A renúncia do primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi foi aceita pelo parlamento iraquiano no domingo (1º) depois de dois meses de manifestações contra a corrupção, o desemprego, os apagões e o colaboracionismo. O afastamento de Mahdi fora pedido também pela principal autoridade religiosa xiita, o aiatolá Ali Al Sistani, depois de 400 mortos nos protestos – a maioria jovens – e 15 mil feridos.

Funerais das numerosas vítimas se tornaram em novas manifestações pelo fim do regime instaurado sob a ocupação norte-americana e caracterizado pela divisão “sectária” do assalto à renda do petróleo, enquanto a maioria dos iraquianos vive na miséria.

É duvidoso que a renúncia detenha os protestos. Sob o tortuoso sistema instaurado pelos marines, o primeiro-ministro tem de ser de um dos três partidos oficiais xiitas, que estão sendo repudiados nas ruas como ladrões e colaboracionistas. O presidente, “curdo” e o vice, “sunita” – desde que corruptos e colaboracionistas.

É este sistema de pilhagem sob roupagem “sectária” que está implodindo no Iraque.

Mahdi continua interino e os partidos xiitas têm 15 dias para chegar a um nome de consenso. No ano passado as negociações pelo governo duraram meses. Alguém acredita que os manifestantes queiram esperar tanto?

Dos funerais, ecoou a nova palavra de ordem dos protestos: “depois de Mahdi, fora os políticos corruptos e fora o Irã”.

Em Mossul, segunda maior cidade iraquiana, de maioria de iraquianos de fé sunita, centenas de estudantes marcharam, de luto, no domingo, em homenagem aos mártires. Na província de Saladino, foi declarado luto de três dias.

O que precipitou a renúncia de Mahdi foi a sanguinária repressão aos protestos na quinta-feira, com 46 manifestantes mortos em Nassíria, 18 em Najaf e quatro em Bagdá. No dia seguinte, as forças de segurança assassinaram mais 21. Represália ao cerco e ateamento de fogo ao consulado do Irã por um grupo não identificado em Najaf.

As mortes continuaram no domingo: um em Bagdá e mais dois em Nassiria, que não resistiram aos ferimentos sofridos em atos políticos anteriores.

Em Hila, Kut, Amara, Kerala e Basra, a maioria dos prédios públicos e escolas foram fechados. Acessos a instalações e campos de petróleo foram bloqueados em algumas áreas e até portos.

No sermão televisionado de sexta-feira, o aiatolá Sistani convocou as forças do governo a pararem de matar manifestantes, pediu a estes que rejeitassem “toda a violência” e advertiru contra “a volta da ditadura”.

Após enfatizar que Mahdi “parece incapaz de lidar com os eventos dos últimos dois meses”, o líder religioso recomendou ao parlamento que reconsiderasse suas escolhas e fizesse “o que é do interesse do Iraque, para preservar a vida de seus filhos e evitar que o país afunde na violência, caos e destruição”.

Mahdi havia tentado escapar desse desfecho ao demitir o comandante militar de Nassíria que ele mesmo nomeara horas antes, após a repulsa popular diante dos 46 cadáveres de civis desarmados. Também tiveram de se demitirem o governador local e o chefe de polícia.

Sistani também pediu aos manifestantes que evitassem atos como o cerco à representação diplomática iraniana.

“Nós ficaremos nas ruas até que todo o governo se vá e todo o resto dos políticos corruptos”, disse à agência de notícias Reuters Mustafa Hafidh, manifestante na Praça Tahrir de Bagdá, assim que a notícia se espalhou em Bagdá. “A renúncia de Mahdi é apenas o começo”, acrescentou.

Os manifestantes comemoraram efusivamente, mas prometem não arredar pé até que vá ao chão o regime instalado pelas tropas invasoras norte-americanas e, com ele, a ‘constituição’ redigida em Washington para dividir os iraquianos, gerando como subproduto essa corrupção de cariz “sectário” regada a royalties do petróleo.

Enquanto a infraestrutura permanece sucateada e faltam água, luz e serviços básicos. E com desemprego de 40% entre os jovens, que são 60% da população.

Quando os protestos irromperam, eram centralmente contra a corrupção, os apagões e o desemprego, mas dois meses de brutalidade policial e desmandos empurraram os jovens para o “queremos que o regime caia” e a restauração plena da soberania iraquiana.

Na quinta-feira, em Nassíria milhares de pessoas desafiaram o toque de recolher e marcharam em uma procissão fúnebre para enterrar os mortos, apesar do toque de recolher.

As tropas de choque tentaram desalojar os jovens de duas pontes que já ocupavam há três dias. Uma delegacia de polícia foi incinerada, a segunda em dois dias. Para dificultar a chegada de reforços para a repressão, combatentes tribais bloquearam a entrada que liga a cidade a Bagdá.

O fato de que dezesseis anos após a invasão e o assassinato do presidente Sadam Hussein o Iraque, um dos países mais ricos em petróleo do mundo, não consiga pagar salários dignos, proporcionar empregos ou pelo menos ter um sistema elétrico que funcione, é expressão da devastação trazida pela guerra de W. Bush, a do “sangue por petróleo” e da mentira das “armas de destruição em massa”.

A invasão/ocupação matou mais de um milhão de iraquianos, destruiu o que era o mais avançado sistema de saúde e educação do Oriente Médio e uma infraestrutura que fora possível pela nacionalização do petróleo e colocação da renda do petróleo a serviço do povo e do desenvolvimento.

Em última instância, o que se vê agora é o esgotamento do que o jornalista investigativo Seymour Hersh chamou na época de ‘Opção Salvador’, fazendo um paralelo com a guerra suja dos esquadrões da morte montados pelos norte-americanos na América Central.

Para conter a insurgência contra a ocupação, Washington apostou na divisão étnica e religiosa do país através de numerosas operações de bandeira trocada e cooptou grupos colaboracionistas. Além de linchar e enforcar Sadam, e de banir o exército iraquiano e o Partido Baas.

O agora demissionário primeiro-ministro Mahdi é um desses colaboracionistas de primeira hora, tendo sido ministro “das finanças” do primeiro governo fantoche sob W. Bush, em 2004.

Quanto às denúncias do “dedo de Washington” nos protestos – cujas digitais estão por toda parte no Oriente Médio inteiro – é o que no jargão da casa chamam de ‘dano colateral’, com a meta sendo manter o Iraque subjugado e o petróleo jorrando. O caos no Iraque une o útil ao agradável: intensifica a ‘pressão máxima’ de Trump contra Teerã, atrapalha a Nova Rota da Seda da China – e quem sabe, permita roubar mais petróleo. Afinal, como Trump não cansa de dizer, “eu gosto de petróleo”.