Pira crematória em Virar, Índia

Chega à Índia o apoio internacional diante do agravamento da pandemia de Covid-19 no país, após surgimento de uma ‘mutação indiana’, que levou o país a passar de 18 mil casos diários em janeiro para 85 mil no final de março e que neste domingo(2) alcançou 400 mil novos casos diários, em meio ao colapso de hospitais, do fornecimento de oxigênio e até dos crematórios.

O total de casos confirmados na Índia chegou a 19,2 milhões – só inferior ao triste recorde dos Estados Unidos. O número de indianos mortos ultrapassou os 200 mil, só atrás do Brasil e dos EUA.

Até aqui, a Índia vacinou 150 milhões de pessoas pelo menos uma vez – bastante, na comparação com outros países no mundo, mas pouco diante de uma população de 1,3 bilhão – apenas 11,5%, e só 2% com as duas doses.

A Índia também tem encabeçado, na Organização Mundial do Comércio (OMC), a luta pela quebra de patentes para que as vacinas contra a Covid-19 se tornem acessíveis a todos os países, contra a qual se insurgem os grandes monopólios privados farmacêuticos, sob a proteção de seus Estados nacionais, como os EUA, Grã Bretanha e França. A Índia é considerada a “farmácia do mundo”, pelo enorme desenvolvimento de sua indústria de medicamentos.

Na quinta-feira (29), chegou a Nova Delhi o primeiro avião da ajuda russa com 22 toneladas de equipamentos, ventiladores pulmonares, oxigênio e antivirais, depois de um telefonema entre o presidente russo Vladimir Putin e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Parceiros tradicionais, ambos os países integram os BRICS.

A primeira remessa da vacina Sputnik V – já aprovada pelas autoridades sanitárias indianas – pousou na cidade indiana de Hyderabad na noite de sábado (1º), e o Instituto Gamaleya está fechando acordo para produção na Índia de 850 milhões de doses anuais.

A Sputnik V, com eficácia de 91,6%, passou por testes clínicos entre setembro do ano passado e março na Índia e recebeu aprovação no dia 15 de abril.

Na China, fábricas estão trabalhando 24 horas por dia e até fizeram hora extra em pleno feriado do 1º de Maio para atender às demandas da Índia por oxigênio, respiradores, insumos e remédios. O presidente Xi Jinping ligou para Modi para manifestar solidariedade, expressar condolências pelos mortos da Covid e enfatizar a disposição da China em cooperar com o país vizinho e parceiro do Brics no enfrentamento da pandemia.

O embaixador chinês em Nova Delhi, Sun Weidong, disse ao jornal Global Times que a China espera e acredita que, sob a liderança do governo indiano, sua população “irá vencer a pandemia em breve”.

Em abril, a China forneceu mais de 5.000 ventiladores, 21.000 cilindros de oxigênio, mais de 21 milhões de máscaras e cerca de 3.800 toneladas de medicamentos.

O primeiro envio de ajuda médica dos Estados Unidos chegou na sexta-feira (30) à Índia, um avião de transporte militar Super Galaxy com 400 cilindros de oxigênio, outros equipamentos médicos e quase um milhão de testes rápidos. O Japão vai contribuir com 300 concentradores de oxigênio e 300 respiradores pulmonares.

A ajuda virá de mais de 40 países, segundo o ministro das Relações Exteriores indiano, Harsh Vardhan Shringla. Entre esses, Irã, Butão, Alemanha, França, Canadá, Cingapura, Austrália, Emirados Árabes e Arábia Saudita. O vizinho Paquistão enviará como um “gesto de solidariedade” ventiladores pulmonares, monitores, máquinas de raios-X e outros itens.

A segunda onda da pandemia na Índia foi descrita na semana passada pela Suprema Corte de Delhi como um “tsunami”. Só no mês de abril, foram sete milhões de novos casos.

Dramáticos relatos da mídia indiana revelam como familiares em desespero tentam encontrar um leito de UTI para seus doentes, ou como a falta de oxigênio está matando de sufocamento em hospitais por todo o país.

Nas principais cidades, incluindo a capital nacional Delhi, e em Maharashtra, o segundo estado mais populoso, hospitais foram forçados a recusar centenas, possivelmente milhares, de pacientes extremamente enfermos devido à falta de leitos, medicamentos e oxigênio.

Em 22 de abril, o diretor médico do Hospital Sir Ganga Ram, um dos principais hospitais da capital indiana, disse que “25 pacientes mais doentes morreram nas últimas 24 horas” e que o oxigênio vai durar “mais 2 horas”. Ele acrescentou que as vidas de 60 outros pacientes mais graves “estavam em perigo”

Até mesmo os crematórios foram atingidos pelo colapso. Como registrou o portal indiano scroll.in no dia 29 de abril, citando um trabalhador fúnebre, Ram Paul. “Há mais corpos do que madeira…corpos atrás de corpos estão chegando”.

Observadores apontaram como fatores agravantes o subfinanciamento crônico da saúde pública na Índia e a imprevidência do governo Modi, cujo desempenho na primeira onda foi superestimado nas hostes governistas.

“Acho que havia um sentimento prematuro de otimismo entre muitos que provavelmente era injustificado e, em retrospectiva, acabou sendo mortal”, disse à CNN o epidemiologista Ramanan Laxminarayan, da Universidade de Princeton, que está em Nova Delhi.

O gasto com a saúde na Índia tem sido mantido há décadas em 3,5% do PIB, enquanto a média mundial é de 10% do PIB, segundo o Banco Mundial. A despesa com saúde per capita da Índia, por paridade de poder de compra, equivale a de países muito mais pobres, como Serra Leoa.

No final de 2020, o governo indiano admitiu ter 0,9 médicos por 1.000 pessoas, bem abaixo da média mundial de 1,6. A Índia tem apenas 2,3 leitos de cuidados intensivos por 100.000 pessoas. Além disso, a testagem foi mínima. Segundo dados de fevereiro, a taxa de testagem da Índia havia sido inferior a dos vizinhos muito mais pobres, Sri Lanka e Bangladesh.

Quanto ao distanciamento social, isso passou bem longe na Índia desde o fim das restrições do ano passado. Em fevereiro, mais de três milhões de devotos participaram de um festival religioso no norte do país, banhando-se em massa. Agricultores prejudicados pela política pró-monopólios privados ficaram meses acampados em protesto nos arredores de Nova Delhi. Acabaram de ocorrer eleições em quatro estados – em um ato de campanha no dia 17 de abril o entusiasmado Modi disse que fazia tempo que não via um comício “tão grande”.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que a segunda onda na Índia foi causada por uma “tempestade perfeita” de grandes eventos, baixa taxa de vacinação e variantes mais contagiosas. Para a OMS, a culpa pela situação não é apenas das novas variantes, mas também de um comportamento complacente.

Agora, o porta-voz do Partido Bharatiya Janata (BJP), Narendra Taneja, admite que a “responsabilidade” pela segunda onda da Índia pertence “em primeiro lugar” ao governo, mas assevera que a crise não poderia ter sido “prevista” – mesmo com segundas ondas fazendo estrago à vista de todos, por exemplo, na Europa.

“O governo tem falhado a todos”, afirmou em comunicado o secretário-geral do partido de oposição Congresso Nacional Indiano, Priyanka Gandhi Vadra. “Mesmo aqueles de nós que nos opomos e lutamos contra eles não poderíamos ter previsto uma abdicação completa da liderança e do governo em um momento tão devastador como este.”

“Há o escândalo de pessoas morrendo por falta de oxigênio nos hospitais; há o escândalo da falta de leitos e remédios; há o escândalo das mortes por encobrimento da Covid-19 e há o escândalo da escassez de vacinas e dos superlucros sancionados pelo governo. Mas o maior escândalo de todos é o próprio governo Modi”, disseram os comunistas indianos, que classificaram a situação de “a pior calamidade” desde a fome de Bengala em meio à Segunda Guerra Mundial que matou três milhões de pessoas.

O governo de Modi também tem sido denunciado pela desastrosa gestão do fornecimento de oxigênio. O grupo de especialistas que foi incumbido de orientar o governo na “resposta eficaz à Covid” advertiu em 1º de abril às autoridades de que “nos próximos dias” a Índia poderia enfrentar uma “escassez de oxigênio”. Apenas no dia 22 entrou em vigor a proibição de fornecimento a indústrias para que todo o oxigênio disponível fosse destinado aos hospitais.

O veterano ex-embaixador na União Soviética e atual analista da cena política indiana, MK Bhadrakumar, assinalou com precisão dois detalhes da crise sanitária na Índia – o “sem vacinas e oxigênio na farmácia do mundo” e que é a China “o único país” em condição de prestar a ajuda na escala que é necessária diante da gravidade da situação.

Como ele destacou, a escassez de produtos médicos básicos na Índia durante a pandemia tem sido “escandalosa”. A Índia se tornou conhecida como a ‘farmácia do mundo’ pela capacidade que desenvolveu na engenharia reversa de uma grande gama de genéricos, e é o terceiro maior produtor farmacêutico do mundo, com grande peso inclusive nas vacinas.

A Índia aprovou logo dois imunizantes, Covishield/Astrazeneca, a ser produzido pelo Instituto Serum, e Covaxin, a vacina indiana do Bharat Biotech

Mas seu projeto de vacinação capotou diante do ‘America First das vacinas’ do novo governo Biden, que em 21 de janeiro usou uma lei da Guerra da Coreia para proibir a exportação de insumos de vacinas, em prol de sua meta de 100 milhões de doses aplicadas nos primeiros 100 dias de governo.

Biden também ignorou os apelos de Nova Delhi sobre a questão. O que só foi prometido agora, “com as imagens horríveis das piras em chamas nos crematórios já em toda a mídia global”, como registrou o jornalista Suvan Pal.

“A decisão de Biden colocou os fabricantes indianos de vacinas em um dilema e impactou muito sua capacidade de fabricação”, destacou Pal. “De acordo com a estimativa da OMC, uma empresa de fabricação de vacinas usa cerca de 9.000 materiais diferentes de centenas de fornecedores de vários países. Mas os Estados Unidos têm um grande número desses fornecedores de matéria-prima”.

Embora o governo Modi venha defendendo há muito tempo “Atmanirbhar Bharat” ou “Autossuficiência da Índia”, a quantidade de matérias-primas que qualquer fabricante de vacinas precisa para aumentar sua produção “é quase impossível de obter na Índia”, registrou o jornalista. Ele acrescentou que os fabricantes indianos “não estão deixando pedra sobre pedra para reduzir ao máximo a dependência estrangeira em sua produção de vacinas”. “Mas isso ainda é uma longa caminhada.”

Os comunistas indianos exigiram que Modi mude a recém-adotada política de vacinação para que seja “gratuita e universal”. É que o primeiro-ministro acaba de decretar a liberação da vacinação de adultos entre 18 e 45 anos, mas com essa parte ficando por conta dos Estados, que teriam que pagar mais do que o governo federal pelos imunizantes, embora ainda abaixo do preço internacional, a título de estimular a produção interna.

Vários estados já disseram não ter recursos próprios para bancar esse tipo de vacinação e a proposta do governo central deixa margem para a cobrança pelas vacinas.

Até então, estavam sendo vacinados as pessoas com até 45 anos. Entidades denunciam que, pelo novo plano, as vacinas na faixa dos 18 aos 45 anos acabarão não sendo gratuitas nem universais. De acordo com a Bloomberg, alguns Estados “podem fornecer vacinas a taxas subsidiadas”, enquanto outros “podem repassar o custo total para os cidadãos”.

Em sua declaração de 19 de abril, o ministério da Saúde indiano afirmou que a Fase III da Estratégia Nacional de Vacinas do país “visa liberar os preços das vacinas” e tornar “os preços, aquisição, elegibilidade e administração de vacinas abertos e flexíveis”. Cinquenta por cento das doses de vacinas fabricadas por essas empresas serão fornecidas ao governo central, sendo o restante adquirido no mercado aberto a um preço “transparente” decidido pelos fabricantes.

Nas recentes eleições em quatro Estados indianos, o partido de Modi, o BJP, acabou punido pelo descontrole da pandemia, sendo derrotado em três. Conforme o portal indiano newsclik, “o partido açafrão sofreu uma derrota humilhante em Bengala Ocidental nas mãos do partido TMC liderado por Mamata Banerjee; em Tamil Nadu, o partido AIADMK, controlado pela dupla Modi-Shah, foi varrido do poder. Em Kerala, o partido perdeu até mesmo a única cadeira que havia conseguido nas eleições anteriores. Os vencedores nesses Estados – Mamata Banerjee, Stalin e Pinarayi Vijayan – pertencem a diferentes partidos políticos e representam diferentes ideologias. No entanto, o público atribuiu a eles uma responsabilidade muito importante, fornecer proteção contra a terrível pandemia e também combater a ‘Agenda Corporativa Hindutva’ de Modi”. Ainda é cedo para avaliar como o caos na saúde pesará na aprovação de Modi, que ainda é visto por muitos indianos como um “homem santo” e comprometido com os interesses nacionais, e que tem um peso próprio em relação ao BJP.