A forma de coibir o envio de mensagens falsas em massa pelos chamados serviços de mensageria privada, como WhatsApp e Telegram, dividiu opiniões no grupo de trabalho da Câmara dos Deputados que estuda o aperfeiçoamento da legislação brasileira de internet. O grupo analisa o chamado PL das Fake News, que tramita com mais de 70 propostas apensadas.

O principal ponto de discussão na audiência pública nesta terça-feira (24) foi o artigo 10º da proposta, que prevê que os serviços guardem os registros dos envios de mensagens encaminhadas em massa por três meses, resguardada a privacidade do conteúdo das mensagens.

Pelo texto, “encaminhamento em massa” é o envio de uma mesma mensagem por mais de cinco usuários em um intervalo de até 15 dias, para grupos de conversas ou listas de transmissão, e que alcancem mais de 1 mil pessoas.

Para o relator da matéria, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), identificar criminosos sem violar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é um tema muito sensível. “Eu confesso que temo pelo vigilantismo que nós podemos instituir a partir das regras de rastreabilidade”, afirmou. Ele citou os riscos que correm os ativistas sociais, por exemplo, caso as regras previstas no projeto sejam instituídas. “Não há uma bala de prata, uma solução única para enfrentar o fenômeno, que é global”, acrescentou.

Já a deputada Lídice da Mata (PSB-BA), uma das solicitantes da audiência, vê necessidade de dar resposta à angústia da sociedade sobre o tema desinformação. Para ela, a legislação penal já pode punir os crimes, mas não está impedindo que a disseminação de notícias falsas ocorra.

“Existe efetivamente no Brasil um impacto extremamente negativo na formação de opinião pública via WhatsApp, e não podemos ignorar esse fato”, ressaltou Lídice da Mata, que é relatora da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fakes News, cujas atividades estão suspensas por causa da pandemia.

Abordagem cautelosa

A diretora da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), Miriam Wimmer, recomenda abordagem cautelosa do tema, para proteger a liberdade de expressão. Ela lembra que a Lei Geral de Proteção de Dados prevê que o tratamento de dados pessoais deve ocorrer apenas para finalidades específicas e não deve ir além do estritamente necessário para atingir uma determinada finalidade.

Segundo ela, exigências adicionais, além das previstas na LGPD, de identificação de autores e de rastreamento de mensagens devem ser proporcionais, buscando atingir finalidades específicas. “A discussão no Congresso Nacional deve ser construída com base naquilo que já foi pactuado e construído na discussão da LGPD, reconhecendo o papel que a ANPD tem a desempenhar nesse contexto”, disse Miriam Wimmer.

Ela também listou algumas competências da ANPD, como propor medidas de prevenção e de segurança; avaliar transparência do tratamento de dados pelas plataformas digitais, incluindo compartilhamento de dados; o uso para propaganda direcionada e a garantia dos direitos dos titulares.

Miriam lembrou que também cabe à ANPD orientar os usuários. E disse que outros países têm usado, como estratégia regulatória de combate à desinformação, a educação para uso das mídias digitais e a checagem de fatos.

Vigilantismo

Jaqueline Abreu, pesquisadora e membro da Comissão de Juristas PDP – Proteção de Dados Pessoais, criticou explicitamente o artigo 10º do projeto de lei. “Esse dispositivo vai na contramão de princípios de proteção de dados porque obriga uma retenção massiva de dados pessoais vinculado ao conteúdo do que é dito”, afirmou.

“Não dá para verificar se um conteúdo vai ser enviado para mais de cinco pessoas ou mais que mil vezes sem etiquetar tudo que é dito. Isso esbarra no princípio da necessidade da minimização ao mesmo tempo que intervém em aplicativos que desenharam seus próprios sistemas para preservar a privacidade”, alertou Jaqueline Abreu, ressaltando que esses aplicativos terão que coletar mais dados do que os necessários e poderão se transformar em ferramentas de vigilância.

Segundo a pesquisadora, esse mecanismo de vigilância não seria aplicado apenas a pessoas que estão disseminando fake news, mas a outras pessoas que estão legitimamente usando a ferramenta digital, como movimentos sociais. Na visão dela, atores maliciosos, “sofisticados”, continuarão tendo meios para divulgar conteúdos ilícitos, podendo enviar mensagens de fora do Brasil, por exemplo. “Não vamos pegar peixe grande e vamos gerar efeito inibidor da liberdade de expressão”, opinou.

Ela acrescentou que a legislação brasileira já prevê diversos mecanismos de identificação que se aplicam também para apurar delitos na internet, como a guarda de registros já prevista no Marco Civil da Internet.

“A internet está longe de ser terra de ninguém, e já estão à disposição vários mecanismos para combater o crime. De certa forma, o que prejudica o trabalho policial são problemas que já existiam antes da internet: falta de capacidade técnica, de recurso e de pessoal para fazer trabalho investigativo de qualidade”, disse. “Há muito o que aperfeiçoar em eficiência com a legislação já existente”, completou.

Caráter híbrido dos serviços

João Brant, diretor do Instituto Cultura e Democracia, que reúne pesquisadores sobre o tema, acredita que a legislação atual não tem sido eficaz para combater o problema da desinformação. Ele citou o relatório Digital News Report 2021, segundo o qual a maior parte dos brasileiros se informa via mídia on-line e redes sociais, mais do que pela TV.

Brant mencionou alguns problemas atuais, como no caso das informações que circularam sobre Covid-19: 7 das 10 imagens mais compartilhadas em 522 grupos sobre a pandemia eram falsas, segundo dados da Agência Pública.

Ele disse que o WhatsApp, assim como outros serviços de mensagem, tem natureza híbrida: é serviço de mensagens privadas, ao mesmo tempo em que carrega mensagens virais/de massa. Para ele, é preciso separar esses serviços na lei.

Brant defendeu o artigo 10º do projeto, porque força esse tratamento em separado, mas disse que o texto pode ser aprimorado. Ele sugere, por exemplo, que seja obrigatório guardar apenas os dados das mensagens passíveis de encaminhamento. “Essa definição seria dada por uma solução técnica oferecida pelo serviço de mensageria privada e seria definida pelo usuário remetente”, sugeriu. Dessa maneira, apenas os dados desse usuário remetente seriam guardados.

Samara Castro, da ONG Instituto Nacional de Proteção de Dados, concordou com a proposta. Ela também acredita que seja necessário reconhecer o caráter híbrido do serviço.

Poder de polícia

Bruna Martins dos Santos, representante da empresa Data Privacy Brasil na audiência pública, criticou o artigo 7º do projeto, afirmando que confere poder de polícia às plataformas digitais, deixando os usuários mais vulneráveis.

Esse artigo dá aos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada o direito de requerer dos usuários e responsáveis pelas contas a confirmação de sua identificação, inclusive por meio da apresentação de documento de identidade válido, em caso de denúncias de desrespeito a essa lei, no caso de indícios de contas automatizadas não identificadas como tal, de indícios de contas inautênticas ou ainda nos casos de ordem judicial.

(PL)