Senadores trumpistas viraram as costas ao anseio popular pelo direito amplo ao voto

Dois dias após o feriado de Martin Luther King, 50 senadores republicanos, com a cumplicidade de dois democratas, bloquearam a Lei de Avanço dos Direitos de Voto, nomeada em homenagem ao ex-deputado negro e companheiro de luta do Dr. King, John Lewis, e a Lei de Liberdade de Voto, valendo-se do mecanismo de obstrução que existe desde o passado escravocrata do país, o mal chamado ‘filibuster’, que força a que haja 60 votos em um total de 100 senadores para que a lei possa ser levada à discussão e ser votada. Na Câmara dos Deputados, a lei já havia sido aprovada.

Desde janeiro, sob a mentira insuflada pelo ex-presidente de que só perdeu a eleição “porque foi roubada”, pelo menos 18 estados – hegemonizados pelos republicanos – adotaram um total de 30 leis eleitorais restritivas. De acordo com o Centro Brennan para a Justiça da Escola de Direito da Universidade de Nova York, são mais de 400 os projetos de supressão de voto apresentados, em 49 estados.

O que fez com que, nas manifestações do dia do Dr. King deste ano, a ênfase tenha sido o repúdio à supressão de voto e a defesa da nova legislação, agora vetada.

Em suas principais cláusulas, a legislação transformaria o dia da votação em feriado nacional – como acontece na maioria dos países -; protegeria o voto pelo correio – forma tradicional de voto no país; e exigiria que estados com histórico de discriminação obtivessem autorização federal para alterar regras eleitorais (uma das principais conquistas do movimento liderado há 50 anos pelo Dr. King).

Também protegeria os apuradores de pressões espúrias – como visto nos cercos a seções, com milicianos armados; manteria a votação antecipada de pelo menos duas semanas; restringiria o ‘redistritamento’ [gerrymandering], pelo qual são fabricados currais eleitorais e inviabilizados candidatos oponentes; e imporia restrições ao abuso econômico nas eleições.

1965 vs 2022

“Eu sei que não é 1965. É isso que me deixa tão indignado. É 2022 e eles estão descaradamente removendo mais locais de votação de condados onde negros e latinos estão sobre-representados”, criticou o democrata Cory Booker, senador por Nova Jersey.

Na prática, a reiteração da supressão de votos é a forma encontrada pelos supremacistas e xenófobos para continuarem de forma menos aberta o que era explicitamente cometido sob o regime do apartheid das leis Jim Crow, que impediam os negros de votarem sob os mais diversos pretextos.

Essas manobras em prol da supressão de votos são facilitadas pelo fato de que nos EUA não existe uma justiça eleitoral nem uma legislação única, com as leis variando de estado a estado, o voto não é obrigatório e decisão recente da Suprema Corte, hegemonizada por juízes pró-republicanos, considerou a manipulação da verdade eleitoral por magnatas, jogando enormes somas de dinheiro nos seus candidatos, através do mecanismo PAC, como parte de sua “liberdade de expressão”.

Na eleição anterior, a que elegeu Trump, o principal mecanismo usado foram as fake news, para desmotivar os negros de votarem, o que acabou decidindo a parada em estados-chave por uma margem estreita, em razão do estelionato eleitoral de Obama pós-crise de 2008. Agora, o jogo é impedir que as ‘minorias’ votem, para que o trumpismo prevaleça nas eleições intermediárias deste ano, em novembro.

Igualdade nas urnas

O filho do Dr. King, Martin Luther King III, tem sido incansável na defesa do direito de voto para todos como parte essencial da luta para salvaguardar a democracia norte-americana, sobre a qual pesam ameaças como a invasão do Capitólio em 6 de janeiro do ano passado por fascistas, racistas e negacionistas em geral, para impedir a proclamação de Biden como presidente eleito.

“Como você impede que certas pessoas votem sem dizer explicitamente que não podem votar? Você reduz o voto pelo correio, reduz os centros de votação, as horas para votar. Aí você faz com que a votação seja em dias úteis”, listou Luther King III, acrescentando que isso afeta especialmente os trabalhadores afro-americanos e latinos.

“Faremos história carregando a tocha da justiça que meu pai e tantos outros carregaram 58 anos atrás”, disse, antes de pedir à multidão que “não abandonasse” a luta pela igualdade nas urnas. “São vocês que carregam esse sonho e chegou a hora de realizá-lo”, assinalou.

Os senadores democratas desistiram de ativar um procedimento especial que lhes permitiria submeter ambos os textos para votação na Casa mesmo com o bloqueio da oposição, que dependia de que todos os 50 democratas e independentes estivessem a favor, para que a questão pudesse ser encaminhada para o voto de Minerva de Kamala Harris que, como vice-presidente, é quem chefia o Senado nos EUA.

No caso, roeram a corda, como vêm fazendo sistematicamente, os democratas de extrema direita Joe Manchin e Kyrsten Sinema.

Na tentativa de superar o impasse, o líder da maioria, Chuck Schumer, tentou encaminhar uma proposta intermediária, a ‘obstrução falante’, que seria aplicada pontualmente ao pacote de leis de direito de voto e exigiria apenas uma maioria simples para avançar para a aprovação final, precedida por um longo debate. Nenhuma outra lei receberia o mesmo tratamento.

“A grande maioria da nossa bancada discorda fortemente dos senadores Manchin e Sinema sobre as mudanças de regras. A esmagadora maioria sabe que se você tentar confiar nos votos republicanos, não terá nenhum progresso nos direitos de voto”, disse Schumer.

O presidente Joe Biden reagiu ao resultado se dizendo “profundamente desapontado que o Senado não tenha defendido nossa democracia. Estou desapontado, mas não dissuadido”. Ele se comprometeu a continuar “pressionando por mudanças nos procedimentos do Senado que protegerão o direito fundamental ao voto”.

O líder da minoria, Mitch McConnell, cinicamente justificou a obstrução à legislação do direito de voto para todos, alegando que a participação na última eleição – cujas regras eles estão buscando mudar estado por estado – foi “a maior desde 1900”.

Democracia em perigo

Também o ex-presidente Jimmy Carter, cuja fundação que leva seu nome conquistou renome por monitorar e auxiliar processos eleitorais no mundo inteiro, advertiu, em artigo pelo primeiro aniversário da invasão do Capitólio, que “nossa grande nação agora oscila à beira de um abismo cada vez maior. Sem ação imediata, corremos o risco real de um conflito civil e de perder nossa preciosa democracia”.

Carter sublinhou que “os promotores da mentira de que a eleição foi roubada capturaram um partido político e alimentaram a desconfiança em nossos sistemas eleitorais”. Ele denunciou ainda ‘“a desinformação implacável’ que coloca os norte-americanos uns contra os outros”.

Carter convocou os cidadãos norte-americanos a “concordarem com as normas constitucionais e se respeitarem”, apesar das diferenças políticas, e considerou imprescindível reformas eleitorais para garantir o acesso e a confiança nas eleições, bem como rejeitar a violência na política e enfrentar a desinformação.