A avaliação da mesa de Unidade Social é que Piñera ainda não ouve a exigência das ruas, que é a Assembleia Constituinte

O presidente chileno, Sebastián Piñera, pressionado pelas enormes manifestações que durante semanas enchem as ruas das principais cidades do país, anunciou que preparará um projeto para fazer mudanças na Constituição elaborada durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), exigência da população em meio à grave crise social, econômica e política.

“Acredito nas mudanças na Constituição, que são legítimas e vamos discuti-las. Na verdade, estamos preparando um rascunho de mudanças na Constituição para poder atualizar e ter nossa própria proposta”, afirmou, em entrevista divulgada no sábado, 9, pelo jornal “El Mercurio”.

Logo depois de Piñera assumir a presidência, em março do ano passado, assinalou que não permitiria a aprovação de um projeto de lei enviado ao Congresso por sua antecessora, Michelle Bachelet (2014-2018), para modificar a Constituição. Aquele projeto assumia a inviolabilidade dos direitos humanos, o direito à saúde e à educação e também tratava da igualdade de remuneração entre homens e mulheres.

Agora, após um mês de manifestações e a um custo de 20 chilenos mortos, o presidente esclareceu na entrevista que sua proposta pode ser discutida juntamente com o projeto de lei de Bachelet e com outras propostas que possam surgir.

O regime de Pinochet “impôs uma das variantes mais extremas de neoliberalismo do mundo, a Constituição de 1980 tem se transformado no mecanismo mediante o qual, quando os defensores do modelo perdem votações no parlamento, acodem à Constituição e ao Tribunal Constitucional, TC, para derrubar leis que busquem mudar ou amenizar o modelo”, afirmou Javier Couso, advogado constitucionalista e professor das universidades Diego Portales (Chile) e de Utrecht (Holanda).

O catedrático aponta exemplos do compromisso da Carta Magna chilena com o modelo antinacional:  “A supressão do direito dos trabalhadores de negociar ‘por ramo de atividade’, isto é, entre várias organizações sindicais e vários empregadores de uma mesma categoria, prática habitual em muitos países; a proibição do direito de greve dos funcionários públicos; a ‘constitucionalização’ dos seguros privados de saúde e do sistema privado de pensões, impedindo o modelo de repartição. E em adição a essa constitucionalização, o TC tem realizado uma ‘jurisprudência ativista’ de proteção do modelo, declarando inconstitucionais projetos de lei aprovados, por exemplo, um que impulsionava a sindicalização; ou o que fortalecia o direito normativo, fiscalizador e de aplicação de sanções do Serviço Nacional do Consumidor (Sernac); ou o que proibia aos controladores de universidades privadas perseguirem fins de lucro”.

A oposição respondeu à entrevista de Piñera com vários questionamentos. O presidente do Partido pela Democracia, Heraldo Muñoz, assegurou que “o clamor cidadão é para uma nova Constituição, não para mudanças que tendem a não atacar os problemas centrais. É para um plebiscito. O presidente deve convencer-se e escutar”. O líder do Partido Comunista, deputado Guillermo Teillier, disse que “as mudanças na Constituição de Piñera são puro jogo de cena. A saída é o plebiscito, a Assembleia Constituinte rumo a uma Nova Constituição”. Já o dirigente da Democracia Cristã, Fuad Chahin, disse que “o povo não quer mais medidas-remendo”.

A desconfiança ocorre porque, ao mesmo tempo em que acena com esse recuo, na semana passada Piñera anunciou medidas de segurança, endurecendo a criminalização dos protestos com 10 medidas, dentro das quais se destacam a entrega de mais financiamento à polícia e a modernização da inteligência para reprimir as entidades sociais e os partidos de oposição.

As violações aos direitos humanos abrangem no Chile um espectro amplo, a maior parte das vezes sem que o governo tome providencias em defesa da população. Foi verificado um recorde mundial de feridos nos olhos por disparos propositais. O Colégio Médico do Chile estima que, até o dia 8 de novembro, existiam 151 pacientes com trauma ocular severo, o que se soma às 32 pessoas com traumatismo ocular no globo aberto, 60% dos quais padece uma diminuição severa da visão, enquanto que quase 30% ficaram completamente cegas de um olho.

Vinte mortos foram registrados pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) — cinco comprovadamente por ações de agentes dos Carabineiros, a polícia local –, além de haver registro de violência sexual. Crianças e adolescentes são detidos e recebem disparos e gases todos os dias, inclusive nas escolas. Há espancamentos, torturas, denúncias da existência de centros clandestinos de detenção, familiares que desconfiam das autópsias. Os feridos são pelo menos 1.915. O Instituto informou no sábado, 9, que recebeu 2.300 denúncias por violações de direitos humanos desde que começou o levante.

A avaliação da mesa de Unidade Social, frente de sindicatos, organizações sociais e partidos de oposição que canaliza a voz dos setores mobilizados, é que Piñera ainda não ouve a exigência das ruas, que é a Assembleia Constituinte: “Insiste em sua política repressiva, acirrando o conflito”, declarou Carolina Espinoza Tapia, da Não + Administradoras de Fundos de Pensões (NO+AFP).

A dirigente questiona a reforma tributária anunciada como “insuficiente e cosmética” e informa que os sindicatos farão greve na próxima terça-feira, 12, e não cairão no canto de sereia de mudanças constitucionais que ninguém sabe quais serão.  “Estamos sendo perseguidos, reprimidos; continuamos somando feridos e detenções ilegais. O abuso policial se estende especialmente à garotada”, advertiu.