Com o anúncio, por EUA e China, da restauração da trégua na guerra comercial (e tecnológica), encerrou-se no sábado em Osaka, Japão, a cúpula do G20. A trégua, sem prazo definido de duração, foi a principal decisão saída da reunião entre o presidente norte-americano Donald Trump e seu homólogo chinês, Xi Jinping. O comunicado final do G20 refletiu a urgência de salvar o sistema multilateral de comércio.

Conforme advertências do Banco Mundial e do FMI, a guerra comercial está pondo em risco o crescimento da economia mundial e afetando as cadeias globais de suprimento. Portanto, algum nível de alívio se transformara na principal questão da cúpula.

O anfitrião, o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, chamara a reunião a enviar uma “mensagem forte” sobre a manutenção e fortalecimento do sistema de comércio “livre, justo e não-discriminatório”. A trégua havia sido suspensa em maio por Trump, após tentativa frustrada de impor ditames à China, que teriam inclusive de ser incrustados na própria constituição chinesa, e de frear o programa chinês de alta tecnologia.

Ao mesmo tempo, Washington recua parcialmente no bloqueio à gigante chinesa das telecomunicações, Huawei, e não impõe novas tarifas sobre as importações da China, como voltara a ameaçar nas vésperas do G20. Em contrapartida, a China se comprometeu em adquirir mais bens agrícolas norte-americanos de uma lista trazida por Trump, cujas bases eleitorais no campo vivem uma grande crise devido à suspensão das compras chinesas de soja e outros produtos.

BANDEIRA BRANCA

As consultas entre as duas partes deverão se reger “pela igualdade e respeito mútuo” e os dois presidentes “concordaram em avançar um relacionamento China-EUA com características de coordenação, cooperação e estabilidade”, registrou a agência de notícias Xinhua.

Pelo seu lado, Trump asseverou que o diálogo com a China está “de volta ao caminho certo” e considerou que sua reunião com Xi “ainda melhor” do que esperava. “Se conseguirmos chegar a um acordo, será um evento histórico”, acrescentou.

Continuam as sobretaxas mútuas já em vigor, sobre US$ 200 bilhões em importações provenientes da China e, de forma espelhada, sobre US$ de 60 bilhões de importações desde os EUA. Quanto à Huawei, o recuo é parcial, uma “moratória da aplicação” segundo Trump, sobre “equipamentos que não representam um grande problema para a segurança nacional”. Estão também mantidas a lista negra de Trump de empresas chinesas e a equivalente, de Pequim.

MULTILATERALISMO

Formado pelas 19 maiores economias do mundo, mais a UE, no final da década de 1990 para coordenar uma resposta multilateral a uma série de crises financeiras globais, foi com o crash de 2008 que o G20 assumiu o peso que tem atualmente, ao ter sido um instrumento essencial para conter a maior crise econômica mundial desde 1929.

A cúpula de Osaka ocorreu em um clima de grande expectativa, sob risco de a guerra comercial lançada contra a China ser estendida pelo governo Trump a outros países – inclusive a Europa – e um frenesi de sanções, debaixo de variados pretextos, aos quais se somam as complicações trazidas pela saída unilateral dos EUA do acordo nuclear com o Irã e pelas provocações contra petroleiros no Golfo Pérsico.

Em seu comunicado final, a cúpula de Osaka, convocou todos a criarem um ciclo virtuoso de crescimento e reiterou seu compromisso com a reforma da Organização Mundial do Comércio (OMC) e com um ambiente de comércio e investimentos “livre, justo, não discriminatório, transparente, previsível e estável”, bem como com o meio ambiente e o Acordo de Paris.

Em nome da União Europeia, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou que o “multilateralismo está no DNA da Europa”. O plano de investimento em infraestrutura da China, o Cinturão e Estrada (Nova Rota da Seda), um plano Marshall em escala maior para integrar economicamente a Eurásia, com portos, links de internet de alta velocidade, ferrovias de alta velocidade, estradas e centros de produção, não era parte da pauta mas pairou sobre a cúpula.

PRIVILÉGIO

O regime Trump tem buscado descrever como “protecionismo” o que não passa de uma política agressiva de sua parte para submissão do mundo inteiro ao seu diktat, para imposição dos interesses dos carcomidos monopólios norte-americanos, unilateralmente, sob mira de armas nucleares, extraterritorialidade de suas leis internas e uso do ‘exorbitante privilégio’ do dólar.

E da cínica alegação de que as normas da OMC – impostas por Washington no processo de ‘globalização’ pós-‘vitória da Guerra Fria’ – prejudicaram a economia norte-americana. Processo no qual um dos traços centrais foi a transferência a rodo para o exterior de fábricas norte-americanas, para tirar proveito além-mar dos baixos salários, manter o arrocho doméstico e aumentar os lucros.

Como nas alucinadas declarações de Trump à Fox News, de que “quase todos os países deste mundo tiram uma tremenda vantagem dos Estados Unidos”. Na entrevista, além da China ele acusara também o Vietnã, a Europa e o Japão. O Vietnã é “o único pior agressor de todos”. A Europa “nos trata pior que a China”. O Japão é ingrato porque “se o Japão for atacado … nós lutaremos a todo custo, certo? Mas se formos atacados … eles podem assistir o ataque em uma televisão da Sony”.

Chantagem que se torna indisfarçável quando tudo vira alvo da “segurança nacional” debaixo do “Make America Great Again”, para fins de decretação de sanções e de tarifas. Dos carros importados alemães ao 5G chinês, passando pelo aço japonês ou a aquisição turca da defesa antiaérea russa S-400 ou ainda o gasoduto Nord Stream 2 no Báltico.

Questão abordada com a objetividade costumeira pelo presidente russo Vladimir Putin no início de junho, quando registrou como Estados que antes tagarelavam sobre “competição justa” e “liberdade de comércio”, começaram a falar abertamente “a linguagem das guerras comerciais e sanções, invasões econômicas flagrantes, torção de braço, intimidação, eliminação dos concorrentes por meio dos chamados métodos não-mercantis”.

Em seu discurso no G20, o presidente Xi havia se apresentado como o campeão da luta pelo multilateralismo e anunciado novas medidas para relações internacionais ganha-ganha.

“ARMADILHA”

“China e Estados Unidos se beneficiam ambos da cooperação e os dois perdem em uma confrontação”, afirmou Xi no encontro com Trump. Ele acrescentou que a “cooperação é melhor que a fricção”, apontando os interesses altamente integrados dos dois países e propondo que se evite cair “na armadilha da confrontação”.

Lembrando a “diplomacia pingue-pongue” em 1971 em Nagoya, no Japão, durante o 31º Campeonato Mundial de Tênis de Mesa, Xi destacou que, apesar das grandes mudanças na situação internacional e nas relações China-EUA nos últimos 40 anos, “permanece inalterado o fato básico” de que tanto a China como os EUA “se beneficiam da cooperação e perdem com o confronto”.

No início de junho, Xi se reunira na Rússia com o presidente Vladimir Putin, quando os dois anunciaram “uma nova era sem precedentes nas relações Rússia-China” e foi depois a Pyongyang. Moscou e Pequim também assinaram um acordo para passar a fazer preferencialmente nas moedas nacionais seu intercâmbio comercial, deixando de lado o dólar. Só no ano passado, o comércio bilateral cresceu 25%.

PUTIN CHAMA A “VIRAR A PÁGINA”

Outro acontecimento importante em Osaka foi a reunião Trump-Putin, na sexta-feira, diante do agravamento do quadro de segurança estratégica no mundo, depois da saída unilateral dos EUA do Tratado INF, que proibiu mísseis nucleares intermediários e evitou por décadas uma hecatombe nuclear na Europa. Encontro considerado “excelente” por Trump e “bom, pragmático e comercial” por Putin. “Eu acho que nós dois entendemos que precisamos de alguma forma resolver a situação atual”, disse o líder russo. Ambas as potências nucleares, ele argumentou, precisam “de alguma forma encontrar a força para virar a página e seguir em frente”.

Putin também convidou Trump para as comemorações dos 75 anos da vitória sobre a Alemanha nazista em Moscou em maio do ano que vem. No encontro com o príncipe saudita Bin Salman, Putin e ele acertaram a continuação do acordo de contenção da produção e sustentação de preço do petróleo, entre Moscou e a Opep.

A estréia do presidente brasileiro Jair Bolsonaro no G20 bombou nas redes sociais, graças ao escândalo dos 39 kg de cocaína no avião presidencial de reserva e às bijuterias de nióbio. Além de posar para a foto dos BRICS, ele foi a uma churrascaria local e dirimiu Merkel e Macron quanto à “psicose ambiental” de que julga seu governo vítima. Buscou, também, capitalizar a rendição do Mercosul aos monopólios europeus, assim como a fragilização, praticamente gratuita, da nossa indústria. Para alegria dos europeus, o déficit já existente no comércio com eles vai piorar – e bem.

CONTAGEM REGRESSIVA

Subjacente à discussão sobre a “reforma da OMC” está o fato de que o próximo golpe de Trump contra o sistema multilateral de comércio já tem data marcada, 10 de dezembro, quando expira o mandato de dois juízes do Órgão de Apelação, o tribunal responsável por dirimir as pendências entre os 164 países membros.

Conforme advertiu recentemente o El País, “se ninguém o evita – e não parece que alguém possa fazê-lo” – o bloqueio de Washington à nomeação de substitutos deixará o tribunal “inoperante”. São os EUA tentando “matar a OMC por dentro”, como denunciou há dois anos a Comissária Europeia do Comércio, Cecília Malmström. “Quando não há regras prevalece a lei do mais forte, que é o que os EUA pretendem”, acrescentou o dirigente de comércio exterior, José Luis Kaiser.

Especialistas aconselharam a UE a “se preparar para uma situação em que o Órgão de Apelação deixe de funcionar”. A alternativa: uma espécie de OMC paralela, sem os EUA, um mecanismo temporário à espera que a OMC real volte a funcionar. Países como Japão, Índia, Rússia e África do Sul já teriam expressado apoio a essa “nova rota de arbitragem”. Para os pequenos países, será “a única maneira de se proteger da arbitrariedade dos grandes”, no entendimento dessas fontes.