Caixão de Floyd é conduzido por familiares e amigos em Houston - Foto Godofredo Vasquez - Houston Chronicle via AP Pool

George Floyd, cujo linchamento por asfixia por um policial branco desencadeou a maior revolta nas ruas dos EUA em 50 anos e uniu negros, brancos, latinos e asiáticos contra o racismo estrutural, foi sepultado na terça-feira (9), ao lado de sua mãe, no cemitério Pearland ao sul de Houston, cidade onde foi criado e onde passou a maior parte da vida.

No mundo inteiro, seu clamor de “não consigo respirar” enquanto agonizava virou uma convocatória para barrar o preconceito racial e a brutalidade policial.

O funeral foi transmitido ao vivo para o mundo inteiro. Familiares de Floyd vestidos de branco, amigos, líderes da luta contra o racismo, religiosos, autoridades, artistas e atletas participaram da última homenagem na Igreja Fonte de Louvor. O ex-vice-presidente e candidato democrata agora em 2020, Joe Biden, se dirigiu a eles por videoconferência.

O reverendo Al Sharpton, que na cerimônia fúnebre em Minneapolis havia sido o principal pregador – “tirem o joelho dos nossos pescoços” -, estava inspirado pela esperança que a inédita amplitude do repúdio do assassinato de Floyd traz.

Como ele registrou, em vários lugares havia mais brancos do que negros nos protestos. Para que realmente a vida de Floyd valha, é preciso que os assassinos “não fiquem impunes”, acrescentou, apontando que “não foi apenas uma tragédia – foi um crime”.

OITO MINUTOS E 46 SEGUNDOS

O veterano líder da luta pelos direitos civis não poupou Trump. “O presidente falou em trazer os militares, mas não disse uma palavra sobre os 8 minutos e 46 segundos do assassinato de George Floyd por um policial”, disse o reverendo Al Sharpton. “[Trump] desafiou a China sobre os direitos humanos. Mas e os direitos humanos de George Floyd?”, questionou.

Sharpton disse que Trump estava mais focado em como os protestos afetariam sua reeleição e em parar as manifestações do que em parar a brutalidade policial.

Ele também comemorou: “no mundo inteiro, vi netos de mercadores de escravos derrubando estátuas de mercadores de escravos”, sobre o episódio em Bristol, na Inglaterra.

“Você usa balas de borracha e gás lacrimogêneo para tirar manifestantes pacíficos, e então pega uma Bíblia e anda até a frente de uma igreja, e usa uma igreja como propaganda. Maldade em altos postos”, disse o reverendo Al Sharpton, dirigindo-se a Trump

O reverendo também se referiu à declaração da Liga Nacional de Futebol americano sobre ter “errado” no trato das manifestações de atletas contra o racismo – no caso, o ajoelhar, popularizado por Colin Kaepernick, que por causa disso foi banido dos estádios. “Não peçam desculpas, devolvam o emprego a Colin”, apontou sob aplausos.

A CORAGEM DE GIANNA

O ex-vice-presidente Biden – que se reunira na véspera com a família de Floyd – se dirigiu diretamente à caçula dele, de seis anos. “Pequena Gianna – como eu disse a você quando te vi ontem, você é tão corajosa. Papai está olhando para baixo e está muito orgulhoso de você”, disse Biden.

Ele acrescentou que “quando houver justiça para George Floyd, estaremos realmente a caminho da justiça racial na América”. “Nenhuma criança deveria precisar se perguntar aquilo que tantas crianças negras tiveram de se perguntar por gerações: ‘Por quê?’”, acrescentou.

“Agora é hora de justiça racial. Essa é a resposta que nós devemos dar aos nossos filhos quando perguntam por quê”, salientou.

PRESENÇAS

Estavam presentes os atores Jamie Foxx e Channing Tatum, o jogador J.J. Watt do Houston Texans da NFL, o rapper Trae tha Truth, o cantor Ne-Yo, a deputada Sheila Jackson Lee, o deputado federal Al Green, o prefeito de Houston, Sylvester Turner, e o chefe de polícia Art Acevedo.

As famílias de outras vítimas da violência policial, como a de Eric Garner – o primeiro a proferir, ao ser estrangulado e morto com um mata-leão por um policial em 2014, a frase “não consigo respirar” – de Trayvon Martin, de Michael Brown e de Ahmaud Arbery, que ainda aguardam que a justiça seja feita.

O congressista Al Green repetiu durante a cerimônia que Floyd “mudou o mundo”. “Vamos fazer o mundo saber que ele fez a diferença”, acrescentou.

O prefeito Turner agradeceu à família Floyd “por buscar justiça para George e, ao mesmo tempo, pedir às pessoas de todo o mundo que o façam com respeito e pacificamente”. Ele foi aplaudido ao anunciar a proibição do uso de golpes de estrangulamento pelos policiais de Houston.

A tia de Floyd, Kathleen McGee, agradeceu toda a solidariedade recebida e o que está sendo feito por George: “eu ganhei uma família tão grande no mundo inteiro”. Aos prantos, o irmão Philonise disse que “George era meu super-homem pessoal”.

A cerimônia transcorreu ao som de música gospel e soul. Policiais da Universidade do Sul do Texas, que fica perto do bairro em que Floyd foi criado, faziam a segurança da entrada da igreja, usando máscaras com a frase “eu não consigo respirar”. O campeão de boxe aposentado Floyd Mayweather cobriu as despesas do funeral.

“MOM!”

A reverenda Mary White se referiu ao momento em que, já agonizando, Floyd chama pela mãe, que já morreu. “No momento em que ele chamou por sua mãe, acreditamos que os ouvidos das mães de toda a nação se levantaram. Que os ouvidos das mães de todo o mundo o ouviram chorar, mesmo que para uma mãe, e todas as mães começaram a chorar. Começamos a prantear por nossos filhos. Começamos a prantear por nossos netos. Choramos por homens em todo o mundo por causa do chamado de uma mãe”.

Como notou a reverenda Mia Wright, “celebramos uma vida que teve seus altos e baixos, como todas as vidas, mas também uma vida que estava conectada com Deus e uma vida com que as pessoas do mundo inteiro se conectaram pelo trauma e pela tragédia que ele sofreu”.

George, que nasceu na Carolina do Norte, mudou-se ainda quando era menino para Houston, cresceu no Quinto Distrito, um dos bairros negros da cidade. Cursou o ensino médio na Yates High School, onde participou nos times de futebol americano e de basquete da escola. Pela altura, era conhecido como ‘Big Floyd’.

Em 1993, matriculou-se na South Florida State College, onde também se destacou nos esportes. Dois anos mais tarde, largou o curso universitário, voltou a Houston e se tornou rapper, como parte do grupo Screwed Up Click.

No final dos anos 1990, teve o primeiro filho. Em 2007, foi acusado de um assalto à mão armada e depois condenado a cinco anos. Quando saiu da prisão, passou a colaborar nos grupos de voluntários da igreja. Há seis anos, nasceu a pequena Gianna.

Em busca de um recomeço e a convite de amigos, há cinco anos Floyd havia mudado para Minnesota. Passou a trabalhar como motorista de caminhão e como segurança em um restaurante, mas estava desempregado por causa da pandemia.

Apesar das agruras, seus amigos e familiares o descrevem como uma pessoa tranquila, que era conhecida nas rodas dos esportes como “Gigante Gentil”. Yates Grau, que foi companheiro de equipe de Floyd, conta que George sempre foi uma “pessoa carinhosa”, com um coração “igual ou superior à sua estatura física”.

“DIGA O NOME DELE“

Centenas de pessoas, apesar do sol forte, se mantiveram no caminho percorrido pelo féretro e nas imediações do cemitério, acenando com cartazes de “Vidas de Negro Importam” e “Sem Justiça, Sem Paz” e cantando: “Diga o nome dele: George Floyd”. À passagem, intensos aplausos. A polícia de Houston escoltou o carro fúnebre todo o caminho e a uma milha do cemitério o caixão dourado foi transferido para uma carruagem puxada por cavalos. O túmulo de Floyd é junto ao de dona Larcenia, sua mãe.

Na hora marcada para o início da cerimônia de despedida em Houston, o Estado de Minnesota, por iniciativa do governador Tim Walz, homenageou Floyd com um silêncio de 8 minutos e 46 segundos – a duração do seu martírio, com o joelho do policial Chauvin o asfixiando.

No seu sermão, o reverendo Sharpton haveria se referido à completa falta de sentimentos do policial Chauvin, que manteve a pressão do joelho, apesar das súplicas de Floyd e dos apelos desesperados dos transeuntes, até consumar a execução sumária. A polícia fora chamada para averiguar o suposto uso de uma nota falsa de 20 dólares na compra de cigarros.

Na proclamação da homenagem, o governador Walz disse que “o mundo assistiu horrorizado quando a humanidade de George Floyd foi tirada dele”.

“Não vamos acordar um dia e ter a doença do racismo sistêmico curada”, sublinhou Walz. “Devemos fazer tudo ao nosso alcance para nos unirmos para desconstruir gerações de racismo sistêmico em nosso Estado para que cada minnesotano – negro, indígena, mulato ou branco – possa ser seguro e prosperar”. Homenagens a Floyd se repetiram na Suíça, Itália e Senegal, além de muitas outras cidades