Ano de disputa presidencial é um dos momentos mais propícios para medir não apenas a opinião da sociedade sobre os candidatos, mas também para aferir preferências que envolvem a visão política, social e comportamental. Nesses períodos, a população fica mais atenta e voltada para as questões da política nacional e como isso afeta suas vidas. Há poucos dias, uma dessas pesquisas, realizada pelo instituto Datafolha, mostrou um aumento na identificação com a esquerda, com 49% dos entrevistados se colocando neste campo ideológico.

Conforme o levantamento, o crescimento foi percebido desde 2017, mas de forma menos acentuada. Naquele ano, a diferença era bem menor: os que estavam mais à direita eram  41%, contra 40% dos que apareciam à esquerda. Hoje, a centro-direita acumula 24% e a direita, 9% — de forma que este campo tem cerca de 33% da identificação ideológica —, enquanto 17% se colocam à esquerda e 32% à centro-esquerda, somando 49% neste espectro. A medição foi feita a partir da soma da pontuação das respostas do entrevistado, que indica a propensão para uma ou outra posição.

Apesar da caracterização, os números podem revelar não exatamente uma clareza de escolha quanto às preferências ideológicas, mas uma tendência das pessoas a se identificarem com certos valores que não necessariamente traduzem um posicionamento definido. “Uma primeira consideração é que os assuntos relativos à política mobilizam muito pouco o interesse do cidadão médio no Brasil”, diz Marcos Coimbra, sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi.

Marcos Coimbra. Foto: reprodução/Youtube

Ele lembrou que “qualquer pergunta em relação a questões políticas tem que ser avaliada considerando que nas camadas populares, o interesse é menor, porque a vida é mais difícil” e, acrescentou, “o tema da política só passa a ser importante perto das eleições, em situações especiais; na maior parte do tempo, o interesse é pequeno”.

Assim, diz, “o conceito de esquerda e direita tem de ser pensado nesse cenário de baixo interesse que produz baixa informação”. Ele explica que para o cidadão comum, esquerda é aquela posição que leva em consideração os interesses e necessidades das pessoas mais pobres, enquanto a direita é mais identificada com o empresariado, com a elite e com cálculos econômicos mais frios e distantes da realidade do povo.

Esse raciocínio se reflete na pesquisa, somado à própria condição de vida das pessoas nos últimos anos. “Em parte, o resultado do Datafolha tem a ver com o empobrecimento geral da população, da sociedade brasileira, depois desses últimos seis anos de aprofundamento de uma visão completamente hostil ao povo. As pessoas estão mais pobres, com empregos cada vez mais precários e vivendo mal”, explica Coimbra.

Para ele, a identificação com a esquerda “tem mais a ver com o aumento do sentimento de que do jeito que está  não dá certo, e que precisamos voltar a uma política que priorize as pessoas mais pobres, mais vulneráveis; é isso que acho que está por trás desse resultado”.

Nesse aspecto, a pesquisa apontou que quando o assunto é economia, a adesão à esquerda saiu de 44% para 50%, a maior da série histórica. Por outro lado, a direita caiu de 28% para 25%, o menor já medido. Vale destacar ainda que aumentou de 38% para 47% a proporção daqueles que consideram os sindicatos importantes para defender os interesses dos trabalhadores, dado que pode refletir a percepção de que essas entidades cumprem importante papel, sobretudo num cenário marcado pela piora advinda da precarização do trabalho, da reforma trabalhista e do desemprego.

Tal posicionamento, argumenta Coimbra, “não se trata exatamente de defender teses do pensamento econômico, político ou cultural de uma forma mais ampla da esquerda. Trata-se da preferência por ideias, por políticos, por correntes de opinião que favoreçam as pessoas mais pobres e que permitam que a gente saia desse lastimável modelo que não deu certo em lugar nenhum do mundo, mas que a elite brasileira insiste em fazer valer e usa seus recursos midiáticos, políticos, econômicos para implantar”.

Sinais trocados

A mesma pesquisa trouxe dados que podem ter embaralhado a visão de quem analisa o comportamento da população brasileira pelo prisma direita x esquerda. O levantamento indicou que 23% dos eleitores de Lula estão no espectro ideológico de direita, enquanto 29% dos de Bolsonaro se situam no campo oposto, à esquerda.

Para Coimbra, não há contradição nisso. “Acho que o Lula sempre foi um político que, do ponto de vista de imagem, ultrapassou essa fronteira esquerda-direita. Muita gente que votou nele e, especialmente, que pretende votar neste ano, avalia que Lula está mais perto do centro do que da extrema-direita, no lugar de um trabalhismo moderno, uma social-democracia um pouco mais à esquerda; é assim que Lula é visto, o que permite às pessoas que não são necessariamente de esquerda pensar em votar nele,  gostar dele e considerar que foi um bom presidente e pode voltar a ser agora”.

No que diz respeito ao percentual que aderiu a Bolsonaro mesmo não estando necessariamente em seu campo ideológico, o sociólogo avalia que “nesses números, provavelmente exista a presença também de um componente popular, que é minoritário, mas existe, o que não é de estranhar porque, afinal de contas, ele teve mais de 50% dos votos no segundo turno em 2018 e continua a ter 1/3 de simpatia para obter um segundo mandato”.

Coimbra afirma que “se ficasse restrito a homens mais velhos, brancos, que moram nas capitais do Sudeste e evangélicos — perfil que é, digamos, o baluarte do bolsonarismo — ele nunca chegaria ao tamanho que tem. Bolsonaro tem uma presença no eleitorado popular, provavelmente o mesmo tipo de eleitor popular que, no passado, votou no Collor, no PSDB, e votou no próprio Bolsonaro em 2018”.

Ele acrescentou ainda que essa presença do eleitorado popular no bolsonarismo “é que, acho, implica nesses dados da pesquisa, lembrando que são pessoas provavelmente pobres, que moram nas periferias das grandes cidades, têm muitas dificuldades, gostam do Bolsonaro, mas são a favor de políticas de distribuição de renda, acham que é certo que as pessoas mais pobres recebam apoio do poder público”.

Por fim, destacou: “no eleitorado de Bolsonaro, 29%, segundo esse levantamento, se identificam com esse ideário (de esquerda), mas também é verdade que cerca de 70% não. E é isso que dá a identidade política de uma candidatura, de um político, é onde está a sua base, o âmago da sua personalidade político-eleitoral”. Portanto, concluiu, Bolsonaro é um político de ultradireita, mas ainda assim pode haver uma minoria dentro do seu eleitorado que simpatiza com posições tidas como de esquerda.

 

Por Priscila Lobregatte