"O primeiro Fórum Econômico da Eurásia foi um marco histórico", destaca Escobar

Irã e Rússia estão assumindo a liderança no estabelecimento de redes financeiras alternativas para contornar as sanções ocidentais, assinalou o jornalista Pepe Escobar, do portal The Craddle e editor-geral do Ásia Times, o brasileiro que é considerado uma referência mundial na discussão sobre os caminhos para o multilateralismo, analisando o primeiro Fórum Econômico da Eurásia, realizado no final de maio em Bishkek, Quirguistão, quando a operação russa para desnazificar e desmilitarizar a Ucrânia e garantir a continuidade de seu status de neutralidade entrava pelo terceiro mês.

Fórum que ele considerou um “marco” na definição dos parâmetros para a integração geoeconômica do coração da Eurásia, em artigo muito apropriadamente intitulado ‘Os sancionados: como Irã-Rússia estão estabelecendo novas regras’.

Ele assinala que Sergey Glazyev, Ministro da Rússia responsável pela Integração e Macroeconomia da União Econômica da Eurásia (EAEU), está coordenando “o esforço para projetar um sistema monetário-financeiro alternativo – um pós-Bretton Woods III de fato – em cooperação com a China”.

Trata-se de como os “sancionados” Irã e Rússia estão “fazendo o trabalho braçal para quebrar o controle financeiro global do Ocidente”, enquanto a China busca evitar as sanções dos EUA “o máximo possível”.

Segundo Glazyev, o fórum “discutiu o modelo de uma nova moeda de liquidação global atrelada a cestas de moedas e commodities nacionais. A introdução deste instrumento monetário na Eurásia acarretará o colapso do sistema do dólar e o enfraquecimento final do poder militar e político dos EUA. É necessário iniciar negociações sobre a assinatura de um tratado internacional apropriado no âmbito da SCO.”

É particularmente relevante como Glazyev interliga o impulso da EAEU com o crescente papel geopolítico e geoeconômico da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), que une na mesma mesa as principais potências eurasiáticas: China, Rússia, Índia, Paquistão, Cazaquistão e Irã.

A EAEU, inaugurada em 2015 com cinco membros plenos – Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Bielorrússia e Armênia –, representa um mercado de 184 milhões de pessoas e um PIB coletivo de mais de US$ 5 trilhões.

Na reunião do Conselho Econômico Supremo da Eurásia, o presidente russo Vladimir Putin apoiou a extensão de um acordo temporário de livre comércio entre a EAEU e o Irã, que é o mais novo (e único da Ásia Ocidental) membro pleno da SCO. Ele disse ainda que isso deve acontecer apesar do “confronto coletivo do Ocidente”.

O próximo passo será implementar um acordo de livre comércio completo, possivelmente antes do final do ano, de acordo com o vice-ministro do Comércio iraniano Alireza Peymanpak.

Também são candidatos a fechar acordos com a EAEU Egito, Indonésia e Emirados Árabes Unidos.

O Irã, que há mais de quatro décadas é forçado a encontrar soluções criativas para contornar pacotes de sanções imperiais em série, pode ter “uma ou duas” lições conceituais para ensinar à Rússia, acrescenta o jornalista.

Acordos de troca estão ganhando terreno: “Teerã está oferecendo peças de reposição e turbinas a gás para as usinas de energia de Moscou em troca de zinco, alumínio, chumbo e aço muito necessários para suas indústrias de metal e mineração, de acordo com o ministro iraniano de comércio e indústrias, Reza Fatemi Amin”.

E mais escambo em uma ampla gama de commodities está à frente, conforme discutido durante uma recente visita a Teerã pelo vice-primeiro-ministro russo Alexander Novak.

Pepe Escobar destaca como “lenta mas seguramente” o novo RIC (Rússia-Irã-China) – em oposição ao antigo RIC nos BRICS (Rússia-Índia-China) – está tentando “integrar seus sistemas financeiros”.

Irã é uma questão de estratégia de segurança nacional para a China, como fornecedor de energia e parceiro essencial da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) na Ásia Ocidental.

Muito mais complexo

O autor registra que Rússia-China é, porém, um assunto “muito mais complexo”. “Extremamente temerosos de provocar sanções dos EUA, os bancos chineses estão se abstendo – pelo menos por enquanto – de aumentar seus negócios com bancos russos”.

O que conduz ao caso da UnionPay, o sistema chinês de pagamentos. O provedor chinês de cartões bancários – cada vez mais popular, especialmente na Ásia – recusou a parceria com o Sberbank antes mesmo do maior banco da Rússia ser excluído pela UE e pelos EUA da plataforma global de mensagens bancárias SWIFT.

A UnionPay também cancelou planos com outros bancos russos de emitir cartões UnionPay vinculados ao sistema de pagamento russo Mir, um sistema que busca lucrar com a saída da Visa e Mastercard do mercado russo.

No início deste ano – registra Pepe Escobar – no Fórum Boao na Ásia o presidente Xi Jinping foi “inflexível em se opor ao ‘uso devasso de sanções unilaterais’”. Das empresas chinesas já estabelecidas na Rússia, “80%” pareciam continuar seus negócios como de costume.

Subsistem problemas sérios. “O Banco da China e o Banco Industrial e Comercial da China (ICBC) restringiram o financiamento de commodities russas. Também o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) decidiu congelar todos os empréstimos à Rússia e à Bielorrússia no início de março para ‘salvaguardar’ sua ‘integridade financeira’”.

Com enorme exposição ocidental, a postura cautelosa dos bancos chineses espelha que quase 80% das transações internacionais globais ainda são em dólares e euros, e apenas 2% em yuans.

Já Rússia e Irã estão implementando no nível “mais alto possível” os acordos mútuos em suas moedas nacionais.

“Discutimos em conjunto com os bancos centrais a disseminação e operação do sistema de mensagens financeiras, bem como a conexão dos cartões de pagamento Mir e [iraniano] Shetab”, disse o vice-primeiro-ministro russo Alexander Novak.

O cartão Mir ainda não é aceito no Irã, mas isso está prestes a mudar – assim como na Turquia, que neste verão começará a aceitar pagamentos com cartão Mir de legiões de turistas russos.

O que isso significa na prática é que a Rússia e o Irã estarão conectando seus bancos ao Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras (SPFS), o equivalente russo ao SWIFT.

Quanto ao SWIFT, como o CEO da Mastercard, Michael Miebach, aventou em Davos, pode em breve ser coisa do passado. A observação foi feita em um painel sobre moedas digitais e pagamentos internacionais. Pequim mostra-se decidida a configurar o yuan digital para contornar o SWIFT e seu CHIPS (Sistema de Pagamento Interbancário da Câmara de Compensação), enquanto a Rússia pondera sobre criptomoedas e moedas digitais.

Cooperação estratégica

Essa convergência Rússia-Irã vem se acelerando desde janeiro deste ano. Durante visita a Moscou, o presidente iraniano Ebrahim Raisi apresentou a Putin um esboço de acordo para “cooperação estratégica pelos próximos 20 anos, tendo como base a experiência conjunta de cooperação na Síria no combate ao terrorismo”, que propõe expandir esse entendimento para “economia, política, cultura, ciência, tecnologia, defesa e esferas militares, bem como questões de segurança e espaço”.

Raisi também agradeceu a Putin “por facilitar a entrada de Teerã na SCO”. No encontro com Novak em Teerã, o ministro iraniano do Petróleo, Javad Ouji, destacou que ambos os países “estão sob sanções severas e temos potencial para neutralizá-los através do desenvolvimento de relações bilaterais em energia, transporte, questões agrícolas, bem como a questão da criação de usinas nucleares”.

Por sua vez, com o vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Ryabkov, tem reiterado o apoio da Rússia à restauração do Plano de Ação Abrangente Conjunto (JCPOA) e que os problemas que persistem nas negociações “não estão relacionados com a finalização do texto.”

“Em termos de nossos interesses, inclusive no contexto da cooperação nuclear pacífica com o Irã, o texto é bastante satisfatório… não há nada para ‘ajustar’”, enfatizou Ryabkov.

Em Davos, o ministro das Relações Exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdollahian, disse que o drama na Ucrânia foi causado pelas “ações provocativas dos EUA e da OTAN”.

Concluindo, Pepe Escobar assinala que todos os itens acima mostram “algumas das provações e tribulações da integração da Eurásia e o longo e sinuoso caminho para um novo sistema monetário EAEU-SCO”.

Mas – acrescenta – as primeiras coisas em primeiro: algum avanço no terreno do Mir-UnionPay. “Quando essa notícia for divulgada, a sorte estará lançada”.