Presidente Correa: “Claramente o que aconteceu na Bolívia foi golpe”
Nesta entrevista, o ex-presidente do Equador, Rafael Correa, falou sobre o golpe contra Evo Morales na Bolívia e a resistência em massa ao seu sucessor Lenín Moreno, no Equador.
Entrevista de Rafael Correa a Nicolas Allen (*)
Rafael Correa, presidente do Equador de 2007 a 2017, está entre os maiores líderes da Maré Rosa na América do Sul. Ele chegou ao poder em uma terra devastada pela pobreza e prejudicada por programas de austeridade e privatização, e liderou a transformação do Equador – o salário mínimo mais que dobrou, bilhões foram investidos em saúde e a pobreza foi reduzida pela metade. Sua história não é diferente do recentemente deposto Evo Morales, que não apenas foi o primeiro presidente indígena da Bolívia, mas o mais bem-sucedido.
Nicolas Allen – Vamos começar com a Bolívia, a questão mais urgente. Como você entende o que está acontecendo lá?
Rafael Correa – Quando a polícia está se revoltando e os militares “sugerem” que o presidente renuncie, é claramente um golpe de estado. No Brasil, Argentina ou China, chamaríamos isso de golpe, mas algumas pessoas não gostam de chamar as coisas pelos nomes reais. Sim, o Presidente Morales renunciou. Mas se alguém segura uma arma na sua cabeça e diz educadamente: “me dê sua carteira”, e você a entrega, isso significa que não foi roubo, mas foi acordado por consentimento mútuo? Claramente, o que aconteceu na Bolívia foi um golpe.
NA – Assim como as forças armadas, as forças de segurança interna e alguns setores da sociedade boliviana, parece que a Organização dos Estados Americanos (OEA) também foi um fator nesse golpe.
RC – Os países da OEA seguem a linha dos EUA e geralmente agem em conjunto. Vimos como a OEA reagiu não apenas à crise boliviana, mas também à do Equador. Quando o povo equatoriano se levantou contra as traições do presidente Lenín Moreno, insistindo na necessidade de eleições antecipadas (como a constituição permite em tempos de crise), a OEA declarou que Moreno deve concluir seu mandato de quatro anos.
Preferia mortes, ferimentos e prisões a uma votação que Moreno claramente teria perdido, como o servo de Washington que é. O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, foi ao Equador para parabenizar Moreno por seu espírito democrático, assim como nos roubava a democracia. Mas a OEA não disse que Morales deveria terminar seu mandato. Como podemos explicar um padrão tão duplo?
A América Latina deve refletir sobre o papel da OEA. Não há dúvida de que Washington exerce um peso hegemônico predominante na OEA, e obviamente Almagro é um porta-voz de Washington. Não me considere um anti-gringo, eu amo profundamente os Estados Unidos – morei lá por quatro anos e sou formado em duas universidades estadunidenses. Mas devo dizer que a OEA atua como um cão de guarda leal, como o ministério colonial dos Estados Unidos. Não passa de um instrumento para defender os interesses dos EUA e demonstrou isso muito claramente durante a crise boliviana.
NA – É trágico que o governo de Evo Morales foi derrotado assim. Como você avalia o governo dele – é um modelo para a região?
RC – Claro, é algo extraordinário. Como era a Bolívia antes de Evo Morales? O que esse governo conseguiu é impressionante – ele tinha alguns dos melhores indicadores macroeconômicos do planeta. Tirou um terço da população da pobreza, reduziu radicalmente o analfabetismo e teve uma das menores taxas de desemprego da região.
Mas aqueles que derrubaram Morales acreditam na prosperidade para alguns e não para todos. Se você oferecer à nossa elite a chance de ser mais próspera, mas igual a todos os outros, eles dirão que não. O poder deles se baseia na desigualdade – é assim que eles nos dominam e garantem seu próprio bem-estar.
Isso é difícil de entender porque tendemos a comparar a América Latina contemporânea com os Estados Unidos contemporâneos; mas faria mais sentido comparar nossa situação com a era da escravidão nos Estados Unidos, quando Abraham Lincoln teve que enfrentar uma guerra civil para abolir a escravidão, quando os estados confederados se separaram.
Quando Lincoln foi morto, John Wilkes Booth gritou: “Sic semper tyrannis!” Para os proprietários de escravos, Lincoln era um tirano – e as coisas são as mesmas aqui hoje. Eles querem um tipo de exclusão que mantenha a pobreza e mantenha a América do Sul como o continente mais desigual do planeta. Quando eles falam sobre liberdade, só querem direitos para si mesmos. E farão o possível para isso.
Foi o que aconteceu na Bolívia. Os indicadores econômicos, o progresso, a prosperidade, a igualdade foram espetaculares. Mas as suposições da elite boliviana são profundamente racistas. Que um índio fez tudo isso e concedeu direitos aos mais pobres, àqueles com pele escura, aos indígenas (ou como eles os chamam, os cholos) – tudo isso é inaceitável para eles. Então, usam seus meios de comunicação para atacar Morales e estimular os verdadeiros poderes da sociedade, como as forças armadas.
NA – Como você diz, em muitos países – do Brasil à Argentina e Equador – tornou-se comum falar de figuras populares como Evo Morales como “tiranos”, cinicamente empregando uma retórica democrática. Nesse sentido, o golpe na Bolívia hoje não é o mesmo da década de 1970 – fala a linguagem da democracia, do estado de direito, do combate à corrupção, às vezes até ouvimos o termo “lei”. Como você leu a estratégia do direito “democrático” ao nível regional?
RC – Primeiro, as elites latino-americanas não acreditam em democracia. A democracia está bem desde que se alinhe aos seus interesses, mas quando há o risco de algo mudar, eles farão de tudo para combatê-la. Eles também não acreditam na igualdade. Algumas das elites que aplaudem o golpe podem até ter sido simpáticas a um presidente que queria criar melhores escolas para os filhos de seus servos. Mas eles também poderiam assassinar esse mesmo presidente se ele tentasse criar escolas para essas crianças iguais às das elites.
Segundo, os governos dos EUA acreditam na democracia em casa, mas também pensam que precisam substituir governos estrangeiros se não se alinharem à política externa dos EUA. Mesmo que esses governos sejam ainda mais democráticos do que os próprios Estados Unidos, eles precisam ser substituídos por ditadores sangrentos. É assim que as coisas eram na década de 1970.
Hoje, esses tipos de ditadura não são mais possíveis na América do Sul. Foi possível em Honduras em 2009, mas é mais difícil em outros lugares. Portanto, existem novas estratégias – os chamados golpes fracos que exploram a insatisfação popular para tentar desestabilizar os governos. Mas na Bolívia, vimos um golpe que envolveu a força armada insurgente, os distúrbios da polícia e o comando do exército sugerindo a renúncia de um presidente eleito democraticamente.
Foi com isso que tivemos que lidar durante os últimos anos de mudanças históricas na América Latina, onde vimos uma série de governos progressistas que não se alinharam às políticas dos EUA. Washington tomou estes últimos como inimigos – e os desestabilizou, cada vez mais descaradamente. Quando não pode fazer isso, por causa do apoio popular, tenta liquidá-los por meio da lei. Essa criminalização da política explica o que aconteceu com Lula, com Cristina Kirchner na Argentina e com meu vice-presidente Jorge Glas. Tais coisas são impossíveis em um estado baseado no Estado de direito, mas elas são boas quando são usadas contra líderes de esquerda.
NA – Evo Morales buscou asilo no México. Você acha que seria possível ele pedir asilo no Equador?
RC – Há vários desequilíbrios aqui – a influência dos EUA, o bloqueio da Venezuela, a [entrega do governo equatoriano] de Julian Assange e a concessão de uma nova base militar americana nas Ilhas Galápagos. Gostaria de receber uma base militar dos EUA em Manta se eles derem ao Equador uma base militar em Miami. Mas ainda não tive resposta a esta proposta.
Pessoas como Lenín Moreno nos perseguem e tentam nos aniquilar como povos, juntamente com nossa reputação, acusando-nos de corrupção e repressão. Criam mitos políticos tentando eliminar nossos movimentos políticos, sabendo que somos a principal força eleitoral.
Como Evo Morales poderia se arriscar a ir para o Equador, mesmo que temporariamente, quando Lenín Moreno é tão dependente dos Estados Unidos que nem sequer permite que Morales atravesse o espaço aéreo equatoriano? Ele fez isso para demonstrar sua submissão a Donald Trump, mas acho que até Trump vai rir de um subordinado como Moreno. Felizmente, López Obrador está lá no México e abriu as portas para Morales, seguindo sua tradição de quase um século de respeito aos direitos humanos.
NA – O Equador agora tem uma paz tensa, após as recentes revoltas contra as políticas neoliberais de Moreno e os cortes nos subsídios do governo. Como você vê a situação atual, depois dos acordos do governo com vários setores sociais?
RC – Isso não é paz, mas pacificação. A paz é baseada na verdade e na justiça. Este governo está mantendo o controle através do terror, por medo de que eu ganhe. Quando você diz que há diálogo com algumas forças políticas que participaram dos protestos, o fato é que o principal grupo envolvido no diálogo foi a CONAIE [Confederação Indígena]. Mas a liderança da CONAIE sempre apoiou o governo, então isso era apenas pantomima. Eles não eram apenas simpatizantes – tinham ministros do governo. Mas uma vez que o governo foi enfraquecido, as bases se rebelaram e dominaram a liderança.
Uma coisa boa de nossa constituição é que você pode evitar o caos antecipando as eleições, como uma válvula de segurança. Assim, o governo concordou em dialogar para revogar certas medidas. Tudo isso só aconteceu depois que onze pessoas morreram, juntamente com 1.300 feridos, 1.200 detidos e os maiores protestos em nossa história contemporânea. Vimos a repressão mais brutal que podemos lembrar desde a ditadura militar, se não muito pior. E, no entanto, o governo quer agir como se o aumento dos preços dos combustíveis fosse o único problema.
Há pouco tempo, conheci um consultor industrial da CONAIE, Paco Dávalo, que disse que o governo cairia na segunda-feira seguinte. Mas no domingo, a CONAIE decidiu entrar em diálogo com o governo, para que eu não tivesse a chance de exigir que o governo se demitisse. Eles só concordaram em negociar e revogar os aumentos de preços após muita dor e morte. Isso enfureceu grande parte da base indígena, bem como as pessoas em geral. Esta é uma bomba-relógio, especialmente se eles levarem adiante o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). As pessoas exigiram que o FMI saísse, que Moreno saísse, que os ministérios da Defesa e do Interior saíssem. Mas o acordo com a FMI exige que Moreno libere os preços dos combustíveis, que aumente o IVA e tome outras medidas que poderiam ser o detonador de novos protestos.
NA – O seu partido, Revolução Cidadã, pode recuperar um papel na política institucional?
RC – Nas últimas eleições, vimos que somos a maior força política do país – tivemos a maior votação popular, apesar de não podermos lançar candidatos em todas as províncias. Tivemos que nos unir a uma nova aliança política porque nosso histórico foi roubado. Mesmo cinco dias antes das eleições, ainda não tínhamos permissão para registrar um novo partido e, mesmo depois, muitas pessoas não sabiam que nosso projeto político Revolução Cidadã participou do Compromisso Social – Lista Eleitoral 5.
Mas nas três províncias mais populosas, chegamos ao segundo lugar numa e primeiro lugar nas outras duas. Portanto, temos muitos apoiadores e essas dificuldades não nos impedem de participar. Por esse motivo, eles emitiram liminares e ordens de prisão para que eu não possa retornar ao meu país. Eu mantive meus direitos políticos intactos e poderia concorrer a vice-presidente mais adiante, mas eles não vão permitir. Se isso fosse uma democracia real, se eles cumprissem as regras, o campo estaria aberto para voltarmos ao poder.
NA – O mapa político continental está tremendo, por exemplo, no Brasil,e também no Chile. O que você acha da rebelião popular lá?
RC – Há esperança. O povo chileno se levantou, mas também sinto muita dor pela tragédia que sofreu e pelo custo em vidas humanas. Sinto pelo estudante de psicologia Gustavo Gatica, de 21 anos, que perdeu a visão nos dois olhos quando um policial atirou nele, na cara. Eles o cegaram – e quando penso nisso, é difícil para mim dormir. Eu ofereço minha total solidariedade.
Essa dor também é a base da esperança para o povo chileno – e surgiu não apenas contra um aumento de trinta pesos na tarifa do metrô, mas contra mais de trinta anos de exclusão. Eles estão derrubando um modelo econômico e político “bem-sucedido” que realmente nunca o foi. De fato, o Uruguai teve mais sucesso, mas somente depois de dez anos de um governo de esquerda – e isso não serve para fins de propaganda [da direita]. O Chile tem a maior renda per capita na região, mas também é a mais desigual. A realidade é completamente diferente do que dizem os indicadores do [PIB].
Diante de tanta injustiça e exclusão, as pessoas se rebelaram. Não sei qual será a solução. Infelizmente, o Chile ainda opera sob a constituição de 1983, escrita sob Augusto Pinochet. Muitas pessoas estão propondo uma assembléia constituinte. O que está claro é que o Chile nunca mais será o mesmo.
E há outros sinais de esperança também. Por exemplo, a libertação de Lula foi uma ótima notícia, assim como a vitória de Alberto Fernandez na Argentina e a popularidade de outros líderes de esquerda. No Brasil, a popularidade de Bolsonaro é destruída – se Lula fosse candidato, ele seria presidente. Eles roubaram sua liberdade, mas também roubaram o Brasil da democracia.
A outra boa notícia é o acordo governamental na Espanha – um país muito importante para a América Latina. Uma coalizão progressista entre o PSOE e a Esquerda Unida vai formar um governo progressista bem familiarizado com a América Latina, especialmente graças ao Podemos. A Espanha e a Europa terão que prestar mais atenção à América Latina e isso será um fator importante na prevenção de tantos abusos, tantas leis, tantos colapsos constitucionais, tantos golpes de Estado.
Acredito que haja momentos de esperança, mas, infelizmente, existem avanços e retrocessos. Lembre-se, Evo venceu a eleição – a única discussão é sobre quanto ele ganhou. Há um relatório da OEA que diz que houve irregularidades, mas nenhuma fraude. Portanto, este não foi o verdadeiro gatilho para tanta violência e para a remoção de Morales. Os Estados Unidos estavam por trás disso.
A América Latina deve perceber que não podemos mais realizar nada com a OEA – precisamos de nosso próprio espaço para discutir nossos problemas com os Estados Unidos e o Canadá, mas devemos fazê-lo em um bloco em que possamos nos encontrar para resolver conflitos e tomar decisões . Esse espaço real, esse fórum sério, é a Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe, CELAC.
NA – O fato de Lula ser livre, pelo menos por enquanto, levanta a perspectiva de uma reconfiguração da CELAC e de passos em direção à unidade regional…
RC – Sim, os conservadores podem lançar obstáculos, mas não podem mudar o curso da história. No final dos anos 80, eles impuseram o neoliberalismo e o Consenso de Washington sobre nós, mas os latino-americanos nunca o aceitaram. Nós, os governos progressistas, saímos de uma década perdida, uma década de administração da crise da dívida. Se compararmos 2002–2014 àqueles tempos, era a idade de ouro da América Latina. Nunca vimos tanto crescimento ou tanta redução da pobreza.
Também tivemos crescimento nas décadas de 1960 e 1970. Mas não de uma maneira tão saudável, com a desigualdade e a pobreza em queda e uma presença crescente nos assuntos internacionais. No [período de 2002-14], fomos amplamente admirados – noventa milhões de latino-americanos foram retirados da pobreza, principalmente por causa das políticas de governos progressistas. Depois de dez anos, quatorze anos no poder, eles sempre conseguem encontrar uma vírgula equivocada e dizer: “veja, há corrupção” e enganar as pessoas. Dizem que tudo deu errado e que poderiam fazer melhor. Mas vieram nos denegrir, não para melhorar a situação. E depois de seis meses ou um ano no poder, não alcançaram nada melhor. As pessoas agora percebem que estavam melhor antes. Você não pode mais enganar todas as pessoas o tempo todo. Os conservadores precisam se comparar aos nossos resultados.
Veja o que está acontecendo na Argentina ou pense no que teria acontecido no Brasil se Lula fosse candidato. Veja o que aconteceu na Bolívia: Evo obteve 48% dos votos. Ou olhe para mim no Equador – eles têm que me perseguir porque eu os venceria em qualquer eleição. As pessoas estão conosco. Portanto, eles podem continuar atrasando o curso da história, mas não poderão alterá-lo.
NA – É difícil falar em termos macro, mas hoje uma interpretação sustenta que o neoliberalismo é fraco e que suas garras têm uma influência mais fraca na região. Seja nas ruas e nas urnas, há um questionamento mais aberto das coisas. O que você acha desse argumento?
RC – Há algum tempo, as pessoas começam a perceber como foram enganadas. Por exemplo, no Equador, os impostos e tarifas foram reduzidos para melhorar as fontes externas de financiamento dos bancos, mas os recursos disponíveis para bancos públicos, previdência social e banco central foram cortados. O governo Lenín Moreno restabeleceu alguns subsídios que removemos porque eram ineficazes – mas o fizeram apenas para dizer que são humanitários e eu não.
Mesmo aqueles que acreditam politicamente no neoliberalismo precisam dizer que essa é uma maneira inadequada de instalá-lo na América Latina. O neoliberalismo deve se basear no livre mercado, mas é necessária uma série de condições para que o mercado livre funcione com eficiência, o que é especialmente implausível no contexto latino-americano. Acima de tudo, entre as enormes desigualdades, há falta de concorrência. A igualdade de condições em que o neoliberalismo deve funcionar é precisamente o que nos falta na América Latina.
Alguém poderia dizer: “Sim, acredito no neoliberalismo”. Mas, primeiro, precisamos gerar condições iguais em educação, saúde, universidade e treinamento técnico. E essas coisas devem vir do estado.
Conceitualmente, é isso que o neoliberalismo exige. Mas quando se trata de implementação, eles são neoliberais crioulos – ou seja, são neoliberais apenas quando lhes convém. Quando vencem, privatizam os lucros e, quando perdem, socializam as perdas. Dizem que tudo é culpa do governo, que temos neoliberalismo, mas está infectado com grandes doses de corrupção. Mas, de fato, estão usando o poder político para beneficiar certos grupos sob o disfarce da concorrência. É o que Lenín Moreno está fazendo no Equador: cortando impostos para grupos poderosos e importadores e aumentando os preços dos combustíveis que prejudicam todo o povo equatoriano.
NA – No Brasil, sob Bolsonaro, vemos a ascensão de uma extrema direita mais cruel, como acontece com Camacho na Bolívia. Há também uma incipiente extrema direita no Equador e na Argentina. Como devemos entender esse fenômeno?
RC – Acho que a extrema direita sempre esteve lá, mas teve que se esconder porque essas pessoas perderam poder. Mas agora voltaram com sede de vingança. Usam uma retórica brutal e grosseira e bombardeiam a mídia com ela – afinal, a mídia pertence a eles também.
As pessoas aceitam isso por um tempo, pelo menos, porque parece uma solução. Por exemplo, Bolsonaro enfatizou a questão da insegurança. No entanto, a questão da segurança foi um grande tema levantado pela esquerda, porque a única maneira de combatê-la é com o desenvolvimento humano, não dando armas maiores à polícia.
Na Bolívia, Camacho – que era, aliás, um desconhecido como Bolsonaro, um fundamentalista religioso de extrema direita – é supostamente um defensor da democracia. Mas ele se opõe a novas eleições porque sabe que Evo vencerá. As elites não suportam o fato de um presidente indígena ter feito mais pela Bolívia em treze anos do que em mais de um século. Eles são tremendamente racistas. Estão se mostrando pelo que são, porque agora enfrentam uma batalha pelo poder, enquanto antes não precisavam lutar por isso.
NA – Parece-me que há uma questão importante aqui sobre militarização e o papel do exército na América Latina pós-ditadura.
RC – Nossas nações, nossas repúblicas, nasceram de origens militares – seus primeiros líderes e presidentes foram os oficiais que lutaram pela independência à frente dos exércitos. Desde o início, houve uma forte presença das forças armadas.
Isso ajuda a explicar por que a América Latina implodiu. Desde a independência, as mesmas divisões políticas e administrativas foram mantidas, para o bem ou para o mal, que existiam durante o Vice-reinado colonial de Nova Granada, as Províncias Unidas do Sul e as Províncias da América Central. Mas todo líder militar queria seu próprio país.
Infelizmente, o poder excessivo das forças armadas permaneceu – e continua sendo uma ameaça ao poder político. É difícil enfrentá-lo, porque os militares se tornam árbitros da democracia, retirando ou concedendo seu apoio. Se você não tem o apoio das forças armadas e tem uma democracia imatura com uma oligarquia, as elites fascistas podem fazer todo o tipo com você.
No Equador, é por isso que os oficiais militares de mais alto escalão se opuseram a mim, criando uma lei de segurança especial para os cidadãos. Eles receberam pagamentos de US $ 5.000 pagos por soldados de nível inferior, para que os policiais pudessem ter um supermercado especial com brinquedos para o Natal e tudo mais. Eles ainda tinham um cronograma para as diferentes fileiras: segunda-feira era para os comandantes e os coronéis, suas esposas e famílias, etc. Terça-feira era para tenentes-coronéis e outros oficiais seniores, e assim por diante. Os soldados foram no sábado e até então não havia mais nada. Eles tinham salários miseráveis, mas instilavam uma mentalidade paternalista. O filho de cinco anos de um general está convencido de que ele é superior porque recebe um brinquedo elétrico de presente. Os militares tinham seu próprio sistema educacional, seu próprio sistema financeiro e habitacional, seu próprio sistema industrial. Eles tinham sua própria república separada. Quando se aposentam (geralmente muito cedo), ingressam nas reservas, com pensões astronômicas. Qual é o sentido disso?
É muito difícil quando você luta contra isso – eles têm armas, poder e muito pouco sentimento democrático. Mas se queremos ter repúblicas genuínas e verdadeira democracia, não podemos continuar suportando o peso excessivo das forças armadas.
NA – Quero perguntar sobre corrupção, que está relacionada à questão da lei que você mencionou anteriormente. Como podemos resolver esta questão da esquerda?
RC – Infelizmente, a corrupção é socialmente aceita – os psicólogos chamam de dissonância cognitiva. Uma coisa é expressar seus valores em oposição à corrupção e outra é praticá-los. Todo mundo tolera.
A corrupção é uma pandemia na América Latina. Toleramos a corrupção, e quando você a combate, encontra combinações e contas secretas em Andorra, e precisa combater os paraísos fiscais. Proibimos paraísos fiscais para funcionários públicos.
Mas “anticorrupção” é uma estratégia perversa e persistente, como a lei. Não matam você como nos anos 70, mas matam sua reputação falando sobre corrupção.
Se você quiser encontrar algo errado em um governo de dez anos, poderá – seja uma multa extraviada ou outra coisa à qual queira chamar atenção. Governos livres de corrupção só existem nos Estados Unidos. Há corrupção na Espanha, na Alemanha, no Vaticano. Meus governos não toleraram corrupção. Mas, com o controle da mídia, as elites podem explorar os casos que inevitavelmente surgem. E se o culpado está no QG do governo ou em um ministério, a mídia culpará o presidente.
Eles provocaram um escândalo ao meu redor, analisando minhas viagens, todos os meus e-mails, meus computadores e tudo mais, mas não encontraram nada. Mas continuaram repetindo que o presidente é corrupto ou que ele tolerou a corrupção, mesmo que a tenhamos erradicado. O mesmo pode ser dito sobre Lula, Cristina ou Evo Morales.
Com o tempo, as pessoas perceberam que houve mais corrupção nos últimos dois anos do que no meu governo nos últimos dez anos. Mas, a princípio, essas acusações desmoralizam até nossos próprios ativistas. Diante da corrupção, os ativistas se distanciam por um tempo, tornam-se inativos, desmoralizados. Mas eles se recuperam com o tempo, mesmo que tenham sofrido algum dano.
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(*) Rafael Correa foi presidente do Equador de 2007 a 2017.
SOBRE O ENTREVISTADOR
Nicolas Allen é doutorando em literatura na Universidade de Buenos Aires.
Tradução, seleção de trechos e adaptação: José Carlos Ruy