Professor Adolph Reed na Universidade da Pensilvânia | Foto: Eric Sucar

O cancelamento em Nova York da palestra que um dos principais acadêmicos negros dos Estados Unidos, o professor emérito Adolph Reed, de 73 anos, faria em Nova York, a convite dos “Socialistas Democráticos da América” (SDA), causou uma enorme polêmica nos Estados Unidos, que acabou estampada no New York Times. O SDA é agrupamento de progressistas dentro do Partido Democrata que apoiou a campanha do senador Bernie Sanders e ajudou a eleger parlamentares como Alexandria Ocasio-Cortez.

Como registrou em título o NYT, “Um Acadêmico Marxista Negro Queria Falar Sobre Raça. Gerou Fúria”. Segundo o jornal, o cancelamento refletiu um intenso debate em curso na esquerda nos EUA se o racismo é “o problema primário” no país hoje ou a “consequência de um sistema que oprime todas as pessoas pobres”.

Em suma, a palestra foi barrada porque o debatedor defende que a principal questão é a desigualdade gritante. O cancelamento foi exigido, e conseguido, por um setor dos SDA, composto pelos grupos Afrosocialistas e Caucus Socialista de Cor.

Reed é conhecido por se opor à chamada pauta identitária – que no caso dos negros norte-americanos coloca a questão racial acima de tudo – e por ser defensor da luta mais ampla, que una pobres e oprimidos tanto brancos como negros, como latinos.

Ainda mais numa situação em que a exacerbada desigualdade nos EUA atinge contornos dramáticos, sob a pandemia e seus corolários, devastação da economia, desemprego em massa e milhões à beira do despejo. E que acontece depois de três décadas de desindustrialização e precarização e sua outra face, o ultraliberalismo e a especulação desbragada.

Como situara o NYT, Reed tem a convicção – “hoje polêmica”, acrescenta o jornal – “de que a esquerda está muito focada na raça e não o suficiente na classe. Vitórias duradouras foram alcançadas, ele acreditava, quando a classe trabalhadora e os pobres de todas as raças lutaram ombro a ombro por seus direitos”.

Marcha contra o racismo no Brooklin, NY, reúne negros, latinos e brancos- foto – Scott Heinz

Reed, que já fez outras palestras para os integrantes dos SDA, pretendia desta vez alertar que, na questão da luta pelo direito universal à saúde em curso nos EUA, colocar ênfase exagerada no fato de que os negros são desproporcionalmente afetados pelo coronavírus, quando são 5 milhões os norte-americanos infectados e 170 mil mortos, acaba aliviando a incúria de Trump na epidemia, e portanto deixando de cumprir tudo que é possível em matéria de unificação de forças para arrancar uma resposta efetiva.

Como costuma dizer o senador Bernie Sanders, os EUA são a única nação industrializada que não garante o direito universal da saúde a seus habitantes – e gasta com saúde o dobro dos demais.

Se a ênfase tem de estar na “questão racial”, tida como o “pecado original” da América, ou na mais ampla unidade em torno das necessidades comuns para isolar os setores mais reacionários e avançar, é uma questão que já se colocou – e foi resolvida – em outros episódios de eclosão da luta pelos direitos civis.

Não chega a ser propriamente surpresa que a nova e generosa geração de lutadores pela igualdade – agora vista nas ruas de costa a costa – tenha que, por si mesma, redescobrir a questão, desenvolvê-la e aprofundá-la.

Mas é preocupante que setores que se consideram progressistas, em meio a um intenso enfrentamento com um governo obscurantista e cheirando a fascista, considerem legítimo impedir a discussão e apelem para a censura de quem pensa diferente – pois foi disso que se tratou.

“Deus tenha misericórdia, Adolph é o maior teórico democrático de sua geração”, disse Cornel West, professor de filosofia da Universidade de Harvard, socialista e respeitadíssimo acadêmico, ao New York Times.

“Ele assumiu algumas posições muito impopulares em relação à política de identidade, mas tem um histórico de meio século”. “Se você desistir da discussão, seu movimento se tornará estreito”, acrescentou.

Uma preocupação adequada, já que jamais foi tão grande o apoio da juventude branca – que é quem está principalmente à frente dessa luta em cidades como Portland, por exemplo – contra o racismo e a opressão racial.

Concordando com West quanto às credenciais de Reed, o NYT o apresenta como “um filho do segregado Sul, natural de Nova Orleans, que organizou negros pobres e manifestantes antiguerra no final dos anos 1960 e se tornou um importante estudioso socialista em um trio de universidades importantes”.

O que torna ainda mais deplorável o que o NYT relata: “A ira [desses adeptos da pauta identitária] cresceu. Como poderíamos convidar para falar, perguntaram os membros, um homem que minimiza o racismo em uma época de peste e protesto?”.

O show de sectarismo prossegue, com os ‘afrosocialistas’ taxando Reed de “reacionário, reducionista de classe e, na melhor das hipóteses, surdo.”

Soa estranho que, num tempo em que progressistas, moderados, conservadores e até muito conservadores consideram a intolerância cevada pelo regime Trump um problema nacional, setores que se dizem progressistas adiram à intolerância.

O NYT registra como no final do século 19 o socialista Eugene Debs, que concorreu à presidência cinco vezes, foi vigoroso em sua insistência de que seu partido “defendesse a igualdade social”, mas só de passagem se refere a que “questões semelhantes” reemergiram durante o movimento dos direitos civis na década de 1960.

Com todo o horrendo peso que a questão racial não resolvida tem sobre a vida de milhões de afroamericanos, o que de tempos em tempos explode em razão de algum episódio de agravamento da situação social ou da discriminação, o maior líder da luta pelos direitos civis dos anos 1960, Martin Luther King, considerou que, para a luta contra a opressão racial avançar, não era possível continuar em silêncio sobre a Guerra do Vietnã, cuja sangria de recursos esvaziava qualquer perspectiva concreta de melhoria das condições de vida dos negros, num país em que os negros não podiam estudar na mesma escola ou morar no mesmo bairro que os brancos, mas podiam morrer lado a lado em terra estrangeira invadida, onde eram jogados para oprimir uma nação de camponeses.

Mais, ele pôs em ação a Marcha do Povo Pobre, com a percepção de que, para avançar, era preciso unir os mais excluídos e encontrar interesses comuns, diante de um sistema brutal e de pilhagem dos muitos, em favor dos bancos, dos monopólios e da máquina de guerra.

Na época, registram seus biógrafos, dentro da cúpula de lideranças pelos direitos civis, não faltou quem achasse que essa ampliação e aproximação com os brancos pobres traria problemas, e Luther King inclusive foi hostilizado por alguns.

Exatamente um ano depois do discurso na Igreja de Riverdale, ele seria assassinado em Memphis, dois meses antes que Robert Kennedy fosse também abatido diante de todos em Los Angeles.

A matéria remete essa discussão aos tempos de agora. “A decisão de silenciar Reed veio enquanto os americanos debatiam o papel da raça e do racismo no policiamento, saúde, mídia e corporações. Frequentemente, são deixados de lado nesse discurso aqueles esquerdistas e liberais que argumentaram que há muito foco na raça e não o suficiente na classe em uma sociedade profundamente desigual”.

O NYT aponta que o debate é crucial na medida em que os ativistas percebem “uma oportunidade única em uma geração” de fazer progressos em questões que vão desde a violência policial até o encarceramento em massa, saúde e desigualdade. E que, como nota o jornal, “acontece quando o socialismo na América – há muito um movimento predominantemente branco – atrai adeptos mais jovens e diversos.”

O ponto de vista que “raça é a ferida primária da América” e que os negros, após séculos de escravidão e segregação sob as leis Jim Crow, “deveriam assumir a liderança em uma luta multirracial para desmantelá-la”, sem perder tempo com “busca de solidariedade de classe efêmera” – nas palavras do NYT – é exemplarmente esclarecido pela professora de Estudos Afroamericanos da Universidade de Princeton, Keeanga-Yamahtta Taylor.

“Adolph Reed e sua turma acreditam que, se falarmos demais sobre raça, alienaremos muitos e isso nos impedirá de construir um movimento. Não queremos isso; queremos fazer com que os brancos entendam como seu racismo distorceu fundamentalmente a vida dos negros”, insiste Taylor.

Como assinala o NYT, a visão contrária é sustentada por Reed e outros acadêmicos e ativistas respeitados, como o já citado West; os historiadores Bárbara Fields e Toure Reed – filho de Adolph Reed -; e o fundador da revista Jacobin, Bhaskar Sunkara.

Eles reconhecem a história brutal do racismo e escravidão na América, mas assinalam que “os problemas que agora atormentam a América – como desigualdade de riqueza, brutalidade policial e encarceramento em massa – afetam americanos negros e pardos, mas também um grande número de americanos da classe trabalhadora e brancos pobres”.

Como eles destacam, os movimentos progressistas mais poderosos “se enraízaram na luta por programas universais”.

Isso foi verdade para “as leis que capacitaram a organização do trabalho e estabeleceram programas de empregos em massa durante o New Deal”, e é verdade para “as lutas atuais por universidade pública gratuita, por salário mínimo mais alto, pela reformulação das forças policiais e por assistência médica universal”.

Esses programas – acrescentam – ajudariam desproporcionalmente negros, latinos e nativos americanos, que em média têm menos riqueza familiar e sofrem de problemas de saúde em taxas superiores às dos americanos brancos.

Debate que foi reacendido pela disseminação do vírus mortal e pela morte de George Floyd pela polícia em Minneapolis, registrou o NYT.

E que assumiu “um tom geracional”, à medida que o socialismo – na década de 1980, em grande parte, o reduto de esquerdistas envelhecidos – “agora atrai muitos jovens ansiosos por mudanças para organizações como os Socialistas Democratas da América, que existem desde os anos 1920″.

Como adendo, informa o NYT que “o socialismo agora é tão popular quanto o capitalismo entre as pessoas de 18 a 39 anos, de acordo com uma pesquisa Gallup no final do ano passado”. Ainda segundo o jornal, o SDA agora tem mais de 70 mil membros, com média de idade em torno dos 30 anos.

Taylor buscou defender a censura prévia, dizendo que Reed deveria saber que sua palestra “sobre o Covid-19 e os perigos da obsessão por disparidades raciais seriam vistas como ‘uma provocação’. Foi bastante incendiária”.

Sarcasticamente, Reed descreveu o veto à palestra dele como uma “tempestade em um pires”. Alguns na esquerda, disse ele, têm uma “objeção militante a pensar analiticamente”.

Talvez o que mova alguns desses seja a língua ferina de Reed sobre certos líderes democratas. Ele já escreveu que o presidente Bill Clinton e seus seguidores liberais mostraram uma “disposição para sacrificar os pobres” e descreveu o ex-vice-presidente Joe Biden como um homem cuja “misericórdia foi reservada para bancos e a indústria dos cartões de crédito.”

Reed e outros acadêmicos acreditam “que a esquerda muitas vezes se envolve em batalhas por símbolos raciais, de estátuas a linguagem, em vez de ficar de olho nas mudanças econômicas fundamentais”.

“Se eu dissesse a você: ‘Você está demitido, mas conseguimos mudar o nome de Yale para o nome de outra pessoa branca’, você me olharia como se eu fosse louco”, disse Sunkara, editor da Jacobin.

Para eles, o melhor é falar nas semelhanças. Embora haja uma grande diferença de riqueza entre americanos negros e brancos, os brancos pobres e da classe trabalhadora são notavelmente semelhantes aos negros pobres e da classe trabalhadora quando se trata de renda e riqueza, o que significa que possuem muito pouco de qualquer um dos dois.

“Os liberais usam a política de identidade e raça como uma forma de conter os apelos por políticas redistributivas”, observou Toure Reed, cujo livro “Rumo à liberdade: o caso contra o reducionismo racial” aborda esses assuntos.

No entanto, mesmo tendo tido prazer ultimamente, quando Nova Orleans removeu os memoriais confederados, ele relatou ao NYT preferir um simbolismo diferente.

Ele se lembra, quando menino, de viajar para pequenas cidades da Nova Inglaterra, caminhar por cemitérios e ver lápides cobertas de musgo marcando os túmulos de jovens brancos que morreram a serviço da União na Guerra Civil.

“Tive uma sensação calorosa ao ler aquelas lápides,‘ Fulano morreu para que todos os homens pudessem ser livres ’”, disse ele. “Havia algo tão comovente sobre isso.”

PROJETO 1619

Note-se que o New York Times não é propriamente uma parte isenta nesse debate, já que seu “Projeto 1619” – uma edição especial de 100 páginas de sua revista de domingo nos 400 anos da chegada dos primeiros 20 escravos na então colônia britânica da Virgínia – busca apresentar e reinterpretar a história norte-americana a partir do conflito racial e foi divulgada com toda a pompa e suporte publicitário.

Nessa “reinterpretação”, segundo os críticos, os autores menosprezam o significado da primeira revolução americana, a da independência – George Washington “era senhor de escravos”.

É omitido que, para o movimento antiescravagista, a Declaração de Independência de Thomas Jefferson (“todos os homens nascem iguais”) era sua “pedra de toque, a sagrada escritura”.

O mesmo se repete quanto ao papel de Lincoln e da Segunda Revolução, a Guerra Civil, em que centenas de milhares de brancos morreram, e mais de dois milhões lutaram, para acabar com a escravidão e manter a União.

Os autores não vêem Lincoln como “o Grande Emancipador”- como os escravos libertos o chamavam na década de 1860 – mas como um racista que considerava “os negros um obstáculo à unidade nacional”.

De acordo com o Projeto, “os negros americanos lutaram sozinhos” para “fazer da América uma democracia”. Também é ignorado o caráter interracial do movimento abolicionista.

Nessa concepção, tudo se resume a que a escravidão foi o único “pecado original” dos Estados Unidos e nada mudou: a escravidão foi simplesmente substituída pela segregação de Jim Crow, e isso, por sua vez, deu lugar à condição permanente de racismo que é o destino inevitável de ser um “americano branco” e seu “privilégio branco”.

Coincidentemente, nesse relato Martin Luther King vira só uma foto em 100 páginas e, de Malcom X e dos Panteras negras, nem sinal.

Há quem, com certo cinismo, ache que o ‘Projeto 1619’ apenas busca dar uma fachada rebuscada à tática democrata de suplantar os republicanos nas eleições através de priorizar as ‘identidades’ pessoais – ou seja, gênero, preferência sexual, etnia e, acima de tudo, raça.

Em especial, trazer de volta às urnas o eleitorado negro, cuja insuficiente presença, em 2016, possibilitou ao demagogo Trump ganhar por pequena margem em Estados que a desindustrialização devastara e, portanto, levar a presidência no colégio eleitoral .