Amazônia legal tem 1.269 pistas abertas sem autorização da Anac. É mais do que o total de pistas regulares da região.

Até o momento o governo brasileiro não se pronunciou sobre a existência de pistas de pouso clandestinas na Amazônia.  Reportagem do jornal The New York Times revelou que o garimpo vem utilizando 1.269 pistas irregulares para alavancar a atividade na região.

A reportagem se baseou em imagens de satélites analisadas desde 2016 e informou que as pistas são utilizadas para que aviões de pequeno porte transportem equipamentos e outros materiais que auxiliam na atividade extrativista a áreas de difícil acesso, onde não há estradas.

Além das estruturas construídas pelos próprios garimpeiros, até pistas de propriedade do governo brasileiro, utilizadas para que agentes de saúde cheguem a lugares remotos da floresta amazônica, estão sendo apropriadas pelos criminosos.

Agentes de saúde indígena relataram ao jornal estadunidense que o governo brasileiro perdeu completamente o controle de algumas dessas pistas. A ousadia dos garimpeiros é tamanha ao ponto de jogarem combustíveis na pista quando não reconhecem uma aeronave que se aproxima a fim de impedir o pouso.

“A pista de pouso agora pertence aos mineiros”, disse Junior Hekurari, um agente de saúde indígena. A pista, confiscada pelo garimpo, é usada para receber pequenos aviões que transportam equipamentos e combustível até áreas onde não existem estradas.

Ao menos 362 das pistas estão a poucos quilômetros de áreas onde há extração de minério. Deste total, em torno de 60% delas estão situadas em reservas indígenas, onde é proibido qualquer tipo de exploração.

No entanto, as imagens de satélites identificam pelo menos quatro pistas nas terras indígenas dos Yanomami, que permeia os territórios do Amazonas e de Roraima, cita a reportagem.

Maior território indígena do país, a reserva tem sido devastada pelo avanço do garimpo. As marcas da atividade ilegal na região são visíveis nas águas escuras dos rios e nas crateras a céu aberto.

Em maio, a TIY completou 30 anos de sua homologação com a maior devastação da história causada pelo garimpo. Na área vivem mais de 28 mil ianomâmi, que enfrentam, cotidianamente, os impactos da ação  devastadora do garimpo, como destruição ambiental, doenças, fome, desnutrição e violência.

Com cerca de 10 milhões de hectares distribuídos no Amazonas e em Roraima, onde fica a maior parte, a Terra Yanomami tem 371 comunidades de difícil acesso distribuídas ao longo da extensa floresta amazônica. O povo ianomâmi é considerado de recente contato com a população não-indígena. Na reserva há, ainda, indígenas isolados, sem contato ou influência externa.

O relatório “Yanomami sob ataque”, divulgado pela Hutukara Associação Yanomami em abril deste ano, apontou que, em 2021, a degradação causada pelo garimpo atingiu a marca de 3.272 hectares, frente aos 2.234 hectares de 2020 — 1.038 hectares a mais em um ano.

Em quatro anos, de outubro de 2018 até o fim de 2021, a área devastada pelo garimpo ilegal quase dobrou de tamanho, ultrapassando 3,2 mil hectares.

As marcas da destruição provocada pela ação ilegal do garimpo são vistos, respectivamente, nas regiões de Waikás, Homoxi e Kayanau. Com a exclusão das regiões Surucucu, Missão Catrimane e Uraricoera, todas as áreas tiveram um avanço na degradação de 2020 até o fim de 2021.

Ainda de acordo com o NYT, foram identificadas 35 pistas não catalogadas a aproximadamente 80 quilômetros de três bases de monitoramento do Exército Brasileiro na Terra Yanomami. Suspeita-se que também sejam utilizadas por garimpeiros.

A reportagem também destaca o enfraquecimento da legislação que dificulta a aplicação de multas aos responsáveis pela construção de pistas irregulares.

Silêncio

O enfraquecimento das ações fiscalizadoras repousa no silêncio dos governo Bolsonaro sobre as denúncias do jornal estadunidense. Aparelhar as instituições, esvaziar as suas funções, cortar investimentos e anular multas de criminosos ambientais, atendem à proposta de Ricardo Salles (ex-ministro do Meio Ambiente) para deixar passar a boiada.

Em março, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, emitiu um despacho para a prescrição de 164 multas ambientais. Com isso, todas as multas aplicadas pelo órgão nos últimos dez anos voltaram à estaca zero. Os maiores beneficiados são madeireiros.

Em 2020, Bim já havia divulgado outro despacho afrouxando as regras para exportação de madeira. Esse escândalo que teve repercussão mundial, levou a demissão de Salles.

Bolsonaro tem usado o seu mandato para estimular a atividade garimpeira e fazer vistas grossas para crimes ambientais e de outras naturezas. Em fevereiro, por meio de um decreto, ele criou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mapa).

O objetivo, segundo o Ministério de Minas e Energia, é estimular o desenvolvimento da mineração artesanal e em pequena escala através de políticas públicas setoriais. No entanto, especialistas apontam a medida como eleitoreira e prejudicial ao meio ambiente.

Incentivo aos garimpeiros

Para Danicley Aguiar, ativista do Greenpeace, o decreto do governo traz prejuízos para a preservação do meio ambiente porque configura uma “licença política” dada por Bolsonaro a garimpeiros ilegais que atuam na Amazônia.

“Além de ser um claro ato de desespero eleitoral, o decreto tem efeitos práticos na Amazônia, porque ele vai reforçar toda a narrativa de licença política que é dada ao avanço que o garimpo ilegal teve na região, em especial, durante os últimos três anos do governo Bolsonaro”.

“Na Amazônia, nós temos outros caminhos possíveis para o desenvolvimento regional. Mas é um decreto que sinaliza, não só para os garimpeiros, mas também para a base eleitoral de Bolsonaro, que esses garimpeiros ilegais serão em algum momento legalizados, especialmente se o presidente vier a ser reeleito”, afirmou Aguiar.

O Instituto Socioambiental (ISA) também criticou a medida. Não há garimpo artesanal na Amazônia, mas sim garimpo predatório, com uso descontrolado de mercúrio e grandes impactos ambientais e à saúde da população de toda a Amazônia”, denunciou.

“É preocupante que Bolsonaro pretenda facilitar o garimpo em um bioma já ameaçado por atividades ilegais”, completou o ISA.

Para o professor de direito ambiental Rogério Rocco, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ao falar em mineração artesanal, o decreto criou uma “figura fictícia”, uma “invenção”.

“O decreto cria uma figura fictícia, uma invenção que não foi sequer conceituada, de mineração artesanal. O decreto fala nessa figura, faz a remissão à legislação que dispõe sobre mineração, mas essa legislação não estabelece — nunca estabeleceu — essa categoria de garimpagem artesanal, de mineração artesanal”, criticou. Isso não existe. O decreto sequer se debruçou para definir esse conceito”, completou Rocco.

Outra ação em defesa do garimpo por parte de Bolsonaro e aliados é o Projeto de Lei 571/2022, que transfere ao presidente da República o poder de autorizar a mineração em terras indígenas e outras áreas protegidas.

Em tramitação na Câmara, o texto prevê que projetos minerários de “Interesse nacional” poderão ser liberados via decreto presidencial, caso ocorra situação de crise global ou interna que prejudique o abastecimento.

A autorização seria válida para qualquer território do país, incluindo unidades de conservação protegidas por lei e propriedades particulares. Pelo texto, indígenas teriam direito “à participação na lavra (minera)”, e proprietários seriam indenizados.

Para Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, a proposta é “inconsequente” ao dar “poder ilimitado” ao chefe do Executivo, ferindo princípios como os da legalidade, impessoalidade e moralidade.

“A centralização de poder decisório prevista no projeto de lei é inconstitucional. Vivemos numa democracia, abalada pelas tendências autoritárias do atual governo, mas ainda uma democracia”, apontou Araújo, que já foi presidente do Ibama.

“O PL se insere em uma estratégia mais geral de avanço sobre essas terras protegidas. Um avanço completamente indiscriminado. Porque são as terras onde ainda existe madeira e recursos florestais”, aponta advogada Juliana Batista, do ISA.

Para a advogada, um projeto dessa natureza não tramitaria no Congresso se o contexto brasileiro fosse de normalidade institucional.

A autoria da proposta é do deputado José Medeiros (PL-MT), vice-líder do governo de Jair Bolsonaro. O parlamentar é um dos principais defensores da regulamentação do garimpo ilegal e aliado próximo do presidente.

Já o PL 191/2020, de autoria do Poder Executivo, autoriza o garimpo e a realização de pesquisas de recursos minerais em terras indígenas.

De acordo com o texto, “busca-se alcançar a viabilização da exploração de recursos minerais e hídricos, em terras indígenas, a partir de soluções que contribuam para o desenvolvimento econômico de atividades, participação nos resultados e indenização pela restrição do usufruto dos povos indígenas”.

O texto é criticado por movimentos indígenas, ambientalistas e organizações. O PL é um dos alvos do Ato pela Terra, manifestação convocada por artistas e organizações que aponta um “pacote de destruição ambiental” em trâmite no Congresso Nacional.

Em março, sob protesto de milhares, a Câmara aprovou regime de urgência para tramitação do projeto na Casa e já se encontra pronto para votação.

O texto autoriza hidrelétricas, pesquisa e lavra mineral em TIs não homologadas, sem a autorização do Congresso Nacional e a consulta prévia dos indígenas, prevista na Constituição. O PL não considera a necessidade de consentimento dos povos indígenas para as atividades previstas em suas terras, sendo todas essas atividades altamente impactantes.