Um ano depois, o Chile vai às urnas para fazer história. Após os massivos protestos iniciados em 18 de outubro de 2019 – e só interrompidos pontualmente durante a pandemia de Covid-19 –, os chilenos participam, neste domingo (25), de referendo sobre a reforma da Constituição. De forma involuntária, uma brasileira se tornou testemunha da rebelião popular e acompanhou cenas marcantes das manifestações.

Em junho de 2019, pouco depois de concluir seu doutorado em Biologia Vegetal pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), Andrea Garafulic Aguirre foi morar em Santiago, ao lado do marido – que é chileno – e do filho. A família se instalou em Maipú, um bairro classe média. Foi lá que, em agosto no ano passado, Andrea comemorou seu 40º aniversário.

Veio então, em outubro de 2019, o anúncio do aumento na tarifa do metrô de Santiago. As primeiras manifestações logo tomaram as ruas. Para Andrea e para a maioria dos moradores da capital, parecia tratar-se de mais uma das tradicionais revoltas estudantis. Mas as históricas injustiças sociais e a falência do modelo econômico neoliberal do Chile também entraram em pauta, com foco na educação. O sentimento de indignação geral foi potencializado com a violenta repressão aos protestos – que, em poucas semanas, deixou 20 mortos e milhares de feridos.

“Quando os protestos começaram, as notícias falavam apenas sobre pequenos grupos de pessoas que entravam em confronto com policiais – algo de grande ocorrência em Santiago a qualquer época do ano. Esses confrontos são mais comuns quando estudantes saem às ruas para lutar pela educação superior de qualidade e gratuita”, lembra Andrea.

Favorável à causa, ela estranhava as opiniões mais conservadores que ouvia em Santiago – “é impossível dar educação superior gratuita”; “não somos um país comunista”, “o governo não tem como bancar esse tipo de gasto”. O fato é que a divisão na opinião pública vinha limitando a mobilização em torno dessas reivindicações.

“Mas as manifestações de outubro foram completamente distintas. Poucos dias após o início do movimento, houve uma destruição massiva dos meios de transporte e das lojas no Centro da cidade, o que me assustou bastante pela magnitude da violência de ambas as partes – civis e policiais”, afirma. “Todas as lojas e comércios do Centro foram saqueadas, queimadas e devastadas. A partir desse momento, percebi que era algo muito além do normal. Não eram mais apenas os jovens que estavam descontentes com a situação do país.”

Com taxas recordes de rejeição, o governo direitista de Sebastián Piñera foi posto em xeque – mas não só. Os chilenos queriam aproveitar o clamor popular para renovar a Constituição. Embora o Chile tenha conquistado a redemocratização em 1990, sua Carta Magna tem 40 anos e é um entulho da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Repleto de amarras, o texto constitucional exige quóruns elevados para mudanças e não prevê participação popular em decisões importantes. Além disso, privilegia a atuação da iniciativa privada em áreas como saúde, educação e previdência social.

Os protestos provocaram uma dupla reação em Andrea – que concordava com a plataforma dos manifestantes, mas preocupava-se com a escalada de violência. “O país praticamente entrou em uma guerra civil. Milhares de comércios e supermercados, de todos os tamanhos, foram saqueados – e, em alguns casos, seus donos foram trancados e queimados vivos”, afirma Andrea.

“No geral, o movimento teve várias facetas e momentos. Houve um grande apoio da população às passeatas pacíficas e às reinvindicações pacíficas – mas não à violência e à brutalidade”, resume. Ainda em outubro, com os impactos das manifestações no dia a dia da cidade, Andrea sofreu uma crise de pânico e resolveu se mudar. “Agora moro em Pirque, uma região muito bonita, com bastante vegetação, pequenos sítios e fazendas.”

Em compensação, a identificação com a pauta “das ruas” permaneceu. “Sempre critiquei muitas políticas públicas adotadas pelo Chile.” Como exemplo, ela cita a não existência de educação superior pública e gratuita; os pedágios “caríssimos” para automóveis dentro da própria cidade; a previdência atrelada a investimentos na bolsa de valores; a jornada de trabalho de 45 horas semanais; e a falta de um sistema de saúde público similar ao SUS (Sistema Único de Saúde) brasileiro.

“Os idosos não têm direito a transporte público gratuito e muitos não têm direito a uma aposentadoria mínima”, diz Andrea. “Mesmo com uma espécie de seguro saúde para trabalhadores chamado Fonasa, o atendimento em hospitais públicos é pago – e é péssimo. Quem critica o SUS deveria realmente dar uma olhada na realidade de alguns países latino-americanos.”

Sob pressão, Piñera dobrou a aposta na repressão e decretou o “toque de queda”. Mas as ruas ficaram cada vez mais cheias e inflamadas, encurralando o governo. Em 27 de dezembro, o presidente cedeu e anunciou um referendo sobre a nefasta Constituição pinochetista. “Com muita alegria e entusiasmo, quero convocar todos nossos compatriotas a participar de um plebiscito, a ser realizado em 26 de abril de 2020”, discursou Piñera, constrangido.

A crise do novo coronavírus – que atingiu o Chile em março – forçou uma pausa nas manifestações, bem como o adiamento do plebiscito. “A pandemia ‘salvou’ o governo Piñeira, ao retirar os holofotes das manifestações e ser o pretexto para o presidente novamente declarar ‘toque de queda’, após dois meses lockdown. Por outro lado, a pandemia trouxe ainda mais à luz os problemas sociais e econômicos vividos pela população de classe baixa e média.”

O ânimo popular, ainda assim, segue em alta. “As reivindicações são extremadamente válidas e as manifestações têm que continuar. As medidas que Piñeira tomou até agora – como a liberação de parte da aposentadoria – foram paliativas e não resolvem os problemas sociais”, comenta Andrea. “A sociedade ainda está unida. Diariamente, ocorrem pequenos protestos em diversas partes, mostrando ao governo que o movimento social continua vivo e ativo.”