Ramsey Clark teve a crença inabalável de que os direitos humanos significavam o direito à paz, igualdade e justiça social e econômica.

O ex-ministro da Justiça norte-americano Ramsey Clark, que apoiou o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e foi uma voz notável contra a intervenção imperial, inclusive tendo feito parte das equipes de defesa dos ex-presidentes e prisioneiros de guerra Saddam Hussein (Iraque) e Slobodan Milosevic (Iugoslávia), morreu aos 93 anos em sua casa em Manhattan, acompanhado dos familiares.

O presidente cubano Miguel Diaz-Canel saudou a memória de um “homem honesto e solidário” que esteve ao lado de Cuba “em batalhas cruciais e denunciou as grandes injustiças cometidas pelo seu país no mundo”.

Ramsey foi homenageado pela ANSWER Coalition – organização contra a guerra e o racismo em cuja fundação ele teve um papel fundamental nos dias que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro -, em mensagem escrita por sua companheira de entidade, Gloria La Riva.

“A marca registrada da defesa de Ramsey Clark era sua crença inabalável de que os direitos humanos significavam o direito à paz, igualdade e justiça social e econômica. Ele fez mais do que defender, agiu de acordo com suas crenças”.

Como ela salientou, ao deixar o cargo de ministro com a eleição de Nixon, “Ramsey se tornou um dos principais defensores das vítimas da política externa dos Estados Unidos. Ele viajaria para mais de 120 países para expressar solidariedade aos povos oprimidos, da Palestina à Índia e à África do Sul. Ele era um oponente permanente de todos os bombardeios, sanções e ocupações dos Estados Unidos e buscava congraçar o povo dos Estados Unidos e do mundo inteiro”.

“Quer fosse desafiando as bombas dos EUA no Vietnã do Norte em 1972 ou contando os corpos nos necrotérios do Panamá e no bairro bombardeado de El Chorrillo para calcular o verdadeiro número de vítimas na invasão dos EUA em 1989, Ramsey arriscou sua vida inúmeras vezes para trazer de volta a verdade da agressão dos EUA.

Vietnã

Em sua primeira viagem ao Vietnã, Ramsey percorreu diques e comportas no Norte que estavam sob as bombas dos B-52 e entrevistou soldados norte-americanos que eram prisioneiros de guerra, cujas condições de detenção elogiou.

Na volta, ao ser questionado sobre se ele pensava que o bombardeio de alvos civis pelos EUA era deliberado, ele respondeu: “Estamos bombardeando essa terra pobre. Estamos atingindo hospitais. Não posso dizer se é deliberado. Mas para as pessoas que estão sendo atingidas, não faz muita diferença, faz?”

Quando a guerra acabou com a unificação do Vietnã e a vitória total em 1975, Ramsey denunciou as sanções econômicas dos EUA como uma punição deliberada ao país, por negarem sua capacidade de se recuperar da devastação e causarem a morte de milhares de pessoas. As sanções só foram encerradas em 1994, 19 anos depois.

Contra o assalto ao iraque

Em 1991, pouco depois do início do bombardeio do Iraque sob Bush Pai, Ramsey Clark liderou uma equipe que incluía um cineasta, que viajou 2 mil milhas por todo o país, com as bombas caindo dia e noite. O filme de Jon Alpert, “Nowhere to Hide”, foi a única filmagem sem censura do bombardeio de 43 dias.

O vídeo mostrava Ramsey fazendo um tour por aldeias e hospitais bombardeados no filme. A única fábrica de leite em pó para para bebês foi destruída por bombas norte-americanas. Toda a infraestrutura do Iraque – estações de tratamento de água e esgoto, rede elétrica, aves e gado – tudo desapareceu 24 horas após o bombardeio.

O livro de Ramsey sobre a Guerra do Golfo, “The Fire This Time”, detalha a destruição da infraestrutura civil do Iraque e a morte de 250 mil pessoas sob as bombas.

Nos 12 anos seguintes, o bloqueio total dos EUA matou mais de 1,5 milhão de iraquianos, até a invasão e ocupação de 2003.

Ele viajou várias vezes ao Iraque para documentar os horrores dos hospitais sem medicamentos, porque os EUA proibiam até a entrada de aspirina. Bebês morriam de infecções tratáveis, e idosos e jovens, devido à exposição ao urânio empobrecido das bombas norte-americanas. A viagem de 1997 ficou documentada no filme de La Riva, “Genocídio por Sanções: O Caso do Iraque”.

Solidariedade à Iugoslávia

Em 1999, quando o governo Clinton desencadeou a agressão à Iugoslávia, no quinto dia da guerra Ramsey Clark chegou a Belgrado, para denunciar a carnificina e manifestar sua solidariedade ao povo iugoslavo. Antes, ele liderara manifestações nos EUA contra a guerra.

Foram 73 dias de bombardeio – pontes, escolas, asilos de idosos, estação de tevê e até a embaixada da China -, despejando 28.000 bombas e mísseis no pequeno país da Europa central.

Quando a contra-revolução organizada pela CIA varreu a Iugoslávia no final de junho de 2001 e Milosevic foi derrubado e depois entregue aos algozes da Otan, Ramsey voltou a Belgrado e se tornou um dos principais integrantes da equipe de defesa do líder iugoslavo.

No início do julgamento contra Milosevic em Haia, diante da absoluta tendenciosidade dos juízes e promotores, Ramsey afirmou que “a igualdade é a mãe da justiça. Sem igualdade na lei, não há justiça ” .

Ramsey esteve presente ao funeral de Milosevic em 2006. Figuras como ele e Saddam Hussein eram “ guerreiros corajosos o suficiente para enfrentar grandes potências ” , dissera então

Clark continuou a enfatizar que atuou como guardião dos direitos humanos internacionais.

Ramsey era, ainda, um defensor fervoroso dos direitos do povo palestino e uma figura amada em todo o mundo árabe. Ele era o advogado da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) nos Estados Unidos e em muitas arenas jurídicas internacionais.

Amigo de Cuba

Ramsey esteve muitas vezes em Cuba e sempre elogiou suas realizações sociais. Deu apoio ativo à “Caravana da Amizade” dos Pastores pela Paz enquanto ela cruzava o caminho para o México em 1993. Pediu o retorno imediato de Elián González, de seis anos de idade.

Sobre a detenção injusta dos Cinco Cubanos nos Estados Unidos, ele disse que, se fosse procurador-geral, teria rejeitado as acusações. Por seus anos de apoio a Cuba e sua oposição ao bloqueio genocida dos Estados Unidos, ele foi agraciado com a Medalha da Solidariedade em 2012, acompanhado pelas mães dos Cinco.

Ramsey fez também várias viagens à República Popular Democrática da Coreia bem como à Coreia do Sul, sempre a favor de um tratado de paz definitivo.

Em 2001, ele foi o orador principal e jurista principal do Tribunal Internacional sobre Crimes de Guerra dos Estados Unidos na Guerra da Coréia. A última viagem de Ramsey à Coreia do Norte foi em julho de 2013 para marcar o 60º aniversário do Acordo de Armistício, que encerrou as hostilidades militares na Coreia em 1953.

Contra o apartheid a Jim Crow

Como enfatizou La Riva, Ramsey teve um enorme papel na luta contra o apartheid e pelos direitos civis nos EUA.

“Como assistente e posteriormente procurador-geral dos Estados Unidos, Ramsey Clark ajudou a redigir os dois históricos Atos de Direitos Civis dos Estados Unidos de 1964 e 1968, o Voting Rights Act de 1965, e foi o principal aplicador das ordens federais de dessegregação. Acompanhando pessoalmente Martin Luther King Jr. e James Meredith em face do terror racista do Alabama ao Mississippi, Ramsey era um adversário fervoroso do racismo. No Departamento de Justiça, ele frequentemente confrontou políticas repressivas dentro do próprio governo, do Congresso ao FBI e J. Edgar Hoover”.

Ramsey foi o principal executor local da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1954, Brown v. Board of Education , contra os Estados da Geórgia, Carolina do Sul e Alabama. Eles estavam protelando ou se recusando a cancelar a segregação nas escolas públicas oito anos após a ordem judicial. Ramsey trabalhou lá diretamente em 1962 e 1963 para supervisionar a implementação da decisão.

Em 1965, o presidente Lyndon Johnson nomeou Ramsey como procurador-geral adjunto quando os negros começaram a marchar de Selma a Montgomery, Alabama, pelo direito de votar, eles foram brutalmente atacados por soldados estaduais em 7 e 9 de março e enfrentaram o terror do KKK e do Conselho de Cidadãos Brancos.

Enquanto milhares de pessoas se reuniam para uma terceira ação pacífica que começou em 21 de março, Ramsey foi enviado para tentar garantir a proteção dos manifestantes, sob a presença federal da Guarda Nacional do Alabama.

Em livro que publicou após deixar o cargo de ministro, Ramsey relatou que o chefe do FBI J. Edgard Hoover “solicitou repetidamente” que ele autorizasse as escutas telefônicas de Martin Luther King, que recusou. “O último desses pedidos veio dois dias antes do assassinato do Dr. King.”

“Primeiros entre iguais”

Ramsey foi ainda advogado de apelação do prisioneiro político nativo Leonard Peltier, que hoje ainda está na prisão federal dos Estados Unidos 45 anos depois de ser atacado pelo FBI. Em uma manifestação coletiva em San Francisco de quase 1.000 pessoas em 16 de novembro de 1997, por Leonard, Ramsey disse a uma multidão animada:

“Todo mundo sabe, e acima de tudo os promotores e o FBI, que Leonard Peltier é inocente do crime pelo qual ele foi condenado. … É essencial que libertemos Leonard Peltier e, ao fazê-lo, reconheçamos os indígenas e as indígenas como os primeiros, os primeiros entre iguais. Até que Leonard esteja livre, todos corremos risco. Ele representa se o povo americano tem a vontade de enfrentar os poderosos interesses econômicos que controlam a mídia e o complexo militar-industrial, que estão devastando os pobres em todo o planeta”.