Caminhões frigoríficos improvisados como necrotérios nas portas de hospitais 

A mais prestigiosa revista médica do mundo, The Lancet, afirmou que “40% das mortes por coronavírus nos Estados Unidos poderiam ter sido evitadas”, denunciando a devastação trazida pelo negacionismo e incompetência do governo Trump diante da Covid-19, que culminou quatro décadas de desmanche da saúde pública, prevalência dos monopólios privados na assistência médica e exacerbação da desigualdade social.

O ex-presidente Trump trouxe “infortúnio para seu próprio país e para todo o planeta”, avaliou o painel sobre Políticas Públicas e Saúde nos EUA da The Lancet, que anualmente manifestou suas apreensões sobre o que estava em curso no governo do bilionário republicano.

A dramaticidade dos números em questão, 471 mil norte-americanos mortos por Covid e 27 milhões infectados, dão por si só uma ideia das questões apontadas no relatório.

O país mais rico do mundo, com 4% da população mundial e supostamente dotado de uma medicina de ponta, sofreu desproporcionais 20% do total de mortos e infectados no planeta.

De acordo com a revista, 188 mil norte-americanos poderiam estar vivos caso a taxa de mortalidade dos EUA tivesse se mantido no mesmo patamar da do Canadá, Grã Bretanha, Alemanha, França, Itália e Japão (países do G7).

Em editorial, The Lancet convocou o presidente Joe Biden a “enfrentar a pandemia de Covid-19 e suas consequências econômicas, além do legado corrosivo de Trump” e advertiu que “o caminho para longe da política de ódio e desespero de Trump não pode ser através das políticas do passado”.

O texto afirma que a era Trump foi marcada por retrocessos que compõem “uma lista assustadora, mas crucial” em questões como cobertura universal de saúde, negação da ciência, racismo e desigualdade de renda.

Aponta, ainda, como seu corte de impostos de US$ 1 trilhão para as corporações e pessoas abastadas gerou um buraco no orçamento que Trump usou para justificar corte de subsídios para comida e assistência médica.

Além disso, ao acelerar a privatização de programas governamentais de saúde, aumentou o fluxo de fundos públicos para as seguradoras privadas, cuja parte mais significativa de suas receitas derivam de programas governamentais, elevando os custos do Medicare em cerca de US$ 24 bilhões anualmente e provoando lucros recordes durante a pandemia da Covid-19.

Trump fortaleceu também os supremacistas brancos e vigilantes com suas exortações, encorajou a violência policial e, no final do seu mandato, estimulou uma insurreição. Como se isso não bastasse, nomeou juízes que torpedearam os direitos trabalhistas, civis, de voto e de ação afirmativa, e ordenou prisão em massa de imigrantes, sem falar que suas políticas de comércio, defesa e relações exteriores levaram à disrupção econômica e risco de guerra.

“A saúde dos americanos estava se deteriorando mesmo quando nossa economia estava em expansão”, disse a Dra. Steffie Woolhandler, que co-preside a comissão.

“Esta dissociação sem precedentes entre saúde e riqueza nacional sinaliza que nossa sociedade está doente”, acrescentou. O governo Biden deve “reiniciar a democracia e implementar as políticas sociais e de saúde progressistas necessárias para colocar o país no caminho de uma saúde melhor”.

“Em vez de galvanizar a população dos EUA para lutar contra a pandemia, o presidente Trump rejeitou publicamente sua ameaça (apesar de reconhecê-la em particular), desencorajou a ação à medida que a infecção se espalhou e evitou a cooperação internacional”, registrou o relatório dos cientistas.

Mais: Trump recusou a adoção de medidas de saúde pública como uso de máscaras e distanciamento físico, desacreditou a ciência, promoveu teorias conspiratórias, minou a criação de uma resposta nacional à pandemia, empurrando as decisões mais cruciais para os estados, promoveu terapias inócuas com a hidroxicloroquina e chegou até mesmo a recomendar a perigosa prática de injeção de desinfetante para ‘matar o vírus’.

Esse comportamento levou muitos seguidores do presidente a não levarem a pandemia a sério e praticamente inviabilizarem as respostas que outros países deram com sucesso no controle da Covid-19.

Como enfatizou o editor-chefe da Lancet, Richard Horton, “a pandemia explorou as desigualdades sociais e de saúde existentes, e em nenhum lugar isso é mais aparente do que nos EUA”. Segundo ele, a Covid mostrou como o sistema de saúde norte-americano tem sido “inadequado” para proteger sua população.

DESMANCHE

Uma parte central para tamanho desastre coube ao desmanche da saúde pública, nas últimas quatro décadas, desde Reagan. Considerando apenas um período tão recente como 2008-2016 [governo Obama], os cortes orçamentários fizeram com que fossem extintos cerca de 50 mil empregos na saúde, contingente que poderia ter proporcionado aos EUA um cenário que poderia ter proporcionado aos EUA um quadro “completamente diferente” na resposta ao coronavírus.

Entre 2002 e 2019, o investimento na saúde pública, nos EUA, caiu de 3,21% para 2,45% (metade do investimento feito em países como o Canadá ou o Reino Unido), sublinhou o relatório.

Em 2018, a diferença entre tempo de vida nos EUA e os demais países do G7 já era de 3,4 anos.

“Os EUA se saíram muito mal nesta pandemia, mas o estrago não pode ser atribuído apenas a Trump. Também tem a ver com falhas sociais”, afirmou Mary Bassett, integrante da comissão e pesquisadora da Universidade Harvard em entrevista ao jornal inglês The Guardian.

“As ações desastrosas do Trump agravaram as falhas de longa data na política de saúde nos EUA. Nós sabemos o que será necessário para criar uma sociedade saudável. Só precisamos da vontade política para fazê-lo”, concluiu o Dr. Kevin Grumbach, da Universidade da Califórnia, um dos autores do relatório.

A análise da comissão vinculou a figura de Trump e suas ações às condições históricas que tornaram sua presidência possível. “Ele foi uma espécie de ponto culminante de um determinado período, mas não é o único arquiteto”, disse Bassett.

“Decidimos que é importante colocá-lo em contexto, não para minimizar o quão destrutiva foi sua agenda política e seu fomento pessoal à fogueira da supremacia branca, mas para colocá-lo em contexto”, argumentou.

Para a comissão, só com um Sistema Único de Saúde – a exemplo do ‘Medicare for All’ proposto pelo senador Sanders – será possível de forma consistente reverter as tendências que afetam negativamente a saúde dos norte-americanos.

“Ainda estamos num buraco muito profundo. Temos 30 milhões de pessoas sem seguro. Temos dezenas de milhões com seguro insuficiente”, disse a Dra. Woolhandler.

Conforme o relatório, os planos de saúde privados cobraram “despesas gerais e lucros exorbitantes” ao estender uma cobertura subsidiada pelo governo aos norte-americanos de baixa e média renda com a assinatura da lei de saúde do ex-presidente Obama, o Obamacare.

XENOFOBIA

O relatório também se debruça sobre como as políticas de Trump afetaram a vida e a saúde das minorias.

“Seus apelos racistas, anti-imigrantes e chauvinistas encontraram ressonância em algumas comunidades brancas de renda média e baixa que buscavam bodes expiatórios para suas perspectivas de vida em declínio, mesmo mantendo alguns privilégios negados às pessoas não brancas”, diz a comissão.

Segundo o artigo, as minorias estão mais vulneráveis historicamente pelas disparidades em “habitação, riqueza, emprego e direitos políticos”. O que se refletiu em que o índice de mortalidade por coronavírus entre pessoas negras e latinas seja 3,6 vezes maior do que em pessoas brancas. Durante a pandemia, aumentou, ainda, em 50% a lacuna de longevidade entre pessoas negras e brancas.

Em razão do discurso xenófobo de Trump, os imigrantes tenderam a evitar os serviços de saúde mesmo quanto tinham acesso a eles. O que dificultou a identificação e rastreamento de novas infecções pelo coronavírus.

“A resposta desastrosa e malfeita à pandemia deixou claro como as desigualdades raciais existentes, e de longa data, simplesmente não foram abordadas”, assinalou a pesquisadora Bassett. “É hora de parar de dizer que essas lacunas evitáveis não podem ser eliminadas”, concluiu.

O relatório também se referiu à nefasta influência de Trump em nível global, cujas concepções reverberaram junto a gente como o presidente das Filipinas e os primeiros-ministros da Índia e Hungria. O documento cita expressamente os vínculos de Jair Bolsonaro com o trumpismo: “vem adotando políticas que aceleram a destruição da Floresta Amazônica e irão acelerar as mudanças climáticas”.

Infelizmente – acrescenta o documento, as políticas de Trump não são “uma aberração isolada dos EUA”. “As agendas autoritárias estão se espalhando em todo o mundo, à medida que políticos mobilizam pessoas inseguras com suas perspectivas de declínio, para ir contra aqueles que estão abaixo delas em hierarquias raciais, religiosas ou sociais.”

O Relatório também registrou o papel desestabilizador de Trump ao retirar o financiamento da Organização Mundial da Saúde [e retirar os EUA da instituição] em plena pandemia, assim como sua ojeriza pela preservação do meio ambiente e pelo multilateralismo.