Renato Rabelo: a origem do nacional-desenvolvimentismo no Brasil
A partir da Revolução de 1930, sob a liderança de Getúlio Vargas, baseado no ideário nacional-desenvolvimentista — aperfeiçoado em seu 2º governo — foram marcantes as transformações da economia brasileira. Neste período foi quando se desenvolveu a industrialização brasileira, essencialmente sob controle nacional.
Por Renato Rabelo*
Essas transformações seriam responsáveis por uma longa trajetória de expansão da economia brasileira, que duraria 50 anos, operando-se às maiores taxas de crescimento no mundo capitalista da época. Crescimento similar somente ocorreria a partir da década de 80 na República Popular da China.
Além do aspecto propriamente econômico, o caráter social da legislação trabalhista — que passou a vigorar para proteger e valorizar o trabalho — somou-se a um efeito econômico evidente: melhorou o poder de compra dos trabalhadores, dinamizando fortemente o mercado interno.
As Reformas de Base de João Goulart constituíram o momento culminante desse processo histórico: foram implementadas oito reformas estruturais. A sua execução completaria a formação da NAÇÃO e do ESTADO nacional brasileiro – barrado com o golpe miliar de 1964.
I – A PARTIR DA DÉCADA DE 1980 O BRASIL EMBOTOU O CRESCIMENTO ECONÔMICO – a relação de dependência se agravou.
A partir do final da década de 1970, começa um ciclo declinante de crescimento econômico no Brasil, de desenvolvimento nacional em geral contido, do aumento da desigualdade social e da pobreza.
A agenda econômica, centrada no ajuste fiscal, somou-se depois à abertura econômica e à desregulamentação financeira. O objetivo principal do ajuste fiscal num primeiro momento (Gov. General Figueiredo 1980/ Delfim Netto) era de reunir dólares para pagar os juros da dívida externa. E, num segundo momento, desde 1990, juntar recursos para pagar juros da dívida pública.
Na origem, estão, portanto, os blindados interesses dos credores externos e dos rentistas financeiros, de dentro e fora do país, o que foi agravado pelo fenomenal avanço da desnacionalização da economia do país. Este fenômeno tem resultado na drenagem de grandes recursos para o exterior, na superexploração da força de trabalho e no estreitamento do mercado interno.
Trata-se do círculo vicioso, um impasse não resolvido, gerando assim uma crise estrutural caracterizada aparentemente pelo esgotamento do padrão dependente de reprodução do capital em nosso país – Em síntese, uma crise estrutural do capitalismo dependente no Brasil.
E mais, essa crise promove a monopolização crescente da economia brasileira e o desenvolvimento do agronegócio pela junção entre capital financeiro, capitais transnacionais e grandes proprietários de terra, que se apropriam de um superlucro.
O curso dessa crise se manifesta concretamente: 1) com o débil e precário crescimento econômico; 2) com períodos de estagnação, recessão e “décadas perdidas”; e 3) marcado pelo retrocesso, com a desindustrialização e a reprimarização da economia.
Tudo isso ocorre, provocado e agravado no Brasil por uma política macroeconômica anti-desenvolvimento que prevalece. Orientada então, pelo sistêmico ajuste fiscal e implantação do tripé econômico, responsável pela tendência de juros altos, câmbio apreciado por longo período; medidas estas, que aprofundaram a dependência, a desnacionalização, a financeirização da economia e a desindustrialização.
Não há dúvida de que nos governos Lula e Dilma houve significativas conquistas sociais, redução relativa da pobreza, aumento real do salário mínimo, defesa da soberania nacional, grande investimento na infraestrutura, esforço pela integração regional, superação do aval e da submissão do país ao FMI, relativa estabilidade econômica e formação de um colchão de apreciáveis reservas cambiais.
Contudo, o exíguo 2º governo Dilma transcorreu em crise — já iniciada desde junho de 2013 — quando a presidenta foi destituída em 2016 por um forçado impeachment, conduzido por setores políticos e judiciários dominantes, com apoio externo dos EUA.
Neste período, apesar de mudanças e conquistas significativas, a essência do capitalismo dependente não foi superada; prevaleceu a hegemonia financeira globalizada e a política central do ajuste fiscal e sua decorrência com o tripé econômico. Após a queda de Dilma, a dependência se exacerbou com toda sua decorrência.
Ademais, novas características da relação de dependência tomam maior dimensão, com a globalização neoliberal, e o capitalismo financeirizado; quando maiores recursos giram na esfera financeira e, esta, captura todos os setores econômicos em detrimento da produção. Com a super exploração e precarização da força de trabalho e consequente diminuição do mercado interno; além da nova ofensiva agressiva do imperialismo, sobretudo dos EUA, para relançar sua hegemonia.
O impacto de toda essa situação no âmbito nacional e global, que alimenta uma crise estrutural no Brasil, tem raízes nas várias formas de dependência, contribuindo para isso, o status neocolonial atual, que onera ainda mais essa situação.
II – Uma passagem d’olhos: A EXPERIENCIA DESENVOLVIMENTISTA NA ÁSIA contrasta inteiramente com curso brasileiro e o latino-americano
Há consenso entre economistas que o Leste Asiático, sobretudo a Coreia do Sul, desde 1960 e a China pós-reformas de 1978, são casos de sucesso de superação do atraso, atingindo extraordinário desenvolvimento. No caso da Coréia houve ajuda e beneplácito dos EUA em função dos seus estritos interesses geopolíticos na região, o mesmo aconteceu com Taiwan.
No caso específico da China, o Estado revolucionário chinês internaliza o Estado desenvolvimentista de tipo asiático. Desde então a China se torna a fusão de dois Estados: o revolucionário com o desenvolvimentista. A diferença nestes casos é que enquanto Coréia do Sul, Japão e Taiwan foram privatizando as empresas estatais e, sob pressão americana, valorizando suas taxas de câmbio e abrindo seus sistemas financeiros.
A China fez o movimento contrário: fortalecimento do setor público da economia, manutenção de uma trajetória de desenvolvimento fora dos esquemas geopolíticos dos EUA e seguiu uma estratégia socializante.
Mas, mesmo assim, seria de bom proveito analisar e estudar o exemplo coreano. Não dá para simplesmente reduzi-lo a uma colônia americana. Ali, eles deram curso a uma bem elaborada estratégia de desenvolvimento baseada em grandes conglomerados nacionais voltados ao estado da arte da 4a Revolução Industrial.
Ao contrário, na América Latina, o processo de crescimento entrou em colapso desde a crise da dívida do México de 1982. No quadro dessa crise os países latino-americanos adotaram agendas em conformidade com o Consenso de Washington, acentuando a abertura da conta financeira e submetendo-se às taxas de câmbio determinadas pelo mercado.
Desmontou assim, o regime de política econômica desenvolvimentista que havia caracterizado sua industrialização nas quatro décadas anteriores e entraram em um processo de desindustrialização (re)primarização de sua pauta de exportação.
A abordagem “novo-desenvolvimentista” (de um grupo economistas constituído desde início deste século) é uma tentativa de explicar em termos teóricos ao mesmo tempo a experiência do Leste Asiático e a interrupção do processo de desenvolvimento na América Latina a partir dos anos 1980.
Situo brevemente alguns pontos em comum dessa experiência asiática: 1) A importância da centralidade do papel do Estado nacional na coordenação e elaboração das políticas industriais como meios de execução das estratégias nacionais de desenvolvimento; 2) A formação de conglomerados empresariais estatais e privados em conexão com sistemas financeiros nacionais; 3) A formação de burocracias com alto grau de instrução comprometidas com o projeto nacional; 4) O papel fundamental do Estado e dos bancos públicos de desenvolvimento no enfrentamento do problema do “financiamento do desenvolvimento”.
Estratégia do desenvolvimento:
1) Exportação orientada para industrialização; 2) A importância da adoção de juros baixos; 3) A centralidade da taxa de câmbio competitiva para garantir o desenvolvimento econômico; 4) As entradas e saídas do capital não foram deixados ao sabor do mercado, mas controlados; 5) Taxas de juros pagas pelo Estado foram mantidas abaixo da taxa de crescimento, não deixando ao talante do mercado, mantendo o controle da dívida.
A orientação e a estratégia do desenvolvimento estão essencialmente sob a condução nacional do Estado, numa clara mostra de manutenção da independência econômica. Portanto, caminho e estratégia completamente incompatíveis com as aplicadas no Brasil.
III – O PENSAMENTO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISTA TEM SUA ATUALIDADE NO BRASIL, e precisa ser recuperado e aplicado na contemporaneidade.
A alternativa das forças de oposição mais consequentes e progressistas está hoje no confronto com a ordem dominante, galvanizada por forças de extrema direita, conservadoras e fascistizantes.
Contudo, as respostas imediatas e emergenciais não devem se esgotar apenas em travar a justa luta pela vida, pela democracia, pelo emprego e pela retomada do crescimento econômico. Seguem adiante, elas vão além da pós-pandemia e já devem se relacionar com um PROJETO de longo prazo para nosso país.
Portanto, a questão é: qual a alternativa que supere a crise estrutural e retome o desenvolvimento de modo consistente no Brasil. Ou seja, como recuperar a experiência histórica no enfrentamento da dependência, nas condições atuais. Sobretudo, em um país de extensão continental, com vasto recurso material, variados e extensos biomas, contando com capacitado corpo de cientistas e técnicos e grande população economicamente ativa.
Desde 2008, faz parte do Programa do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a recuperação, elaboração e atualização do ideário nacional-desenvolvimentista, consignado na proposta e na defesa de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento (NPND). Este Projeto é compreendido no Programa como o caminho brasileiro para o socialismo.
A totalidade do Programa, a sua síntese consiste na divisa: “O fortalecimento da Nação é o caminho, o Socialismo é o Rumo”. Portanto, o caráter do Programa, seu objetivo maior é a transição do capitalismo ao socialismo nas condições do Brasil e do mundo contemporâneo.
No entanto, diante da realidade concreta do curso histórico brasileiro e da ordem mundial em curso, não há passagem direta do capitalismo ao socialismo. O nosso Programa assinala que o “desafio da contemporaneidade” para os países submetidos de forma dependente na divisão internacional do trabalho (“países em via de desenvolvimento”) é a construção e aplicação de um projeto nacional de novo desenvolvimentismo.
Desse modo, o meio, o caminho para alcançar esse objetivo maior em nosso país consiste no delineamento e execução de um hodierno projeto nacional de desenvolvimento, ou seja, a luta pela escolha autônoma do seu próprio caminho de desenvolvimento. Neste Projeto ocupa uma centralidade a solução da questão NACIONAL, sendo esta, um pressuposto para o próprio desenvolvimento nacional, avanço da democracia e do progresso social.
Por quê? Somos uma nação na periferia (ou semiperiferia) do sistema internacional, submetida à dominação da hegemonia imperialista na forma de neocolonialismo financeiro-econômico-tecnológico-cultural; e que impõe sua ordem econômica neoliberal, que tem seu apoio em forças dominantes internas. É preciso tanto se livrar dessa ampla dominação sobre a nação, que agrava a dependência, quanto é necessário alcançar o desenvolvimento pleno e desimpedir o avanço da democracia e do progresso social.
Vejam o que asseverou o eminente cientista Nelson Werneck Sodré: “a conclusão da construção da nação brasileira é uma etapa insubstituível para a construção do socialismo no país”.
E acrescento. Não basta o desenvolvimento das forças produtivas, para alcançar de fato a independência plena e a condução nacional do projeto. É preciso a mudança da ordem política, econômica, social e cultural. Crise estrutural exige mudança estrutural.
Por isso, para esse projeto se tornar consequente, independente, soberano e autônomo, é impossível se manter indefinidamente nos marcos do capitalismo, sobretudo do capitalismo dependente, periférico. Outra transição, a transição socialista é necessária.
Sem dar esse passo histórico, o Brasil não sai do círculo vicioso estrutural da dependência, com a marca neocolonial contemporânea. Essa é a essência estratégica do Programa defendido pelo PCdoB. Em função disso assume um lugar primordial a recuperação, atualização e elaboração do ideário nacional-desenvolvimentista.
*Síntese da intervenção de Renato Rabelo, presidente da Fundação Maurício Grabois, no colóquio sobre o significado da Revolução de 1930.
NOTAS
A Intervenção teve como referências:
Estudos e dados sobre novo projeto nacional de desenvolvimento da Fundação Mauricio Grabois.
Pensamento Nacional-desenvolvimentista, organizado por Nilson Araújo, para a Cátedra Claudio Campos da Fundação Mauricio Grabois.
Estratégias novo-desenvolvimentistas: China e Creia do Sul, Bresser Pereira, Elias Jabbour e L. F. de Paula. Revista Princípios 159 JUL/OUT 2020.