Putin recepcionou Merkel no Kremlin na última visita da chanceler alemã no cargo

Em sua última visita oficial a Moscou antes de deixar o cargo em setembro, a primeira-ministra alemã, Angela Merkel, disse ao presidente da Rússia, Vladimir Putin – que a recebeu com flores -, que o diálogo entre os dois países deve ser mantido aberto.

“Mesmo que tenhamos profundas desavenças, conversamos sempre um com o outro, e isso deve permanecer assim”, disse Merkel a Putin. “Temos muito a discutir”, ela reiterou a repórteres antes da reunião no Kremlin.

“Nossas negociações hoje com a Chanceler Federal [primeira-ministra] foram tradicionalmente conduzidas em uma atmosfera construtiva e oficial”, assinalou Putin.

O presidente russo observou que durante a reunião foram examinadas as perspectivas para o desenvolvimento das relações russo-alemãs, bem como uma troca de pontos de vista sobre uma ampla gama de questões.

“Nem sempre as nossas opiniões coincidiram, mas o diálogo foi sincero e construtivo e visou encontrar compromissos”, sublinhou.

Ao mesmo tempo, Putin enfatizou o “caráter especial” da reunião no contexto da retirada antecipada de Merkel do cargo de primeira-ministra após as próximas eleições parlamentares na Alemanha. “Sempre ficaremos felizes em receber Merkel na Rússia como uma convidada esperada”, disse ele.

Putin destacou ainda que o comércio entre a Rússia e a Alemanha dobrou durante o primeiro semestre deste ano. “Apesar do fato de que em 2020 observamos uma queda bastante grave [devido à pandemia], o intercâmbio comercial quase dobrou durante os primeiros seis meses” deste ano, disse o presidente

Ele acrescentou que a Alemanha é um dos principais parceiros da Rússia “na Europa e em todo o mundo”. E apontou que a vinda de Merkel “não é apenas uma visita de despedida”, mas também “séria e profissional”, com muitos assuntos pendentes para discutir – como a próxima conclusão do gasoduto russo-alemão Nord Stream 2, o agravamento da crise na Ucrânia e a tomada do poder no Afeganistão pelo Talibã.

Putin informou que só faltam 15 quilômetros para concluir o Nord Stream 2, projeto conjunto que a Alemanha sustentou, apesar de toda a pressão contrária norte-americana, inclusive sanções contra empresas e navios russos e ameaças a empresas alemãs.

O presidente russo destacou que as acusações de que se trata de um projeto político são uma farsa “ou uma tentativa de confundir alguém”. Ele destacou que o Nord Stream 2 “é 2.000 quilômetros mais curto do que o trânsito pela Ucrânia e é um sistema moderno e ecologicamente limpo”.

O Nord Stream 2 é um projeto conjunto da empresa russa Gazprom mais cinco parceiros europeus, que irá transportar de até 55 bilhões de metros cúbicos de gás natural por ano da Rússia para a Alemanha, passando pelo Mar Báltico.

“Preservar o estado afegão”

Sobre o Afeganistão, o presidente russo conclamou a ações para evitar a desintegração do Estado afegão. “O Talibã controla hoje em dia praticamente todo o território do país, incluindo a capital. Essa é a realidade. Devemos, precisamente, agir a partir dela.”

Diante do colapso da ocupação liderada por Washington, mas na qual também Berlim teve uma importante participação, Putin alertou que os países ocidentais precisam parar de querer enfiar goela abaixo dos outros povos seus preconceitos e interesses.

“É necessário parar com esse policiamento irresponsável e a imposição de seus próprios valores sobre os outros, assim como as tentativas de construir uma democracia em outros países baseada em modelos externos, sem levar em conta questões históricas, étnicas e religiosas, e ignorar por completo as tradições dos outros povos”, afirmou o líder russo.

Merkel, que admitiu certa surpresa com a velocidade com que os fatos se deram no Afeganistão, solicitou a Putin que ajudasse a convencer os novos líderes afegãos a permitirem a saída dos cidadãos que colaboraram com as forças alemãs. A Rússia sediou várias reuniões interafegãs, em busca de um acordo que trouxesse a paz e a segurança.

“Teremos agora que conversar com o Talibã […] e tentar salvar aqueles cujas vidas estão ameaçadas, para que possam deixar o país”, insistiu Merkel. “Os talibãs receberam mais apoio do que gostaríamos”, reconheceu, acrescentando que “erramos ao avaliar a situação”.

Ucrânia

Quanto à Ucrânia, Putin advertiu Merkel sobre o agravamento da situação, em razão da recusa do governo de Kiev de cumprir os Acordos de Minsk, o que se expressa em especial, agora, em um novo projeto de lei que contraria tudo que foi assinado.

“Se esta lei for aprovada – leia-o, não é um documento confidencial, provavelmente está disponível online – significa que a Ucrânia irá, de fato, retirar-se do processo de Minsk unilateralmente. Porque não apenas certas coisas contradizem os acordos de Minsk, tudo aí contradiz os acordos de Minsk. Isso significará a retirada de fato da Ucrânia desses acordos”, alertou Putin, pedindo a Merkel que irá visitar Kiev a usar “um pouco da sua influência” e exercer alguma pressão para que essa lei não seja aprovada.

O presidente russo frisou que compartilha da opinião da primeira-ministra alemã sobre a importância dos acordos de Minsk e do trabalho no formato da Normandia (assim chamado após reunião dos países Russia, Ucrânia, França e Alemanha, durante as comemorações de 20014 do desembarque dos Aliados na Normandia durante a Segunda Guerra Mundial).

“Não temos outra ferramenta para alcançar a paz e, creio eu, isso deve ser tratado com cuidado e respeito, apesar de ainda não termos alcançado os objetivos definitivos da solução”, disse.

Putin destacou a contribuição de Merkel para a questão e expressou sua confiança em continuar o diálogo com a Alemanha sobre o assunto.

Merkel alertou que as negociações sobre a situação no leste da Ucrânia estagnaram. “O formato da Normandia é o único formato político que temos para lidar com questões polêmicas. No momento, o processo continua paralisado”, ela disse na entrevista coletiva.

Ela chamou a dar “um novo impulso” às consultas sob o formato da Normandia, que inclui Alemanha, França, Rússia e Ucrânia. “Qualquer pequeno avanço pode ser decisivo”, assinalou, acrescentando que é preciso evitar que as negociações cheguem a um beco sem saída.

Putin garantiu a Merkel que a Rússia cumprirá seus compromissos sobre o trânsito de gás pela Ucrânia. “Eu assegurei à chanceler federal que cumpriremos integralmente nossas obrigações sob o contrato de trânsito; mesmo depois que ela deixar seu posto como chanceler federal”, disse o presidente russo.

Ele acrescentou que a Rússia está disposta a transitar o gás pela Ucrânia após 2024, mas para isso precisa de detalhes sobre as futuras aquisições do combustível pela União Europeia. “Não podemos assinar um contrato de trânsito até que tenhamos contratos de fornecimento para nossos clientes na Europa”, disse ele, devolvendo a bola para o campo europeu.

Em paralelo à visita de Merkel a Putin, o governo Biden anunciou uma nova rodada de sanções contra navios e empresas russas que participam da construção, quase terminada, do Nord Stream 2. Sanções adicionais, aliás, tão inúteis quanto as anteriores. Mais poluente e de logística muito mais cara, o gás de fracking made in USA segue na pauta de ameaças dos EUA aos países concorrentes, sempre em nome da “segurança energética” europeia.

As novas sanções se aplicam às empresas russas Nobility e Constanta, bem como ao navio de abastecimento Ostap Sheremeta, segundo a Bloomberg, citando fontes do Departamento de Estado.

Em maio, Biden concedeu isenção de sanções à corporação Nord Stream 2 e seu executivo-chefe alemão, explicando que o gasoduto estava quase completo e que esforços inúteis para bloqueá-lo não valiam a pena colocar em risco a aliança com Berlim.

Na carta ao Congresso dos EUA enviada na sexta-feira, Biden argumentou que “certos projetos de gasodutos de energia russos” expandiriam a influência de Moscou sobre os recursos de energia da UE e enfraqueceriam “a Ucrânia e o flanco oriental da OTAN e dos países da UE”, ameaçando assim “a segurança nacional, a política externa, e economia dos Estados Unidos.”

Merkel, em sua última reunião oficial com Putin, retomou a questão do blogueiro diplomado em um curso anticorrupção de três meses nos EUA, Alexei Navalny, e que nas horas vagas é neonazista e anti-muçulmanos, insistindo no “caso do envenenamento” e pleiteando a libertação dele.

Putin retrucou que Navalny não estava preso por manifestação política e, sim, por fraude contra duas empresas, uma delas francesa, por decisão de um tribunal. Até agora, a Alemanha jamais apresentou qualquer prova do envenenamento de que acusa Moscou. Navalny foi salvo por um pronto-socorro russo na Sibéria, após passar mal, e pouso de emergência do avião em que viajava.