Rússia; EUA ignora gravidade da crise da segurança coletiva na Europa
A primeira rodada de negociações Rússia-EUA sobre a restauração da segurança coletiva no continente europeu, levada a cabo em Genebra na segunda-feira (10), se encerrou ainda longe de Washington se dispor a entender, como observou o vice-chanceler russo Sergei Ryabkov, a “gravidade da situação”, com Moscou demandando que cesse a expansão dos EUA/Otan às suas fronteiras, a não anexação da Ucrânia e Geórgia pela Otan e garantias juridicamente vinculantes de segurança
O que a Rússia quer é restaurar o princípio de segurança coletiva definido em 1975 em Helsinque: segurança igual e indivisível em todo o espaço da Europa, agora, da Eurásia, em um quadro em que, assinalou o presidente Vladimir Putin, a Rússia não tem mais como recuar – e não irá.
A delegação norte-americana foi encabeçada pela subsecretária de Estado, Wendy Sherman. No dia 12, ela e Ryabkov voltam a se reunir como parte de uma reunião Rússia-Otan em Bruxelas e, no dia seguinte, na reunião da OSCE (Organização pela Segurança e Cooperação na Europa), em Viena.
Apesar dos impasses, Ryabkov considerou as conversações, que duraram quase oito horas, “difíceis, longas, muito profissionais, profundas, específicas, sem nenhuma tentativa de embelezar nada, ou de contornar questões delicadas”.
“Infelizmente, temos uma grande disparidade em nossas abordagens de princípios para isso. Os EUA e a Rússia, de certa forma, têm visões opostas sobre o que precisa ser feito”, disse o vice-chanceler russo.
Em discussão as propostas que a Rússia entregou oficialmente a Washington – e à Otan – em 15 de dezembro, após telefonema entre os presidentes Putin e Biden. Dois dias depois, o teor das propostas foi amplamente divulgado pela Rússia para que fosse conhecido no mundo inteiro, enquanto a mídia imperial tentava reduzir a questão a se Moscou, ia, ou não, “invadir a Ucrânia”.
“Pedimos aos EUA que demonstrem o máximo de responsabilidade neste momento. Os riscos relacionados com um possível aumento do confronto não devem ser subestimados”, disse Ryabkov, acrescentando que um esforço “significativo” foi feito em Genebra para persuadir os norte-americanos.
“Nós não viemos para Genebra para que tudo chegasse a um beco sem saída. Tentamos muito mostrar que brincar com fogo não é do interesse deles (dos EUA). A matriz de nosso relacionamento tem que ser fundamentalmente mudada”, acrescentou o diplomata russo.
As garantias legais para a renúncia da Otan a uma maior expansão para leste – Ucrânia e Geórgia – é um “imperativo absoluto”, destacou Ryabkov. Também as garantias legais de que nenhum sistema de combate “capaz de atingir alvos em nosso território” será instalado na fronteira da Rússia.
A OTAN deve “basicamente” renunciar ao desenvolvimento militar dos territórios dos Estados que aderiram à Otan após 1997.
O chefe da delegação russa enfatizou que novas negociações só serão possíveis se houver progresso nessas três questões. “As cartas estão na mesa. Dizemos e fazemos o que pensamos. A diplomacia exige um equilíbrio de interesses. Mas não podemos recuar aqui”.
“Estou confiante de que um equilíbrio geral de interesses que satisfaça todas as partes, um equilíbrio de interesses entre a Rússia, por um lado, e o grupo da Otan, por outro lado, pode ser encontrado se houver disposição”, disse Ryabkov.
A questão que está posta sobre a mesa foi a que Putin colocou em sua coletiva de imprensa anual: “Deixamos claro que qualquer movimento posterior da Otan para o Leste é inaceitável. Há algo obscuro sobre isso? Estamos implantando mísseis perto da fronteira dos EUA? Não, nós não estamos. São os Estados Unidos que vieram à nossa casa com seus mísseis e já estão à nossa porta. É ir longe demais exigir que nenhum sistema de ataque seja colocado perto de nossa casa? O que há de tão incomum nisso?”
Não se trata da “linha que não queremos que alguém cruze”, Putin disse na tevê. “A questão é que não temos para onde recuar. Eles [Otan] nos espremeram contra uma linha da qual não podemos nos mover. Eu já disse – eles colocarão sistemas de mísseis na Ucrânia, 4-5 minutos tempo de voo para Moscou. Para onde podemos ir? Eles simplesmente nos levaram a tal estado que temos que dizer a eles: parem”, disse o presidente russo.
Em termos práticos, isso tornaria quase automática uma resposta e a hecatombe nuclear.
Ryabkov descreveu as conversações de Genebra como úteis porque discutiram assuntos anteriormente deixados de fora da mesa. Pela primeira vez nas últimas décadas, os projetos de documentos entregues aos EUA e à Otan foram formulados “de forma tão direta, firme e sem quaisquer elementos de ambiguidade inadmissíveis neste caso” e divulgados dias após sua entrega.
“Estamos fartos de conversas soltas, meias promessas, interpretações errôneas do que aconteceu em diferentes negociações a portas fechadas” , disse ele, referindo-se às alegações do Departamento de Estado nos últimos dias de que a Otan e os EUA nunca prometeram a Moscou que a Otan não expandiria para o leste.
Como é fartamente documentado, quando da reunificação alemã Washington prometeu verbalmente ao então presidente Gorbachov que jamais se estenderia “uma polegada” a leste. “Não confiamos no outro lado, por assim dizer”, disse Ryabkov. “Acabou, chega”.
O vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia advertiu que, se a Otan avançar para a implantação de novas capacidades em armamentos, os militares russos terão de responder de uma maneira que “prejudicará inevitavelmente a segurança dos EUA e de seus aliados europeus”. A bola está agora no campo da Otan, acrescentou, que precisa se decidir a dar um “passo verdadeiro” para encontrar um terreno comum com a Rússia.
Ryabkov lembrou, ainda, a responsabilidade dos EUA ao tornar mais precária a segurança na Europa por se retirar unilateralmente do Tratado INF – que proibia mísseis intermediários na Europa – e do Tratado de Céus Abertos, que permitia voos de monitoramento sobre o território da outra parte.
“A situação agora é tão perigosa e tão – eu diria – precária que não podemos mais atrasar a resolução desta questão fundamental”, disse o vice-chanceler na coletiva de imprensa em Genebra. “Como o presidente Putin disse, em muitas ocasiões, ‘não podemos retroceder. Não podemos retroceder. Não há mais espaço para fazermos isso.’”
Ucrânia
Quanto à Ucrânia, Ryabkov disse aos jornalistas que explicou pacientemente aos norte-americanos que não há planos de “invadir” a Ucrânia, e nunca houve. A Rússia está treinando suas tropas em seu próprio território soberano e não há base para descrever isso como uma “escalada”, destacou. Quanto às sanções, ele disse que o Ocidente “perdeu a arte de negociar” e ficou reduzido a ameaças de sanções e ultimatos.
A Rússia, por outro lado, simplesmente colocou suas cartas na mesa e está disposta a discutir as coisas abertamente. Cabe a Kiev cumprir os termos do Acordo de Minsk e a resolução da ONU que o endossou e garantir os direitos civis aos cidadãos de língua russa nas regiões orientais, acrescentou.
O diplomata salientou que a cooperação da Otan com a Ucrânia está mais avançada em comparação com muitos países da Otan. “É muito mais perigoso para nós. Voos militares constantes, o uso dos portos pela marinha, simulações de ataques nucleares contra a Crimeia ou voos de helicópteros militares sobre Dniepr são exemplos disso”.
Respondendo a uma provocação feita por um jornalista norte-americano, em russo Ryabkov chamou Kiev de “mãe das cidades russas” – como é conhecida na Rússia.
A subsecretária de Estado Sherman disse aos jornalistas, em uma coletiva de imprensa paralela, que as duas partes apresentaram “uma série de ideias nas quais nossos dois países poderiam tomar medidas recíprocas que seriam de nosso interesse de segurança e melhorariam a estabilidade estratégico”.
Mas quanto à questão essencial da restauração da segurança coletiva na Europa, Sherman candidamente disse que Washington seguirá firme em rejeitar “propostas que são simplesmente inaceitáveis” e que qualquer limite à expansão da Otan – isto é, dos EUA – é “um não-começo”.
Apesar de ter considerado as conversações “francas e diretas”, Sherman acrescentou que “não foi o que você chamaria de negociação”. “Não chegamos a um ponto em que estamos prontos para estabelecer textos e começar a ir e voltar.”
Ela também reiterou as ameaças de “sanções infernais” contra a Rússia – aquelas das quais Putin explicou a Biden no último telefonema que, se aplicadas, levariam ao rompimento total de relações.