a ser conhecido pela família quando Sônia soube do livro “Guerra de Guerrilhas no Brasil – A Saga do Araguaia”, de Fernando Portela. “Fui comprar o livro tremendo de medo e lá foi confirmado o nome do João. A Tânia, minha irmã, na faculdade, tinha uma aproximação com um deputado que era do PMDB e foi perguntar para ele se era verdade que havia essa guerrilha e ele disse que sim, e que havia gaúchos e daí começou a cair a ficha. A cada certeza dessas, a gente tinha que respirar fundo e imaginar o que havia acontecido. O livro conta dessas mortes. E foi assim que a gente soube da morte de João Carlos, porque não tínhamos contato com o partido nem com ninguém, estávamos isolados em São Leopoldo”, explica.
A notícia, recorda, “foi um baque, como um tiro. Meus pais perderam o rumo, ficaram tontos. Eu já tinha por volta de 21 anos. E daí comecei a amparar minha mãe e a me dedicar ao assunto. Sempre fui muito ligada a essa ausência do João, me batia muito forte”. A família passou a buscar informações, sem sucesso. “Até que uma prima minha foi a Salvador, num congresso do PCdoB, em 1983, levou fotos, conheceu a Elza Monnerat e ela confirmou tudo”, aponta. “Então assumi (as buscas) porque quis e até hoje enxergo isso como uma missão que veio para mim, meu coração me cobra isso”.
Impunidade e reflexos hoje
Até hoje, os restos mortais de João Carlos não foram encontrados. Sônia segue na luta pela memória, justiça e a verdade e lamenta o fato de o Brasil não ter dado respostas e punido os responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura militar, o que traz consequências danosas para a democracia como um todo e se refletem até hoje nas estruturas militares e de segurança pública. “Infelizmente o país está muito atrás, na América Latina, comparado a outros países, em relação ao resgate da história, da memória, da verdade, à abertura de arquivos e à entrega de documentos e à justiça. Aqui, ainda vivemos a impunidade em relação a esses atos de atrocidade, tortura e morte que ocorreram na ditadura”.
Sônia diz que “o Brasil travou na questão da justiça de transição, não foi uma coisa processada, realizada, então, a gente empacou e retrocedeu com este governo. Depois do golpe contra a Dilma, tudo desmontou. Temos o apoio da Corte Interamericana, que sempre nos ilumina e nos dá guarida, o que é importante, mas temos uma sentença que nunca foi cumprida por inteiro. E cada vez menos se percebe que isso vai acontecer”.
Ela avalia que o atual momento do país “sem dúvida nenhuma, é reflexo dessa falta de justiça de transição, de punição, que torna tudo muito permissivo. As violências hoje das polícias militares, meu deus, é um horror. O país perdeu o rumo nesse sentido dos direitos humanos, da justiça e do respeito ao cidadão, enfim, estamos vivendo essa loucura que está nos rodeando e que é assustadora. A violência tomando conta, matando os nossos jovens, os moradores das periferias, matando e deixando morrer nossos indígenas”. Acho, finaliza Sônia, “que grande parte dessa mentalidade que está implantada, inclusive nas pessoas que votaram em Bolsonaro, vem dessa falta de Justiça de transição, de contar a história verdadeira”.
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Assista abaixo a live em homenagem ao Dr. Juca
Por Priscila Lobregatte