Como tem advertido Teerã, a paciência estratégica está se esgotando e não faz sentido que seja apenas o Irã que cumpra os termos do acordo

O pré-candidato democrata à Presidência, Bernie Sanders, pediu um retorno dos EUA ao acordo nuclear com o Irã (JCPOA) após Teerã anunciar que, em consonância com os artigos 26 e 36 do acordo, está suspendendo cláusulas que observou até aqui, em resposta à violação total do acordo pelo regime Trump, o que já completou um ano, e à apatia de Paris, Berlim e Londres quanto a cumprirem efetivamente sua parte.

“Devemos voltar ao JCPOA imediatamente e conversar com o Irã sobre outras questões regionais”, afirmou Sanders, após apontar que “tínhamos um acordo em vigor que limitava o programa nuclear do Irã, que Trump violou de forma temerária”.

Sanders declarou “preocupantes” os recuos de Teerã em relação ao JCPOA, enquanto o governo Rouhani ressaltou que são “facilmente reversíveis”, desde que os demais signatários cumpram com suas obrigações e ajam para poupar o povo iraniano das sanções unilaterais e devastadoras impostas por Trump, que incluem ‘zerar’ a exportação de petróleo iraniano, de que o país depende para comprar tudo que não produz internamente.

As sanções do regime Trump contra o Irã, dirigidas abertamente a matar de fome o povo iraniano e a estrangular seu governo, têm sido descritas como “as mais duras de todos os tempos” dos EUA.

Como as sanções são estendidas extraterritorialmente a quem realizar transações comerciais com o Irã (as chamadas sanções secundárias), os governos europeus de boca se mantêm no JCPOA, mas se omitem diante da flagrante agressão econômica desencadeada por Trump.

Conforme atestou a Agência Internacional de Energia Atômica da ONU (AIEA), a quem cabe a fiscalização do acordo, o Irã vinha cumprindo estrita e fielmente seus compromissos.

Como tem advertido Teerã, a paciência estratégica está se esgotando e não faz sentido que seja apenas o Irã que cumpra os termos do acordo. Os artigos 26 e 36 do JCPOA permitem ao Irã considerar a reintrodução de sanções como base para rescindir suas obrigações sob o acordo “no todo ou em parte”.

Na quarta fase da redução das suas obrigações sob o JCPOA, o Irã começou esta semana a injetar gás hexafluoreto de urânio (UF6) em centrífugas em sua instalação de enriquecimento de Fordow, ao mesmo tempo em que começou a contar um terceiro prazo de 60 dias para que os co-signatários europeus exerçam o que assinaram.

O processo começou após a transferência de um cilindro de 2.800 kg contendo 2.000 kg de UF6 (hexafluoreto de urânio) da instalação nuclear de Natanz para Fordow, perto da cidade de Qom.

A terceira fase consistira na reativação de centrífugas avançadas, postas de lado pelo acordo; a segunda, o enriquecimento do urânio à taxa de pureza além do limite de 3,76% do acordo (mas muito, muito longe do grau necessário para armas nucleares); e, em maio, a primeira etapa, com aumento do estoque de urânio enriquecido para além do limite do JCPOA de 300 kg.

A AIEA confirmou a reativação de duas cascatas de centrífugas em Fordow e registrou que quatro cascatas permanecem inalteradas. Enquanto isso, a comissão de Energia Atômica do Irã advertiu que o país está pronto para voltar ao patamar pré-acordo.

O regime Trump, quase semanalmente, vem ampliando as sanções contra o Irã, com o último setor visado sendo o da construção, além de medidas contra líderes iranianos e seus familiares.

Foi introduzida, ainda, uma ‘regulamentação’ tão rígida das exportações de itens formalmente excluídos das sanções, como alimentos e remédios que, no dizer de um líder da comunidade iraniano-americana, inviabilizará completamente que sejam realizadas.

SEM VIOLAR O TNP

A Rússia, que aconselhou o Irã em julho a respeitar o acordo nuclear de 2015 e “não ceder à emoção”, responsabilizou Washington pelos desdobramentos que envolvem o JCPOA. “Estamos muito preocupados e essa preocupação não data de ontem ou de hoje, mas de maio do ano passado, quando os Estados Unidos anunciaram sua saída do acordo”, afirmou o chefe da diplomacia russa, Sergei Lavrov.

O ministro das Relações Exteriores da Rússia também enfatizou que “todas as medidas do Irã relativas à redução de suas obrigações são tomadas informando a AIEA, na presença de inspetores da AIEA, e sem violar o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e seu Protocolo Adicional”.

Dmitry Peskov, porta-voz do presidente russo Vladimir Putin, reiterou que Moscou entende as preocupações de Teerã sobre as “sanções ilegais e sem precedentes” contra o país.

O porta-voz do ministério das Relações Exteriores da China, Geng Shuang, conclamou os EUA a abandonarem as “estratégias erradas, como sanções unilaterais e pressão máxima” contra o Irã.

“Como apontamos repetidamente, a causa raiz das tensões persistentes em torno da questão nuclear iraniana está na retirada unilateral dos EUA do JCPOA e na sua campanha de pressão máxima contra o Irã”, ressaltou Geng.

Para Pequim, é imprescindível que todas as partes do JCPOA exerçam “a contenção”, implementando o acordo de forma “eficaz e completa”, e usando os mecanismos do acordo “para resolver as disputas”.

Em outubro, o chanceler russo Lavrov advertira que o mecanismo destinado a contornar as sanções, com que os três signatários europeus haviam se comprometido com Teerã no início do ano, o chamado Instex, para evitar as punições extraterritoriais previstas nas sanções de Trump e manter as transações comerciais com o Irã, ainda não estava operando.

Em Pequim, onde se encontrava em visita, o presidente francês Emmanuel Macron, classificou de “grave” a decisão do Irã e acrescentou que era “a primeira vez” que Teerã sinalizava que poderia deixar o JCPOA.

“Acho que, pela primeira vez, o Irã decidiu de maneira explícita e contundente deixar o JCPOA, o que marca uma mudança profunda”, disse Macron, que em algum nível tem buscado manter o acordo, mas sem desagradar Trump.

Macron anunciou que iria discutir nos próximos dias a questão com os iranianos e avaliar “coletivamente” as conseqüências. Para o chefe de Estado francês, “o retorno ao normal” só poderia ocorrer se Washington e Teerã concordassem “em reabrir uma agenda confiável, ampliar o diálogo e avançar com gestos” – como se não tivesse sido Trump que rasgou um acordo basicamente negociado e assinado por seu antecessor, Obama.

Macron também registrou que “o forte multilateralismo é mais forte que o unilateralismo aos gritos” – de Trump ? – e se referiu ao “erro dos EUA ao deixar unilateralmente o JCPOA”. Acrescentou que “esta quebra do referencial multilateral está mostrando sua ineficiência. Qual é a consequência? Escalada, tensões na região, controle [mais fraco] das atividades nucleares do Irã”.

Dominic Raab, chanceler de Boris Johnson, cujo projeto se vencer as eleições é pular no colo de Trump e dos monopólios norte-americanos, chamou as medidas de Teerã de “ameaça à segurança nacional”. O chefe da diplomacia alemã, Heiko Maas, também afinou, pedindo ao Irã que reconsiderasse “todas as medidas adotadas desde julho” e que “respeitasse plenamente seus compromissos”.

O rompimento unilateral do acordo JCPOA por Trump é ainda mais gritante considerando que o Irã aceitou uma limitação da sua atividade nuclear mais rigorosa do que o Tratado de Não-Proliferação da ONU estabelece – e sob a mais rígida fiscalização da Agência Internacional de Energia Atômica da história – depois de anos de negociação.

Em troca, o acordo garantia ao Irã o fim das sanções e a normalização das relações econômicas, que foi assinado em 2015 por Obama, mais Rússia, França, Inglaterra, China e Alemanha, o chamado 5 + 1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha).

Dizem as más línguas, que o principal defeito percebido por Trump no acordo foi ter sido assinado por Obama.

O JCPOA não foi o único acordo de que Trump se retirou unilateralmente. Também o fez com o Tratado INF de Proibição de Mísseis Nucleares Intermediários (assinado por Reagan) e o Tratado do Clima de Paris (assinado por Obama). E é quase certo que irá se retirar do Tratado de Céus Abertos (assinado por Bush Pai) e do Tratado de Limitação de Mísseis Nucleares Intercontinentais START II (assinado por Obama).