“Eu gostaria de alertá-lo a respeito da séria escassez de equipamento médico nos hospitais da Jerusalém Oriental, particularmente equipamento de proteção e para a condução de testes de coronavírus. Isto apesar das repetidas promessas de seu Ministério”, estas foram as duras palavras do prefeito de Jerusalém (que inclui a Jerusalém ocupada sob sua jurisdição desde que o governo israelense a anexou – ilegalmente diante das leis internacionais – a seu território), Moshe Leon, na carta dirigida ao ministro da Saúde israelense, o ultraortodoxo, Yaakov Litzman.

O drama pelo qual Leon teme ser responsabilizado, se concentra no fato de que o sistema de saúde como um todo pode entrar em colapso “à luz da incapacidade dos hospitais da parte oriental da cidade (de maioria árabe) de sustentar os esforços conjuntos que serão necessários neste período”.

Dos seis hospitais palestinos na Jerusalém Oriental, somente dois, o Makassed e o Hospital Saint Joseph, têm unidades para tratamento específico de covid-19.

Em estudo realizado após contatos com a direção dos hospitais naquela parte da cidade, Leon apresentou uma modesta conta emergencial de 9 milhões de shekels (US$ 2,5 milhões) destacando que os hospitais já tinham consideráveis problemas financeiros antes da pandemia “e agora precisam fazer maiores e imediatas despesas para se prepararem para tratar os pacientes de coronavírus”.

Até agora os apelos de Leon e dos diretores dos hospitais de Jerusalém caíram em ouvidos moucos e os recursos não chegam.

O presidente do Sistema hospitalar de Jerusalém Oriental, Abdel Qader Husseini, declara que os dois únicos hospitais equipados para tratar dos acometidos do vírus, “o Makassed tem 22 leitos preparados para isso e o Saint Joseph, que fechou o seu departamento cirúrgico para convertê-lo em setor de tratamento do Covid-19, tem 28 leitos”.

Husseini declarou, em entrevista ao portal Middle East Monitor (MEMO), que Israel como potência ocupante, é responsável pela saúde dos palestinos e suas autoridades do setor têm feito muito pouco para ajudar. Ele também denuncia que os hospitais da cidade estariam em condições bem melhores, não fosse Trump haver ordenado o corte na ajuda que os Estados Unidos forneciam aos hospitais de Jerusalém (US$ 25 milhões ao ano) como mais uma das pressões para tentar fazer os palestinos se dobrarem e aceitarem a anexação de Jerusalém e a aderirem ao seu colonialista “plano de paz”.

Mas não é apenas na cidade sagrada para as religiões judaica, cristã e muçulmana que o perigo ronda as vidas palestinas.

A tensão na Faixa de Gaza, sob cerco há mais de 13 anos, é muito mais elevada.

O diretor de operações da UNRWA (a organização da ONU fundada em 1948 para cuidar dos refugiados palestinos), Matthias Schmale, declarou à rede Sky News Arabic que o cenário previsto para um surto do Covid-19 em Gaza é o pior possível: “Estamos muito preocupados com o surto de coronavírus porque administrar a crise nestas condições seria muito difícil”.

Ele enfatizou a importância e a necessidade de que Israel levante o cerco imposto a Gaza desde 2007. “Precisamos de equipamento, respiradores, proteção pessoal para médicos e mais pessoal”.

Para ele não tem lógica pensar que Gaza é de alguma forma separada do resto do mundo. “Todos precisam tomar medidas para que o cerco seja levantado”.

“Para muitas das pessoas que estão aqui, Gaza deixou de ser um lugar onde se possa viver há muito tempo. As pessoas não têm empregos, medicamentos ou qualquer outra coisa, incluindo pacotes de alimentos, muitos dependem da ajuda fornecida pela UNRWA”.

Ele alerta que a Faixa de Gaza tem apenas 60 leitos equipados com respiradores para uma população estimada em 2 milhões. “Fui informado de que 20% dos pacientes atingidos pelo coronavírus precisam de atendimento hospitalar e 5% de permanência em UTI. Se apenas 1.000 pessoas contraírem o vírus em Gaza estaremos diante de um problema real”.  

Em matéria publicada nesta quinta-feira, no MEMO, as autoridades de Saúde de Gaza advertem que estão sem kits de testes e os exames já realizados aguardam o resultado final porque os reagentes também encontram-se em falta. Segundo o porta-voz do departamento de Saúde, Ashraf al-Qidra, “os testes em nosso laboratório central pararam depois que os kits acabaram”. Isso está implicando em que salas de aula de escolas improvisadas como centros de quarentena já estão ficando lotadas com os médicos guiando-se apenas pelos sintomas.

ORTODOXOS AMEAÇADOS

A desastrosa condução do combate ao coronavírus não se limita aos palestinos a quem Netanyahu chama de “amigos dos terroristas” e “ameaça ao caráter judaico de Israel”, a negligência em impor a quarentena aos bairros de maioria ortodoxa judaica está colocando em risco de dizimação os religiosos judeus. Nesses bairros, a velocidade de propagação do vírus já é a mais assustadora em todo o país e sem comparação em todo o mundo.

Na cidade religiosa de Bnei Brak, por exemplo, 35% dos testados apresentam infecção pelo vírus, o que significa, em projeção, que já podem estar infectados cerca de 75 mil pessoas somente aí.

Além de não ter havido a orientação para a quarentena (as medidas mais severas só começaram na quarta semana de março), há uma densidade populacional grande, pois os religiosos costumam ter muitos filhos.

A isso se junta o fato dos religiosos não acreditarem na ciência, mas na reza e nos rabinos como recursos para vencer os males.

O próprio ministro da saúde, o ortodoxo Yaakov Litzman, sem nenhuma formação médica, uma indicação do seu partido, o Judaísmo Unido na Bíblia, quando perguntado se a quarentena israelense se estenderia até o Pessach (a Páscoa judaica), deu a seguinte resposta: “Estamos rezando e esperançosos de que o Messias chegará antes da Páscoa, no tempo de nossa redenção. Estou seguro de que o Messias vai chegar e nos trazer para fora deste mal, assim como Deus nos tirou do Egito. Em breve sairemos em liberdade e o Messias virá e nos redimirá dos males do mundo”.

Isso no dia 24 de março! O Pessach chegou, dia 8, o Messias não veio e a doença segue como a maior ameaça aos judeus religiosos em todo o mundo. A responsabilidade recai sobre o governo israelense que permitiu que as escolas religiosas, as Yeshivot, continuassem funcionando, mesmo com as escolas seculares, cristãs e muçulmanas já com as portas fechadas por todo o país.

A razão: Netanyahu quer agradar um dos seus partidos de apoio, o de Litzman, ministro da Saúde que, dois dias depois de sua estapafúrdia declaração, foi acometido do vírus junto com a sua esposa.

Enfim, como é que uma população que não valoriza muito a ciência, privilegia o estudo do Talmud (livros de discussões em torno da Bíblia) à matemática, considera infalíveis os seus líderes religiosos, a exemplo do que senta no Ministério da Saúde, vai atender a orientações de isolamento em casa, em acordo com o que prescrevem cientistas ?

Agora o governo israelense desloca centenas de soldados ao bairro religioso de Jerusalém, o Mea Shearim e à cidade de Bnei Brak, para forçar a quarentena. Mas pode já ser muito tarde.

Nestes tempos, Benny Gantz – ao se dobrar a Netanyahu para obter algumas parcas compensações ministeriais, ao aceitar manter o ministro da Saúde – sob pretexto de “unidade para combater o coronavírus”, pode ter cometido um erro mortal e, depois de despontar como alternativa central ao corrupto e racista Netanyahu, não ter mais recuperação política.

GANTZ NA CORDA BAMBA

Após liderar a oposição por três eleições consecutivas e prestes a afastar o premiê – notório incitador de racismo e réu indiciado em fraude, suborno e quebra de confiança – chegando a obter maioria no parlamento, tendo recebido a função de formar governo por indicação do presidente israelense, Reuven Rivlin, apresentando apoio de uma maioria de 61 deputados (o Knesset, parlamento israelense tem 120 cadeiras), Gantz vacilou diante do desafio, decepcionou a maioria dos seus parceiros nas jornadas eleitorais e aceitou entrar em negociações com o desastrado governo de Netanyahu, em especial na área da Saúde, exatamente sob o pretexto de formar com ele um “governo de emergência nacional” para supostamente ajudar a combater a pandemia.

Assim, Gantz deu as costas ao apoio recebido pelos eleitores da Lista Conjunta (majoritariamente árabe-israelense) que, após elegerem 15 parlamentares deram fundamental suporte para que o bloco encabeçado por Gantz obtivesse a maioria e acatou o abusivo, ilegal e absurdo tiro de misericórdia nas negociações de paz que é a proposta de anexação de um terço das terras da Cisjordânia palestina, o vale do rio Jordão.

Também descumpriu o item principal da campanha e da unidade posterior a ela e que unificou os partidos que chegaram à maioria eleitoral e parlamentar, com 61 deputados: afastar do poder Netanyahu. No acordo que deverá formar um governo “emergencial” por três anos, este continua como premiê, Gantz fica como seu vice e, só depois de 18 meses, assume com Netanyahu permanecendo agora na condição de vice-primeiro-ministro.

UMA NOVA OPOSIÇÃO

Agora se configura novo bloco de oposição após a rendição de Gantz à chantagem de Netanyahu que usou a pandemia – estupidamente espraiada por sua própria incúria – para brandir com a farsa de um “governo de emergência e unidade nacional” que, na verdade, ao invés de unir o país, só tem servido para dobrar Gantz (com medo de ser acusado pela morte de israelenses devido ao fato de se manter na oposição ou de ousar formar um governo de minoria). Com isso, mantém Netanyahu à frente do governo, reforçando o programa da direita israelense mais degenerada, cujo racismo doentio defende o projeto de submeter o povo palestino assaltando suas terras, aprisionando milhares deles e os humilhando dia após dia nos postos de controle policiais-militares espalhados pela Cisjordânia, em suma, arrancando deles todos os direitos e esperanças de materialização de seu Estado nacional através de negociações de uma paz justa.

A primeira mulher árabe, da etnia drusa, a ocupar uma cadeira no parlamento israelense, anunciou que deixava a lista encabeçada por Gantz, a Resiliência, da qual fizera parte até aqui, devido aos entendimentos do seu líder para formar governo com Netanyahu à testa.

“Liderança e honestidade são medidas em tempos de crise. Um líder não trai seus princípios e eleitores. Eu vim para a política para substituir este governo racista e divisivo, este governo da Lei do Estado Nação (a denominada Lei do Apartheid que discrimina os cidadãos árabes, incluindo os das etnias drusa e circassiana). Não entrei na política para ser parte deste governo”, declarou a deputada Gadeer Kamal-Mreeh, ao anunciar seu desligamento da lista de Gantz.

Quanto a ele, no momento em que tomou posse como presidente do parlamento fruto dos entendimentos com Netanyahu que até dias antes orientava seus colegas do Likud a se negarem a abrir o Knesset depois da derrota eleitoral, foi duramente criticado pelos que participaram a seu lado na campanha.

ATENTADO À DEMOCRACIA

Ao seu racismo e corrupção, Netanyahu acrescentou mais um crime: atentou contra a frágil democracia israelense ao orientar o presidente do parlamento, o Knesset, Yuli Edelstein, de seu partido, a se negar a reabri-lo depois das eleições.

A abertura do Knesset e sua instalação só veio depois que a Suprema Corte Israelense aprovou por unanimidade a petição do bloco opositor exigindo do ex-presidente que desse posse aos deputados eleitos. A resistência de Netanyahu prosseguiu e seu colega de partido Yuli Edelstein negou-se a acatar a decisão da Justiça, renunciando à condição de presidente ao invés de abrir o parlamento.

Um dos integrantes do bloco, o deputado Yoav Segalovitz deu um depoimento representativo do sentimento dos 45 deputados que se desligaram do bloco de Gantz, afastando-se das negociações com o bloco de Netanyahu: voltando-se para Benny Gantz, que acabara de assumir a presidência do Knesset já como resultado das tais negociações com Netanyahu questionou: “Benny, como você chegou aí? Na quarta-feira (25 de março) você nos enviou, meus colegas e eu, para a Corte Suprema. Você disse: ‘Nós não podemos aceitar esta ligação entre abertura e presidência do Knesset e negociações de coalizão governamental. Isso não se coloca. Estou interrompendo quaisquer negociações imediatamente. Sou um homem de princípios… E o que você está fazendo aí, Benny?”

Tratando o general Gantz com imagens militares, Segalovitz referiu-se à rendição: “Nós tomamos a colina juntos, Benny. Eu cheguei no topo e olhei para baixo. Eu nos vi ali em cima enquanto você estava lá embaixo com uma bandeira branca.”

Depois de seu recuo em toda a linha, na segunda-feira, 6 de abril, quando o acordo para formar o governo “emergencial” já estava pronto para impressão e assinatura, o negociador por parte de Gantz, Hod Betzer, que esperava pelo sim, recebeu uma visita inesperada a qual lhe informou de que o primeiro-ministro interino tinha mudado de ideia.

A partir dali, dias antes do começo de uma Páscoa entristecida, estava plantada mais uma discussão que poderia se tornar infindável ou uma contradição intransponível. Netanyahu insistia em ter poder de veto sobre a indicação dos juízes da Corte Suprema que, em Israel, são escolhidos por uma Comissão de Indicações eleita para este fim pelo parlamento e sob supervisão do Ministério da Justiça, cujo ministro, no acordo, seria indicado por Gantz. Em resumo, o novo pleito significava passar por cima de uma lei de 1953.

A partir de agora, “a maior crise de saúde desde a Idade Média”, como Netanyahu a pandemia para chamar Gantz para a tal “unidade emergencial” com ele, podia esperar.

De repente, Gantz se vê enredado numa teia de subterfúgios e humilhações, buscando firmar acordo com alguém que sabidamente não tem princípio algum e nenhuma referência que não seja se dar bem, depois de ter sido o principal protagonista do esfacelamento do o bloco oposicionista que lhe tomou mais de um ano para construir, depois de jogar por terra a principal questão que mantinha seu bloco unido: constituir um governo sem Netanyahu.

O negociador de Gantz, percebeu a jogada e deixou claro que a nova demanda era uma “quebra de acordo”. Gantz logo declarou que “quer unidade, mas não a qualquer preço”.

A questão é que os 28 dias que Gantz recebeu para encabeçar a formação de governo se esgotam no dia 13 de abril. Em tese, ele pode pedir uma prorrogação ao presidente Rivlin por mais 14 dias. Só que agora, ao invés dos 61 deputados apoiando essa sua condição, lhe resta o apoio de 16…

Passada essa temporada de negociações, se não for fechado um acordo, Netanyahu continua como premiê, haverá nova eleição em setembro, ou quando a quarentena permitir, mas agora, devido à rendição de Gantz, enfrentará uma oposição esfacelada e que terá que ser reconstruída em outros moldes.

Por tudo isso, agora, o espertalhão Netanyahu não tem mais pressa em formar um “governo de emergência”. Para ele, tanto faz que a incúria e as vacilações sigam no comando da luta contra o vírus segue se propagando e ameaçando famílias dos dois lados da fronteira, Israel e Palestina.