Na fronteira da Polônia com a Bielorrússia, também conhecida como Belarus.

Milhares de refugiados, a maioria curdos iraquianos, sírios, iemenitas e afegãos, que querem abrigo na Europa, estão sob condições catastróficas após atravessarem a Bielorrússia e chegarem à fronteira da Polônia, em florestas congeladas e acampamentos improvisados – a descrição é da CNN – e impedidos de seguir curso até à Alemanha, por 15 mil soldados poloneses e arame farpado, enviados pelo regime no poder em Varsóvia, que é particularmente avesso aos que chegam do Oriente Médio.

O governo polonês acusa o presidente Alexander Lukashenko de “fabricar uma crise” em provocação à União Europeia.

Desde que os EUA e a Otan desestabilizaram um país após o outro no Oriente Médio e no norte da África – aliás, como previu o assassinado líder Muammar Kadhafi – essas cenas se repetem ano após ano, com multidões que fogem da fome e da guerra, seja do Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria ou de algum país do Sahel, às vezes cruzando o Mediterrâneo em botes, às vezes vagando pelas periferias da Europa, agora na fronteira com a Polônia.

Como assinalou o articulista da RT, o historiador turco Tarik Cyril Amar, que, aliás, não parece ter muita simpatia por Lukashenko, pelo menos “10 refugiados – e provavelmente mais” – já morreram, alguns de frio. “Embora a propaganda do governo polonês busque retratá-los principalmente como homens jovens, na realidade também há muitas mulheres e crianças”.

Amar registra ainda que, com a queda das temperaturas, “mais mortes por hipotermia são inevitáveis se os refugiados não forem autorizados a receber assistência humanitária adequada e a exercer o direito de ter seus pedidos de asilo devidamente avaliados”.

A Cruz Vermelha e autoridades bielorrussas estão no local prestando ajuda humanitária – ainda que insuficiente – aos refugiados.

“Intolerável”, diz Bachelet

A Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, se disse “chocada com o grande número de refugiados e de migrantes” sem receber proteção adequada na fronteira entre a Bielorrússia e a Polônia e fez um apelo às partes para resolverem essa situação “intolerável”.

Bachelet pediu o respeito às leis internacionais de direitos humanos e de refugiados. Na avaliação da Alta Comissária, o envio de tropas para as fronteiras e a retórica pesada apenas aumentam “a vulnerabilidade e os riscos para refugiados e migrantes.” Ela ressaltou que, pela a lei internacional, nenhuma pessoa deveria ser proibida de buscar asilo em outros países.

Também o Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, manifestou sua grande “preocupação com a terrível situação das crianças que buscam asilo na Europa e nas fronteiras” e mencionou relatos de crianças vivendo em péssimas condições, “sendo obrigadas a voltar ou sendo detidas nas fronteiras do leste da União Europeia”.

A entidade destacou que além de ser uma situação “chocante”, as medidas violam a Convenção dos Direitos da Criança. Ao mesmo tempo, a Unicef também condena o uso da força, pois “viola a lei internacional e coloca a vida das crianças em risco, sem nem levar em consideração o que é de melhor interesse para os menores”.

Colhendo o que plantaram

A porta-voz da chancelaria russa, Maria Zakharova, lembrou como a Polônia participou da ocupação do Iraque: “Mais de 2.000 soldados poloneses invadiram este Estado soberano para estabelecer a ‘democracia’ lá. Então, por que não

receber pelo menos tantos ‘iraquianos gratos’ hoje, cujos ancestrais de forma alguma sonharam com uma vida assim – porque eles tinham sua própria vida construída em seu próprio país até que democratizadores implacáveis o invadiram?”.

Por sua vez o ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, afirmou que a principal responsabilidade pela crise recai sobre os países ocidentais e a UE deve acolher os refugiados: “Eles não querem ficar na Bielorrússia, querem ir para a Europa, a mesma Europa que há muitos anos anuncia e divulga o seu modo de vida. Vocês têm de ser responsáveis pelas suas palavras e ações”.

“São pessoas que vieram para a Bielorrússia legalmente e procuram entrar nos países europeus, especialmente na Alemanha. Não têm permissão para cruzar a fronteira, são perseguidos, espancados. É uma vergonha e uma violação total das convenções internacionais”, disse o embaixador russo na ONU Dmitry Polyanskiy. Ele pediu uma solução “por meio do diálogo”.

Lado B

Nesta mesma semana, sem nenhuma crise internacional, ou mobilização de milhares de soldados, conforme a AFP chegaram à Itália quase 700 refugiados, em duas levas, enquanto o ex-ministro do Interior Salvini está sendo processado por perseguir imigrantes e impedir sua entrada no país.

Ainda segundo a AFP, que cita o Ministério do Interior italiano, este ano já desembarcaram na Itália 57 mil imigrantes, mais do que os 30 mil de igual período do ano passado.

A propósito, há poucos meses, uma nova rota foi descoberta por imigrantes africanos, no enclave espanhol de Ceuta, com milhares de pessoas furando a cerca e entrando, o que foi uma dor de cabeça danada para Madri mas não levou ninguém a acusar o rei do Marrocos de um “complô” para “invadir a União Europeia”.

Agora, o governo polonês de extrema direita, que até poucos dias era tido nas principais capitais europeias quase como pária por suas violações dos tribunais e dos direitos femininos, do dia para a noite passou a ser o sustentáculo da moral e dos bons costumes pan-europeus.

A um só coro, mídia dos monopólios assevera que é tudo culpa do “Lukashenko”, que supostamente quer se vingar das sanções da União Europeia, e que é pau mandado “de Putin”. Na verdade, os refugiados já vinham usando esse caminho para ingressar na Europa rica desde o início do verão, e só este mês mais de 4.500, segundo Varsóvia, tentaram cruzar a fronteira.

Famintos

Repórteres da CNN e da RT, que estão em território bielorrusso – coisa que o recém instaurado estado de emergência na Polônia impede – deram relatos semelhantes sobre a dramática situação vivida pelos refugiados.

O norte-americano Matthew Chance registrou que as pessoas “estão famintas e desesperadas por lenha” e lutam para “acender as fogueiras antes do por do sol”. Na região, há 600 mulheres e cerca de 200 crianças.

Ele explicou que as pessoas fogem de países devastados pela guerra, como a Síria e o Iraque, e vieram para a Bielorrússia com o propósito expresso de “se embrenhar na Europa e tentar encontrar uma vida melhor”. Autoridades bielorrussas disseram a ele que o número de refugiados na fronteira poderá a chegar a 10 mil nas próximas semanas se o impasse persistir.

O correspondente da RT, Konstantin Pridybaylo, entrevistou ao vivo refugiados do Iraque e da Síria que sabiam se comunicar em inglês. Um deles queixou-se de que estava com fome e que não tinha bebido nada. Outro mostrou uma foto de sua família no telefone e pediu ajuda.

Pridybaylo mostrou que o acampamento de refugiados fica a apenas alguns metros da cerca da fronteira que separa os dois países. A menos de cem metros, do lado polonês, veículos militares e máquinas, incluindo luzes de sinalização brilhantes que perturbam o sono das pessoas. Também canhões de água.

“Estava três graus negativos ontem à noite. De acordo com todos os padrões europeus, até mesmo internacionais, você só pode usar um canhão de água até uma temperatura de mais sete graus, mas não abaixo. Os soldados poloneses ligavam as sirenes e as buzinas à noite, isso era muito cruel: eles tocavam música alto, acendiam os faróis e não deixavam as crianças e mulheres dormirem”, disse Pridybaylo.

Alemanha

“Aqui você pode ver como eles acendem uma fogueira e tentam sobreviver. O maior sonho deles é chegar à Alemanha”, acrescentou o correspondente. Ele relatou que o ambiente no campo de refugiados é tranqüilo, as pessoas tentam ajudar umas às outras e há até um jardim de infância improvisado.

“O curdo é, sem dúvida, a língua predominante aqui. Aqueles com quem eu consegui falar só precisam de ajuda, precisam de algo para comer e beber. Querem ir para Alemanha. “

Na quinta-feira, uma iraquiana grávida perdeu o filho, apesar de ter sido socorrida e levada a um hospital. Enquanto isso, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, chamou a crise dos refugiados de “um desafio para toda a União Europeia”. “Esta não é uma crise de migração, é a tentativa de um regime autoritário de tentar desestabilizar seus vizinhos democráticos”.

Já a primeira-ministra alemã em exercício e fim de carreira, Angela Merkel, telefonou para o presidente russo Vladimir Putin, que aconselhou a União Europeia a discutir diretamente com Minsk.

Com gás

De Moscou, o porta-voz do Kremlin Peskov desautorizou a declaração do presidente Lukashenko de que poderia fechar o gasoduto Yamal se novas sanções fossem decretadas contra Minsk.

“A Rússia foi, é e será um país que cumpre seus compromissos de garantir aos consumidores europeus o gás e de cumprir todas as suas obrigações contratuais”, disse Peskov. “A confiabilidade da Rússia como fornecedor de [gás] e como parceiro contratual não está sujeita a qualquer dúvida.”

A União Europeia anunciou que irá reunir seus ministros das Relações Exteriores no dia 15 para decretar novas sanções contra a Bielorrússia. A porta-voz russa Zakharova considerou “inadmissível” o uso do problema dos refugiados como pretexto para novas sanções.

Hora de cair na real

Como assinalou Amar, Varsóvia está inflando a crise porque essa é sua política de longa data, de não acomodar a imigração, “exceto quando os migrantes são brancos” e se adaptam às preferências chauvinistas polonesas. “E assim, os bielorrussos que fogem de Lukashenko e os ucranianos que fogem de um país em dificuldades, empobrecido e dividido pelo conflito são bem-vindos. Iraquianos e afegãos tentando fugir da instabilidade política e da guerra criada pela intervenção ocidental, muito menos”.

“Se você realmente acredita que um bloco de quase 450 milhões de habitantes, unindo algumas das economias mais ricas do mundo, está ameaçado por alguns milhares de refugiados infelizes, você não precisa de guardas de fronteira – você precisa de um alerta”, assinalou.

“É hora de cair na real. A Polônia não é uma vítima, a UE não está em perigo, a Rússia não é o problema. A Bielorrússia é um problema, mas pequeno. O verdadeiro grande problema é a inabilidade ou falta de vontade da UE de forçar governos xenófobos, como o da Polônia, a concordar com uma política de migração razoável e justa”.